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quinta-feira, 8 de maio de 2014

Viagem Inesquecível a Chaves

Esta viagem de comboio, na linha do Corgo, foi há mais de 85 anos…!

Poderia ter sido mais uma, igual a muitas outras, que se fizeram nessa magnifica linha de caminho-de-ferro, mas esta deve ter sido bem diferente. Se bem que não se conheçam os motivos que terão levado os bombeiros da Régua, acompanhados de uma grande comitiva, de irem a Chaves, essa viagem não ficou esquecida no tempo.

Alguém se lembrou de registar os pormenores mais significativos dessa “Excursão à vila de Chaves, promovida pelos bombeiros voluntários da Régua, no dia 19 de Julho de 1925”. Com a intenção de informar a posteridade, ainda escreveu aquela única mensagem numa folha, onde arquivou as melhores cinco fotografias, inesquecíveis tanto para eles como para nós, agora.

Não sabemos com que finalidade os bombeiros da Régua promoveram esta excursão a Chaves. Agradecemos que alguém nos ajude, se para tanto dispuser de elementos capazes. Terá sido uma vigem de lazer? Uma viagem de cortesia à associação flaviense congénere? Quem eram as pessoas que os receberam na estação? Que foram festejar? Um aniversário dos bombeiros de Chaves? Uma inauguração de novo quartel ou de outro melhoramento? Parece haver um segundo estandarte para além do dos Bombeiros da Régua, mas será dos Bombeiros de Chaves? A locomotiva (uma Ensechel E 224) parece estar decorada com elementos alusivos aos bombeiros. Se assim é, poderemos imaginar que tenha sido uma viagem especial, com programa fora do normal.

Uma certeza, talvez mesmo a única: os bombeiros da Régua foram recebidos com toda a pompa e entusiasmo pela população de Chaves. Com o respeito que se impunha, de estandarte bem erguido, os nossos bombeiros desfilaram garbosamente pelas ruas principais, exibindo à frente homens bem conhecidos, como Lourenço Medeiros, mais tarde comandante, e o destemido patrão Álvaro Rodrigues da Silva.
Há viagens de comboio que valem a pena.

Uma delas, se ainda fosse possível, seria a da Linha do Corgo. Quem a fez no tempo dos comboios a vapor, dos velhos “Texas”, como eram carinhosamente conhecidos, teve a última oportunidade de apreciar o percurso de uma das mais bonitas linhas de caminho-de-ferro do nosso país. O traçado entre Vila Real e Chaves encerrou em 1990, o troço entre Régua e Vila Real encontra-se encerrado, por tempo indefinido, desde 2009, para obras de melhoramento.

Os que adquiriram bilhete na estação da Régua para a viagem de 19 de Julho de 1925 fizeram, com certeza, uma viagem inesquecível.

Primeiro, um percurso panorâmico, ao longo de 25 km, da Régua a Vila Real, que serpenteia por entre vinhedos e nos permite a contemplação das águas do Corgo, a correr lá ao fundo do escarpado vale, depois a atracção dos cumes do Marão a encimar as penedias agrestes na linha do horizonte. Depois de Vila Real, onde normalmente a locomotiva se reabastecia de água e carvão, a paisagem completamente diferente da veiga e planalto de Vila Pouca de Aguiar, avistando-se, ao longe, as límpidas águas do Tâmega.

Sem atraso no horário, este comboio especial fez as paragens habituais nos apeadeiros e estações mais importantes. Conhecedor experiente da arquitectura sinuosa da linha, o maquinista aportou “à tabela” à estação de Vidago. Em obediência às instruções do chefe da estação, parou o comboio em linha de estacionamento, como procurasse um tempo perdido, marcado pelo fascínio de uma nova época.

Antes, o comboio tinha feito uma breve pausa no apeadeiro de Zimão. Alguém mais crente no divino recordou a bondade do padre Manuel do Couto, admirado pelo povo da sua humilde terra natal de Telões.

Este missionário distinguia-se pelo atendimento em confissão de quantos a ele recorriam, pelo amor à escrita, pela paixão pelo bem e, muitas vezes, passavam pela sua pessoa maravilhosos e inexplicáveis milagres. Ouviam-se contar relatos dos seus milagres, no meio dos ruídos da composição em andamento, só possíveis num homem, como ele, a caminho da santidade: "O Padre Manuel ia muito prós lados de Chaves pregar. Ia quase sempre numa mula. Mas um dia, não sei porque razão (talvez a mula estivesse doente), resolveu apanhar o comboio na estação de Zimão. Como não tinha dinheiro para o bilhete ( andava sempre sem dinheiro, apesar da família ser rica), o revisor obrigou-o a sair, já ele estava sentado, dentro do comboio. O Padre Manuel, como era obediente, saiu logo para fora. Mas, mal pôs os pés no chão, a máquina deixou de trabalhar. As pessoas que estavam na estação e dentro das carruagens ficaram pasmadas e meio assustadas. Foi então que o Padre Manuel disse ao revisor: Ou me deixais entrar, ou o comboio não sairá da Estação. O revisor olhou para o chefe da estação e para o maquinista. Estavam sem pinta de sangue. O chefe da estação não esperou nem mais um segundo e deu ordem para o Padre Manuel entrar no comboio. O que se segue é que, mal ele pôs os pés na escada do vagão, o comboio começou logo a andar" (texto retirado do http://paradadocorgo.blogs.sapo.pt/).
Na estação de Vidago, a locomotiva parava para um descanso e o maquinista procedia a afinações. Como havia tempo de sobra, os bombeiros, na companhia de ilustres elementos da comitiva, que seguiam nas carruagens de 2ª classe, aproveitaram a frescura do dia para folgarem. Nas redondezas encontraram uma casa de pasto que lhes serviu um delicioso bacalhau frito e um vinho branco à maneira. Saíram acompanhados do fotógrafo de serviço, que não se esqueceu de fotografar a locomotiva, festivamente adornada com ramos de árvores e duas bandeiras, a ganhar fôlego para o resto da viagem. Como estava sol, desceram a alameda ladeada de plátanos até à entrada do majestoso Palace Hotel, único na beleza da sua fachada principal, deslumbravam-se com o parque de vegetação abundante. Ao lado, ficava a estância termal, apreciada pelos poderes curativos das suas águas, bem frequentada de aquistas metódicos nos tratamentos diários e movimentada de turistas do entardecer, perdidos na sombra e na frescura dos arvoredos.

O ambiente romântico do lugar inspirou a veia poética dos mais sensíveis, donde nasceram quadras de amor dedicados às namoradas. Desconheço se esses versos chegaram às mãos e ao coração das amadas, mas muitos anos mais tarde, alguém se encarregou de lhes desvendar a intimidade para todos nós, dando-se ao cuidado de os publicar nos jornais, hoje esquecidos.
O saudoso jornal dos bombeiros, “Vida por Vida”, foi o periódico escolhido por Horácio Moura Lopes, reguense por adopção, poeta sem livros editados, autor de escritos dispersos pelos jornais da época, para nos dar a conhecer o seu poema “A Luz Que Me Roubaste”:

“Não cesso de dizer a toda a gente
Que o fogo dos teus olhos me cegou:
Onde não me julgares, eu lá estou,
Ceguinho, com o meu bordão à frente.

Há preces em minha alma que pecou
Ao ver-te graciosa, docemente…
Em ti, o “não” fugiu e o “sim” não mente,
Entre nós a amizade já findou.

Não me escrevas, te peço, mais missivas
Para um cego as propostas são altivas.
Hoje, já não te devo interessar.
Mas, se por mim passares, tem cuidado…

A tua voz em timbre modulado
Pode bem minha luz recuperar!”

Como passageiro acidental desta viagem de comboio, fico maravilhado a reler os dois últimos versos, que revelam a pureza dos afectos do poeta à mulher. Emocionam-me como se eu pudesse sentir a sua dor antiga. O amor, sempre o amor, com as suas desilusões e as suas mágoas, tornam as pessoas mais frágeis.

Descubro, por mero acaso, que os versos do poeta Horácio Moura Lopes eram destinados a uma mulher de quem se apaixonou por toda a vida, até ao último dia. Deveria dizer melhor, a paixão mantêm-se na eternidade. Essa mulher acabou por ser muito importante na infância do autor destas linhas. Foi sua primeira professora. A Dona Esmeralda, como eu a conheci sempre, era uma educadora exigente, culta e rigorosa, que ensinou, numa velha escola primária, as primeiras letras e os caminhos da vida, começando por um lugar muito pequenino, como são as Caldas do Moledo.

Não podiam ficar mais tempo parados na estação de Vidago. Como a vida nunca pára, a viagem deste comboio tinha de continuar até ao destino, até à vila de Chaves, onde ia terminar em festa e em alegria. A distância a percorrer era ainda longa. Na marcha lenta do comboio, seriam precisas mais de duas horas de viagem e de conversas para o desembarque dos bombeiros e dos passageiros que os acompanhavam. Na gare da estação, mesmo antes de o fotógrafo fazer as imagens que iam ficar para a História, uma grande multidão de pessoas felizes havia de aguardar os forasteiros reguenses. Iriam viver um momento único, uma recepção de primeira, uma festa de esfuziante alegria, organizada para homenagear os heróicos bombeiros da Régua.
“Senhores passageiros, o comboio vai partir……” anuncia, em voz rouca e dolente, o chefe da estação de Vidago, aprumado num coçado fato cinzento, de apito e a bandeira de serviço na mão. Sente-se já o calor de um verão que se anuncia quente, a descer pelas montanhas verdejantes. A velha locomotiva dá o último silvo, deixando à sua volta uma negra nuvem de fumo e para trás a magia poética de um lugar eterno, onde havemos de regressar.

Com o comboio em movimento, aproveitemos esta vigem na linha do Corgo até ao fim, pela memória daqueles que tiveram o prazer de a fazer. Não tardará nada que este comboio chegue à estação Chaves. A partir desse momento, não deixem de continuar a sonhar porque a vida não será mais a mesma.

Afinal, nos nossos dias, não se pode repetir uma viagem de comboio na linha Corgo, como a que os bombeiros da Régua fizeram em 1925. Limitamo-nos a viajar nessas filigranas de carvão, pela linhas imaginárias da nostalgia, com a paragem nas estações e apeadeiros de memórias fugazes, percorrendo os lugares e as paisagens que, desde as nossas origens, fazem parte dos mapas da nossa geografia sentimental.
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida.
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Também pode ler aqui "Viagem Inesquecível a Chaves"
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VIAGEM INESQUECÍVEL A CHAVES

sábado, 15 de março de 2014

A PROMESSA CUMPRIDA

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A velha urbe flaviense recolhia-se às abas da Serra Amarela, vinda das bandas do Gerês, elevada nas redondezas do Quartel, protegendo a veiga produtiva, até se perder em domínios castelhanos. Fazia um frio de rachar e a neve branqueava as agulhas daquela.

Era uma cidade-quase-vila, de velhas pedras lambidas pela história e pelas águas do Tâmega, com uma ponte onde não se apagavam as marcas dos tropéis romanos, um castelo esquecido de rivalidades fronteiriças, invernos tristes e desconfortáveis, ruas desertas e janelas sem rostos. Tinha, contudo, o delicioso aconchego de província, as gentes festejavam os olhares e fraternizavam-se na proximidade. Os mais afoitos, quando os serões televisivos nacionais ou espanhóis não convidavam a ficar em casa, juntavam-se nos Cafés e no único Cinema. Cidade simples, sem afectações cosmopolitas, todos se conheciam a ponto de o carteiro distribuir a correspondência sem olhar para os números de polícia. Estranhos eram os militares que, ciclicamente, desciam dos comboios a abarrotar, acartando malas e garrafões, para tirocinarem na especialidade de caçadores, partindo, depois dela, anónimos e espaçados, para os barcos da lisboeta Alcântara, o destino marcado nos matos africanos. Mas, enquanto permaneciam, depois de um breve acomodar, misturavam-se satisfeitos na convivência civil, recebidos com carinho pela idiossincrasia local e a compreensão dos ditames que os obrigavam. O movimento comercial gerado era mais uma consequência do que uma exclusivista razão de interesse. Às vezes, ficavam raparigas à espera de carta, mas não se incomodavam muito quando elas não vinham porque havia sempre comboios a chegar à estação. Vendiam-se, da vizinha Galiza, caramelos e bebidas, roupas e perfumes que não precisavam de trilhar os desvios do contrabando; as gentes, de ambos os lados, cruzavam-se como se do mesmo mapa fizessem parte que a raia abria-se aos rostos e familiaridades acostumadas.

Luís, enfiado na cama, olhava, pelo janelo gradeado, a chuva repetitiva. Mexeu-se no beliche e aconchegou os cobertores. Precisava de dormir pois ainda teria um turno para fazer, mas, o sono não pegava. Na Casa da Guarda, o silêncio só era quebrado pela tosse do Sargento Féteira. Quantas noites destas, sem pregar olho, teria de passar nos anos que lhe faltavam para regressar à vida civil? África esperava-o. África, para ele era aquilo que o Aspirante lhe explicava na instrução, o que ouvia falar aos que já por látinham passado o mato, as picadas, as emboscadas, os cercos, os tiros, os corpos estropiados, o ter que matar para viver.

O Sargento voltou a tossir, parecia que lhe saltavam os bofes.

O que lhe convinha era a sorte do Ribeiro que, ainda no último domingo, entre uns copos, lhe voltara a repetir a mesma conversa: apanhara com duas granadas nas pernas e nenhuma rebentara. Caramba!, o tipo não andaria com aquela ladainha toda só para impressionar e se armar em valente? Ele nem era nada de especial, conhecia-o bem, uma vez até lhe veio pedir ajuda para uma questão antiga com o Zé da Formiga, que andava sempre a ameaça-lo que um dia lhe cortava o pescoço. Se calhar nem um tiro dera e para se enfatuar arrazoava aquilo.

O Sargento tossiu novamente, agora mais demorado, pareciam arrancos dos pulmões.

Coitado, o homem estava todo roto. Ele também dizia que as madrugadas africanas é que o puseram assim, o nevoeiro de lá era tramado, metia-se nos ossos e dava umas febres que até podiam matar. Havia de perguntar ao Ribeiro como era isso do cachimbo ou cacimbo, toda a gente o nomeava. O que ele mais queria não podia afiançá-lo: voltar vivo. Se morresse, que fosse num instante, sem dar tempo para se aperceber; assim: “um tiro, tau, e já foste”. O Aspirante Correia, que era da sua terra e lhe dava boleia aos fins de semana, bem lhe dizia para não ser pessimista e pensar em gajas boas para se distrair, sem se amarrar a nenhuma, e que haveriam de regressar os dois com os amigos e a família a botarem foguetes. De uma coisa ele não desistiria: viesse lá quem viesse, naquele corpo só poria a pata quem se antecipasse na sorte ou no fogo. Custava-lhe deixar a Mãe que passava a vida a dizer: «Mal tu partas, ponho luto e só o tiro quando regressares.» Pareceu-lhe que a chuva entrara na caserna e lhe inundava os olhos. Puxou o lençol sebado e limpou o rosto. O Pai não lhe custaria tanto, sempre bêbedo, dando mau viver, a entrar em casa aos berros, gritando que estava farto de trabalhar sem que o dinheiro chegasse, que o que gastava em vinho era um migalho de nada.

O Sargento teve outro ataque de tosse, aquilo dava-lhe como se um relógio despertador lhe marcasse os tempos de descanso e de tosseira.

Quando viesse também teria aquela tosse como a esgana de um cão? O Féteira não era mau tipo, um chico sempre com os regulamentos na boca, a ameaçar porradas a torto e a direito, aos berros de «vocês não me fodam! Eu quero é chegar ao meu tempo sem problemas e, depois, mandar-vos todos p’ró caralho! Ouviram ou querem que vá ao micro?!».

Mas o que lhe importava, agora, era a sua próxima licença de Natal, comer o bacalhau e as rabanadas da Mãe, mesmo que o Pai só pedisse vinho. Quem sabe se seria o último? Em África, diziam, não havia Natais nem nada, aquilo era sempre igual e tinha que se estar sempre com os olhos abertos para não se ser apanhado com as calças na mão.

O Cabo da Guarda nem precisou de o chamar. Mal o viu entrar no cubículo, levantou-se, vestiu o capote, enfiou o capacete, pegou na G-3, esperou que os outros se arranjassem e lá foi para o seu terço de sentinela. O bofetão da madrugada devolveu-lhe a realidade. Bateu várias vezes com as botas no chão, esfregou as mãos, bufou-lhes, e, trocada a senha, plantou-se na guarita. A manhã estava vai-que-não-vai para nascer, o rascunho do sol ganhava definição, já havia barulhos e vozes domésticas nas casas rentes ao muro. Sua Mãe, a esta hora, devia estar a preparar-se para ir ao Corgo lavar a roupa; o Pai, esse, só pelas sete costumava terminar a cura da borracheira para a reiniciar com um naco de broa, uma fatia de presunto e um copo de aguardente que a Tia Francisca do Alto – secular e durázia governanta da quinta em que ele, por intercessão dela, trabalhava aos dias – lhe dava, às escondidas dos patrões, com o carinho condoído por alguém que substitui o filho que não se teve.

Luís, no seu posto de inútil vigilância, pedia que o sol se apressasse e sonhava com o dia da sua licença de Natal. Ele ignorava que aquele seria - felizmente que ninguém sabe quando é – o seu último Natal.

Luís morreu, num dia de Novembro de mil novecentos e sessenta e oito, na serra Mapé, ali onde a Frelimo não suportava a tropa do puto. O destacamento de que fazia parte, incumbido de subir a serra para dar protecção aos fuzileiros que terminavam a nomadização, descia para Macomia com a miragem de uma semana de descanso na praia de Wimbe. Uma bazucada não lhe deu tempo para chamar pela Mãe. Morreu
como quisera: “tau, já foste!”. A granada embateu no ponto em que a porta se ajusta ao tejadilho, ricocheteou para o interior da cabina da Berliet e, num estoiro de fim do mundo, desfarelou-os, a ele e ao condutor, enquanto o resto da coluna, saltando das viaturas, despejava carregadores e filhos da puta à toa numa resposta de desespero e raiva à emboscada. Foi enterrado, a aguardar vez para um calado regresso em urna de chumbo, no cemitério de Porto Amélia, debruçado para o Índico. Não soube se a serra Mapé era Amarela e se o Natal africano tinha frio e neve.

O Aspirante Correia, já Alferes, enquanto o acompanhava, sentado no Unimog a cair aos bocados, ao lado da urna, olhava a medalha que ele lhe entregara, numa premonição inocente, para «no caso de eu marar, veja se a entrega à minha Mãe».

Cumpriu o que lhe prometera. Numa tardinha de Abril, quando os cavadores se recolhiam para o caldo e o apresigo, viu, da janela, como um dó, o luto da Silvina com um caneco de água à cabeça. Hesitou outra vez - há dias que se consumia na irresolução -, mas, queria livrar-se daquele carrego. - «Tem de ser hoje!». - Saiu de casa e interrompeu-lhe o caminho.

- D. Silvina – pigarreou -, tenho-me esquecido de lhe entregar uma coisa que o Luís me pediu.

- Nem a quero ver, senhor – disse-lhe numa voz enregelada, deixando-o paralisado pela rapidez da compreensão do seu intuito. - Agradeço-lhe a sua boa vontade, mas já nada adianta para a minha vida. – Os olhos não tinham lágrimas, só um frio caliginoso. - Enterre-a ou deite-a fora, dei-lha em vida não a quero na morte.

- Compreendo-a - gaguejou com receio de se abater - , mas tenho que cumprir a promessa. – E empolou a palavra num apelo a escrúpulos religiosos.

Silvina olhou-o num instante que lhe pareceu implorativo (não decifrou se a água que lhe cobria os olhos escorria do caneco ou lhe nascia no peito), abriu a mão direita e disse: - «Deixe-a ver.» Meteu- a no bolso do avental e retomou o andar.

A medalha - nunca o esqueceria - tinha uma imagem da Senhora da Graça e no verso uma frase: «Oferece a tua Mãe.»
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória
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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Apeadeiros da minha infância... LOIVOS

Quando, de Pereiro de Agrações (terra de minha saudosa Mãe, D. Nair Gabão) , transpúnhamos serras, em férias escolares, a pé ou de burrico até Loivos (ou vice-versa), em busca do comboio para a Régua...

Lamentando a tal cruel e moderna 'extinção' que não se condói com a MEMÓRIA, nem com o que é belo, útil e de obrigação preservar, transcrevo:

""Loivos foi extinta em 2013, no âmbito de uma reforma administrativa nacional, tendo sido agregada à freguesia de Póvoa de Agrações, para formar uma nova freguesia denominada União das Freguesias de Loivos e Póvoa de Agrações da qual é a sede Chaves.
A foto editada, pertence a um antigo apeadeiro, isto é, a uma estação de comboios secundária. Isto serve para elucidar algumas pessoas que têm total desconhecimento de tal Estação. Segundo versões de populares, esta estação ficou mais desviada da Aldeia de Loivos, devido às influências das gentes de Vidago, que não queriam que a estação ficasse muito longe de Vidago, e assim, como Loivos era uma aldeia de grandes dimensões e comercializava muitos produtos agrícolas, esta estação ficou entre Loivos e Oura, vê-se claramente que a linha teve que ter muitas alterações e muitas curvas, para que pudesse chegar a Vidago.""""
- Fontes de texto e imagens - Arquivos de Jaime L. Gabão, Wikipédia e blogue "Engenheiros do Riso.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Um ilustre benemérito

Do ilustre benemérito senhor António José Rodrigues guardo eu uma primeira imagem que me ficou já remota, já delida pelos anos que passaram. Nesses recuados tempos, teria eu uns seis ou sete anos, entrei com meus pais no estabelecimento comercial do senhor António José Rodrigues, conhecido no meio pela alcunha de Mumu. Ainda hoje tal epíteto me escapa ao entendimento e também me escapa, ou já não me lembra, qual a peça ou artigo que meus pais foram ali comprar. Seria uma peça de riscado ou fazenda, seria pano-cru ou seria apenas uma meia dúzia de botões? Não sei… O que sei é que a loja do Mumu se situava no enfiamento da rua dos Camilos e um pouco adiante da Pensão Douro.

A bem dizer, situava-se muito perto da estação de comboios. Toda a clientela que viesse às compras à Régua e que ali se apeasse dos comboios ou das camionetas de carreira, tinha por perto a loja do Mumu.

Quando há muitos anos ali entrei, levado pela mão de meus pais, a loja pareceu-me algo modesta, um tudo nada envolvida de soturnidade mas, ainda assim, bem rica de prateleiras, com um variado mostruário de tecidos e fazendas. Ao tempo, foi essa a impressão que me marcou e da qual me lembro.

Também me lembro que, às tantas, uma frase ou um dito do senhor Rodrigues fez com que meu pai risse uma boa gargalhada mas, por qualquer minha distracção infantil, não dei tento do gracejo ou da galhofa, sei lá se de alguma malandrice.

Mas, no correr dos anos, sei que o comércio do senhor Rodrigues era comércio de boa nomeada, boa aceitação e boa freguesia. Ali se vendiam variados tecidos e fazendas, chitas e riscados, xailes e camisolas, cobertores e atoalhados, colchetes e botões. A metro ou à dúzia, tudo era, modo de dizer, um ver se te avias. E a verdade é que o senhor Rodrigues, anos a fio, lavrou nesse comércio as raízes do seu trabalho e do seu desafogado viver.

Digamos, portanto, que tal negócio não lhe foi desventuroso. Digamos ainda que o senhor Rodrigues fazia todos os dias uma boa caminhada desde a residência, no Senhor dos Aflitos, até à sua loja de comércio.

É crível que, passo a passo, num relance de olhos, visse e sopesasse também o negócio dos outros, fosse o chamariz das montras, as particularidades de um amplo balcão ou até o deslumbramento diante da cintilação do oiro e da prata no mercado das ourivesarias. De caminho, era ainda a louvação dos bons-dias e boas-tardes dadas aos passantes e convizinhos. E, se calhar, o senhor Rodrigues ia congeminando sobre o deve e haver dos seus negócios, como quem deita contas à vida. Contas feitas, era como se um fogo de bem-querer e bem- fazer lhe incendiasse o espírito e abrisse os caminhos do humanitarismo. Por acréscimo, o senhor Rodrigues ficou milionário da solidariedade e da benemerência, afeiçoada à honrada e luminosa repartição dos bens.

Eu, a fazer fé nos desígnios deste mundo, direi que, por vezes, as riquezas podem ser muito pobres e miserandas. Tais riquezas, se geradas por uma ambição desmedida e pela cainheza do entesoiramento podem desfazer-se num monte de cinzas e num rescaldo de escombros a céu aberto. Podem ter, afinal, estes acabamentos, estes inesperados desatinos.

Em jeito de conclusão direi que o benemérito António José Rodrigues legou grande parte dos seus bens à Santa Casa da Misericórdia e, principalmente, à corporação dos Bombeiros Voluntários.

Acabou seus dias acamado num quarto particular do hospital da Régua, quarto que ficava mesmo defronte da sala de partos, ali onde se definiam as linhas de toda uma Vida por Vida, ali onde a religiosa Irmã Maria foi parteira de todos os meus filhos.

Eu, já licenciado em medicina, pude visitar o senhor Rodrigues uma ou outra vez e pude ver que tinha diante de mim um cavalheiro já de certa idade, com uns dizeres modestos e suaves, como que à espera do fim. Ao lado, sobre a mesinha de cabeceira, sobressaía uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, encimada pelo fino recorte duma coroa de prata.

Essa imagem foi doada à Irmã Maria em reconhecimento pelos serviços de enfermagem prestados ao senhor Rodrigues mas ela bem sabia do meu gosto por antiguidades e velharias, com particular apetência pela arte sacra. Por isso, alguns dias passados, não estranhei que me entregasse a imagem da Nossa Senhora da Conceição, recatadamente enfiada num saquito de plástico.

E assim, por linhas travessas, salvo seja, a benemerência do senhor António José Rodrigues chegou até mim.
- Peso da Régua, 30 de Julho de 2013, Manuel Braz de Magalhães.
  • Também neste blogue em 7 DE DEZEMBRO DE 2009 - O benemérito António José Rodrigues por  J. A. Almeida.
  • Publicado no semanário regional "O Arrais", edição de 7 de Agosto de 2013:

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texo e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Também publicado no jornal semanário "O Arrais", edição de 07 de Agosto de 2013, Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A Minha Rua dos Camilos

Assalta-me sempre o sentimento da saudade, quando deito os meus olhos sobre uma fotografia que tenho exatamente da rua dos Camilos, que mostra o que ela era há cerca de 79 anos, isto é, na segunda metade da década  dos anos 30 do século passado, principalmente o trecho desta rua que ia da curva onde funcionavam as oficinas dos Janeiros até ao entroncamento com a rua de Serpa Pinto. É um trecho que me recorda os meus doces  tempos de rapazote e, até, os da meninice.

Ela era uma rua sem perigos, segura, onde todos se conheciam. Na fotografia que tenho presente, salienta-se o prédio onde morava o meu patriarcal avô – Gaspar da Silva Monteiro, de muito boa memória  e onde eu vivi dos 11 aos 14 anos de idade. Este prédio, na fotografia, encobre um outro, contíguo, onde eu nasci e onde vivi até um pouco antes de 1930. O prédio onde viveu o meu avô está separado do da Casa do Douro pela rua da Alegria, o qual por sua vez tinha em frente, no passeio oposto, a casa do “Menino d'Ouro” e uma pequena loja, onde o Né (Rodrigues) viria a montar a sua ourivesaria. Um pouco mais ao lado, a casa onde moravam os Coutinhos, que tinham um seu denodado representante no corpo ativo dos nossos  humanitários Bombeiros.

Caminhando neste mesmo passeio, iríamos encontrar, um pouco mais adiante, uma barbearia, uma outra loja da família do Né e a oficina do latoeiro, de cujos proprietários não me lembram os nomes. Dois passos mais ao lado íamos encontrar o prédio e a loja do Valente Velho e a padaria do Azevedo, um dos fundadores do Sport Clube da Régua, já à esquina da rua. Nesta bifurcação com a rua de Serpa Pinto, estavam as lojas dos Fortunatos, do Borrajo e do Zé Pinto, todos estimados comerciantes. Alguns anos depois, iríamos ver fixado nesta bifurcação um polícia sinaleiro, quando o trânsito automóvel se intensificou.

Se nos aproximássemos de novo da casa do meu avô, encontraríamos um quelho, logo à entrada do qual, se encontrava uma outra ourivesaria e, ao fundo, as limitadíssimas instalações dos Bombeiros Voluntários.

Nesta fotografia que tenho referido, evidencia-se o intenso movimento da rua, mas sendo ainda pouco denso o movimento automóvel, que eram poucos os carros existentes na altura. Pelo contrário, era notável o movimento dos carros de bois, que carregavam as pipas, e passavam chiando, chiando, animando os animais. Naquele tempo, desfilavam na rua as varinas com os pregões, anunciando os seus produtos, e passavam outras mulheres, que carregavam grandes cestas com pão para entregarem a freguesas certas. Era também significativo o movimento de outras mulheres, que carregavam a roupa que lavavam no rio e que, depois, coravam.

Pouco antes da fotografia, fora aberto o novo edifício da Casa do Douro, que ficou repleto com os trabalhadores que nele serviam, sendo comum encontrarem-se pequenos grupos de pessoas a conversarem à porta de entrada da instituição, que também era um ponto de encontro das pessoas. A Casa do Douro era uma pedra preciosa para a Régua e para todo o Douro, era uma instituição importante, só comparável aos regimentos militares de Vila Real e de Lamego e ao próprio caminho de ferro, que serpenteava por toda a região e a fazia feliz.

A rua dos Camilos – o centro da Régua, outros lhe chamavam o “cimo da Régua” – parecia já, em verdade, um formigueiro de gente, de gente ativa, de gente ligada às vinhas e ao comércio, principalmente. Do alto das varandas das casas em que vivi – a casa do meu avô tinha marcado o número 44 – eu passava muito do meu tempo de rapaz a admirar o bulício de tanta gente, muito me admirando a pacatez das ruas de Lamego, que eu visitava com frequência.

Na altura das vindimas, todo o movimento da rua  mais aumentava ainda, merecendo-me destaque a passagem das rogas para as vindimas, que vinham de Trás os Montes e da Beira, homens e mulheres cantando, assobiando pelos seus apitos, tocando bombos e tambores, chamando, com a sua alegria, a população às janelas e varandas, toda a gente em festa, todos se correspondendo.

A rua dos Camilos, correndo desde a rua de Serpa Pinto até à estação dos comboios, tinha, neste lado contrário ao do trecho já referido, aspetos de carater inteiramente diferenciado, pois que víamos muita gente que não conhecíamos a sair e a entrar para a estação a todas as horas do dia, e, na situação de espera, alguns (ainda não muitos) carros de transporte coletivo de passageiros, de Lamego e de Castro Daire, alem de um ou outro táxi, concorrendo com os camiões.

Não muito longe da Estação, quase em frente a um celebérrimo hotel Borges, a ponte dos Guindais, que atravessava a linha dos comboios, e, que naquele tempo, usava de má fama: toda a gente a via, mas ninguém falava dela, salvo em dichotes de humor malicioso. O respeito, respeitinho é muito lindo!...Entre este pontão e o Largo da Estação estava erigida a linda Capela do Asilo, outra instituição meritória, que honrava a Régua.

Todas as referências desta já extensa memória se referem - há que o esclarecer – à vida diurna da Régua, tal como eu a senti, mas, após as 21 horas de cada dia, a vida da população em geral, era quase impercetível. As pessoas tinham de ir cedo para a cama para repousarem, que o dia seguinte seria de intenso trabalho e de negócios, como a rua dos Camilos bem o demonstrava. Só alguns jovens perturbavam os silêncios das noites, para o que a simples presenças de meia dúzia de elementos da GNR (aquartelada no fundo da Rua da Alegria) chegava perfeitamente para evitar excessos, assim se respeitando a ordem pública, porventura sempre em risco, tão insuficiente era a iluminação existente.

A atividade cultural era então muito restrita, ficando-se, praticamente por pequenos encontros de alguma gente mais informada aos fins da tarde, junto dos estabelecimentos do Borrajo e do Zé Pinto, alem de uns convívios do doutor Júlio Vilela com alguns dos seus admiradores, convívios que fazem parte da própria história da Régua, sempre a altas horas da noite, constituindo notas de amizade e de franca lealdade, que ainda hoje, gostosamente relembro. De referir que as conversas tocavam os assuntos mais diversos, com a exceção dos assuntos políticos, que isso não se coadunava com o espírito do regime que, na altura, vigorava.

Havia na época dois cafés nas imediações das oficinas dos Janeiros, ambos com uma frequência não muito intensa, onde os clientes mais velhos iam saborear o “cafezinho do costume”, e, os mais novos, iam jogar um pouco o bilhar e alongar-se em conversas singelas, embora disputadas, sobre o Benfica e o Sporting, que o Porto ainda não tinha atingido a maioridade desportiva. Também aqui, nos cafés, não se falava de política, nem sequer quando, em 1936, da guerra civil de Espanha.

Os meus olhos de hoje dão-me a leitura das coisas daquele tempo, tal como as senti, naturalmente.

Nas descrições que fiz, no entanto, cometi um lapso, que seria imperdoável, se não o confessasse: não referi que do cimo da rua da Alegria, já na rua dos Camilos, se avista, dominante, o nosso rio Douro, uma enorme corrente de água - quando das cheias, quase imensa - que sempre condicionou os nossos sentimentos. De um rio bravio e de que gostávamos, fizeram os homens um lago calmo, navegável, mas com uma faceta ou com outra,  um rio quase espiritual, mais se ainda se não esquecermos o valor da faina única dos seus “rabelos”, que noutro tempo garantiram a chegada do néctar duriense à cidade do Porto e à consequente exportação.

A fotografia não nos mostra o rio, mas nem um só reguense ignora o seu rio lindo, que lhes corre aos pés e que é a razão do nosso amor à região que ele, amorosamente, vai continuar a saudar por toda a eternidade.

Que saudades eu tenho daqueles tempos, dos amigos, das brincadeiras!

Era uma felicidade plena, que sempre se sobrepôs a todos os contratempos da vida!
- Abeilard Vilela, Janeiro de 2013

Clique  na imagem para ampliar. Sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Recortes da net: Era uma vez um COMBOIO HISTÓRICO ? - A Linha do Tua

Do Blog "Memórias... e outras coisas... BRAGANÇA" - Filme documentário de Jorge Pelicano sobre a linha do Tua.

«Pare, escute, olhe» é um filme documentário de Jorge Pelicano sobre a linha do Tua, cuja antestreia ocorreu em Mirandela a que assistimos. Foi vencedor de sete prémios nacionais e está disponível em DVD de 30 minutos, mas tem gravações de duas horas.

O guião pega na causa da linha do TUA, em que se retrata bem alguns políticos troca-tintas. Começa na grande manifestação de 1992 com a supressão do comboio entre Mirandela e Bragança, para desembocar na grande barragem do Tua. Esta poderia ser desdobrada em duas ou três e poupava-se a jóia da engenharia ferroviária portuguesa do século XIX, com um potencial de desenvolvimento imenso que seria posto a render em qualquer país desenvolvido.

Pelo que se tem divulgado Mirandela com este filme seria de inteira justiça que a Assembleia Municipal de Mirandela, registasse para o Jorge Pelicano um «Muito Obrigado».

A mítica linha, em bitola reduzida, e o comboio quase faziam parar o relógio do tempo. Neste momento, era importante registar no terreno a sua memória, pelo que desafiamos os municípios ribeirinhos (Mirandela, Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, Murça e Alijó) a traçarem um «trilho pedestre Linha do Tua» intermunicipal (também para BTT).

Sugerimos, ainda, ao Município de Mirandela que faça um núcleo museológico da linha do Tua, com um misto de espólio de material ferroviário, fotografias antigas e com suporte digital. Ao museu poder-se-ia chamar «Memória das Terras de Mirandela».
- Por: Jorge Lage, in jornal.netbila.net
Publicada por Hengerinaques em Terça-feira, Novembro 06, 2012
"Pare, Escute, Olhe" de Jorge Pelicano, vencedor de 7 prémios nacionais, incluindo Melhor Documentário Português no DocLisboa 09, agora numa edição dupla de DVD. Mais de duas horas de extras, onde se inclui imagens antigas da linha ferroviária do Tua, mini-documentários sobre a ferrovia, making of, banda sonora original, fotos, entre outros.
- Disponível para venda na FNAC, El Corte Inglês e em http://coagret.wordpress.com/
  • Alguns post's neste blogue sobre os históricos e tradicionais comboios do Douro em vias de desaparecerem.
Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Transcrição do Blog "Memórias... e outras coisas... BRAGANÇA". Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.  

sábado, 3 de novembro de 2012

Retalhos da net - Era uma vez um combóio lá pelo Douro...

Transcrição - Out 27 18:00 

Estações Esquecidas em Vila Pouca de Aguiar

A Casa da Cultura de Vila Pouca de Aguiar acolherá, entre sábado 27 de Outubro e 25 de Novembro, a exposição Estações Esquecidas – 125 anos da Linha do Tua, com fotografia e vídeo de Sílvia Gonçalves.
Esta coleção permitirá fruir da riqueza natural da linha ferroviária do Tua e abrir espaço à reflexão sobre o seu futuro, num momento em que parte significativa do percurso se encontra desativada.

A relação intrínseca entre a natureza da exposição e a história do edifício da Casa da Cultura, antiga estação da Linha do Corgo, constituirá o mote para a tertúlia de inauguração de Estações Esquecidas – 125 anos da Linha do Tua. A iniciativa, marcada para sábado 27 de Outubro, pelas 18 horas, visa resgatar Memórias da Linha do Corgo, histórias de partidas e chegadas, peripécias e romances na antiga estação ferroviária de Vila Pouca de Aguiar.

Os participantes da tertúlia estão convidados a contribuir, com fotografias, documentos ou objetos relacionados com a Linha do Corgo, para a exposição permanente que está a ser desenvolvida, para a Casa da Cultura, pela VitAguiar, EM.
- Redacção

Clique  na imagem para ampliar. Imagem e texto do site do " @tual - Diário do Alto Tâmega e Barroso trenscritos e editados para este blogue com a devida vénia - Sugestão de Carlos Pinheiro e José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

BOMBEIRO AO MEU JEITO

De certo modo sempre tive os nossos Bombeiros dentro do meu ser.

Em criança era o saudoso Abílio T. Dias, carinhosamente “Bibi” lá em casa, que mal a sirene soava o seu “chamamento”, logo largava o que quer que fosse que o ocupasse, na pressa de chegar, dizendo para o meu pai:-padrinho está a tocar a sirene…

Quando mais tarde chegava, quantas vezes só no dia seguinte, o ritual de sempre. Ardeu muito, onde foi e muitas mais perguntas que trouxessem algum alívio pela aflição que sempre sentia, como se fossem os meus que estivessem em causa. Se porventura era algum acidente de estrada, relatava-nos os danos das viaturas e a situação clínica dos ocupantes.

O “Bibi”, no seu jeito humilde, mas de muita satisfação e maior orgulho pela farda que garbosamente envergava, era a minha referência em cada desfile, que eu não perdia nunca, pendurado na varanda lá de casa, na Rua dos Camilos.

Na adolescência subi muitas vezes as escadas até lá acima, para ir ao Sr. Marinheira levantar e entregar os primeiros livros, não os escolares, que esses transitavam do meu irmão mais velho. O pingue – pingue também me levou muitas vezes ao Quartel.

Com o primeiro ordenado veio a minha inscrição de associado.

Um dia, já na ternura dos 40, o Sr. Eduardo M. Sebastião convidou-me para fazer parte da lista para a direcção. Ainda não tinha acabado de expor o projecto que tinha em mente e já o meu, claro que sim, o interrompia.

Um convite tão honroso só podia ter aquela resposta.

Ao fim de 6 anos, o amigo Eduardo já com 20 anos de director deu por finda a missão.

O Dr. Alfredo Almeida deu-lhe continuidade e ao convite formulado para que eu continuasse, anui com a mesma alegria e satisfação.

Nesses 12 anos, o apelo das marchas e aprumo da Fanfarra, que me acompanhava desde a 1ª apresentação em 15 de Agosto de 1976, aquando das Festas em Honra de Nª Sª do Socorro, avivou-se.

Como o jeito para os instrumentos musicais era pouco, o meu escape foi assumir a direcção da mesma.

Em muitas cidades, vilas, aldeias do nosso cantinho à beira-mar plantado elevei bem alto o Estandarte e marchei consciente que ia ali o meu Torrão Natal. Quanto orgulho e porque não, vaidade até, ao ouvir à nossa passagem os aplausos e a exclamação, são do Peso da Régua, a que se juntava no final o reconhecimento das Comissões de Festas.

Tínhamos que declinar muitos convites, pois a agenda ficava preenchida de um ano para o outro.

Com os nossos Bombeiros tornei-me ainda mais reguense, ao calcorrear e conhecer todos os cantinhos das nossas freguesias, em angariação de fundos, quando o cofre normalmente vazio, requeria algum fundo de maneio extra para socorrer a tantas necessidades.

Um dia a minha avó nos seus 86 anos, só pedia que a levassem no carro dos Bombeiros.

Não queria ir “fechada” num carro fúnebre. O saudoso Comandante Gouveia e a Direcção fizeram-lhe a vontade. O Buick levou a minha querida avó até à última morada. Vou ficar em dívida o resto da minha vida.

As medalhas de bronze e prata com que me galardoaram aquando dos 5 e 10 anos de bons serviços directivos estão orgulhosamente encaixilhados e expostas na sala de visitas ao lado do meu mais querido legado, os meus filhos.

Aos nossos Bombeiros o meu sincero reconhecimento por me terem permitido pertencer a tão honrosa, altruísta e solidária Instituição.

P S - O bom amigo Dr. Alfredo Almeida, há bem pouco tempo, foi o meu cicerone na cortesia de apreciar as recentes obras de requalificação do Quartel Delfim Ferreira. Uma obra digna de realce e de visita obrigatória.
- Miguel Ribeiro Gonçalves
Ao Dr. Alfredo Almeida                                               
Digmo Presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

Caro amigo,

Fico-lhe grato pelo apreço que deu ao meu artigo, o que para mim foi uma surpresa.

Eu apenas disse o que penso, pois não aceito que certos críticos, que se calhar nunca sentiram a dor duma queimadura e não sabem distinguir o imaginário duma realidade, venham à praça lançar bocas que apenas servem para desmoralizar aqueles que, estóica e voluntariamente, expõem as suas vidas ao serviço da vida dos outros; mesmo que involuntariamente, cometam erros, que as circunstancias tantas vezes tornam inevitáveis; apagar um incêndio como aqueles a que assistimos pela TV, não é o mesmo que apagar a chama duma vela em dia de aniversário e cuspir nos dedos para apagar o pavio: do lado de cá tudo parece fácil, mas do lado de lá, no terreno, o cenário é real e não imaginário!

O Dr. pede-me que escreva sobre os bombeiros da Régua; porém,  eu não tenho matéria suficiente para o fazer, porque, embora o meu apreço pela instituição, não acompanhei de perto a sua história. Posso, no entanto, informá-lo da razão do meu orgulho por ela, que não é exclusividade minha, mas sim, como sabe, o orgulho de quase toda, senão mesmo toda a população do concelho, desde há muitos anos.

Como sabe, eu era ferroviário. Durante a década de 50 do século passado, era eu então factor de 2ª classe, estava na bifurcação do Corgo, a regular a circulação dos comboios procedentes da linha do Alto Douro e da linha do Corgo com destino à Régua e vice-versa, e a entrada e saída do material circulante de e para as oficinas ali existentes.

Um dia, numa conversa a propósito do incêndio da Casa Viúva Lopes, (ao qual não assisti) com o Manuel Fernandes, um operário (já falecido) que era bombeiro e trabalhava naquelas oficinas, fiquei a saber o prestígio que os bombeiros da Régua ao longo da sua historia  haviam granjeado a nível nacional; prestígio confirmado mais tarde pelo Manuel Montezinho, um dos mais acérrimos defensores da construção do conhecido por “bairro dos bombeiros”, quando era membro da direcção, então presidida pelo senhor Dr. Aires Querubim.

Fiquei entusiasmado, propus-me ser sócio da associação e, salvo o erro, terá sido o Manuel Fernandes a tratar da minha inscrição que, se a memória me não falha, com o número 1025. Não fiz nada de especial; afinal, no seu lema de vida por vida, nunca se sabe se um dia, um bombeiro perde a sua vida, para salvar a minha. E quem diz a minha, diz a de muitos outros.
Ninguém é obrigado a ser sócio da associação. Porém, para com uma instituição de voluntários, cabe-nos o dever moral de, voluntariamente também, contribuirmos para a sua grandeza que analogicamente, contribui para o orgulho da nossa terra, competindo à sua direcção e aos próprios bombeiros, com a sua dedicação, a nobre tarefa de alimentá-lo.

Da Régua, uma a uma, todas as instituições nos têm levada. Porém um dos mais ricos patrimónios desta cidade, é a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso Régua, e essa, ninguém nos pode levar.

Com os melhores cumprimentos, 
- José de Oliveira Guerra, Peso da Régua 05-9-2012
  • Bombeiros da Régua no Google (imagens)
Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 13 de Setembro de 2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue sómente com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Retalhos da net: A INACABADA LINHA FÉRREA DE LAMEGO À RÉGUA

TranscriçãoOs efeitos da Segunda Guerra Mundial foram marcados em Portugal com uma certa instabilidade política e social, havendo constantes mudanças governamentais até 1926, sentindo-se os reflexos  nos Ministérios da Agricultura, Comércio e Indústria.
O caminho de ferro construido até então, destinado também a quebrar o isolamento a populações de localidades ermas, foi um dos veículos pelos quais muitos jovens imigraram com destino ao Litoral e grandes urbes, onde depositavam  a esperança dum emprego condigno e melhor qualidade de vida.
O êxodo dos jovens e da mão de obra do interior atingiu proporções preocupantes.
A crise, atingindo a manutenção das vias férreas, proporcionou em simultâneo a circulação automóvel, já que, também a rede de estradas nacionais proporcionava fluxos rodoviários às principais cidades do País.
A verdade é que na consequência do mal estar politico e económico vivido em Portugal até 1926, os caminhos de ferro não foram actualizados, não houve a manutenção devida, o material circulante estava ultrapassado, e era evidente uma instabilidade na instituição CP.
A comercialização e acessibilidade aos veículos automóveis, criou nas directrizes políticas, investimentos na rede viária, ficando para segundo plano a implementação e execução de nocas linhas de ferro.
Uma atitude inversa nos planos dos governos em relação às acessibilidades, ao interior, neste caso, à região do Douro, originando então neste território uma progressiva letargia em rentabilizar e manter todas as estruturas férreas construidas até então e paragem dos projectos e trabalhos duma nova linha no Douro Sul.
Seria a linha férrea Régua-Vila Franca das Naves, projecto cuja rentabilidade económica acabou por se questionar quando, se iniciaram os trabalhos entre Régua e Lamego e pouco depois pararam por motivos institucionais, económicos e políticos.
As características técnicas subjacentes ao traçado da linha, designadamente no que se refere ao declive máximo que as máquinas de então conseguiam vencer, exigiam que esta linha férrea possuísse um percurso muito ondulante.
A linha nascia na Régua, atravessava o rio Douro através de uma nova ponte de pedra construida então, mais à frente continuava numa outra ponte sobre o rio Varosa e, seguindo um traçado que se aproximava de Cambres chegava a Lamego até ao local onde hoje se situa o Palácio de Justiça e a central de Camionagem.
Os carris, foram entretanto transportados para o cais da Régua, e nesta precisa fase final dos trabalhos, por directrizes superiores, a obra em causa foi
considerada economicamente inviável, e então abandonada.
É claro que um dos grandes responsável por esta decisão foi a concorrência movida então pela camionagem para o mesmo trajecto.
Poucos anos depois quando os executivos competentes se afrontaram com a ruina em que
se encontrava a velha ponte em ferro da Régua, transformaram a abandonada ponte ferroviária para o tráfego rodoviário, alargando o seu tabuleiro.
Alguns troços foram adaptados ao tráfego rodoviário, mas a maioria do circuito permacece em bom estado.
Foram as políticas a priveligiar o litoral, a falta de estratégias turísticas tão importantes e de louvar neste território de Portugal, e com a mais valia nos tempos de hoje em rentabilizar turisticamente as linhas férreas aferentes ao Douro, que provocaram o desacelaramento e desenvolvimento deste interior, tornando-o pobre e descapitalizado.
Surge recentemente o turismo do Douro com a navegabilidade turística deste rio.
É importante que as zonas adstritas do Douro Norte e Douro Sul sejam divulgadas e façam parte dos roteiros turísticos de milhares de pessoas que anualmente visitam esta zona do País
  • Sobre comboios neste blogue !
Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Transcrição de texto e imagens 'daqui'. Permitidos copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue somente com a citação da origem/autores/créditos. 

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Retalhos da net: Douro - O paraíso esquecido e as histórias que moram lá

- Transcrição de "VISÃO" - 30 de Agosto de 2012:
Reportagem
Douro: O paraíso esquecido e as histórias que moram lá
À margem das excursões turísticas, a região Património da Humanidade ainda guarda memórias, figuras e sabores que atestam o seu caráter genuíno, resistente e sentimental. A VISÃO desta semana propõe-lhe uma viagem aos segredos, dores e alegrias do vale encantado.

Diz-se que quando um galo canta em Barca d'Alva é ouvido em três distritos e dois países. A ponte Sarmento Rodrigues une Bragança e Guarda. A província de Salamanca eleva-se ali ao pé. É aqui que o Douro cai, por fim, nos braços portugueses depois de namoriscar margens ibéricas desde Miranda. Do miradouro do Alto da Sapinha, vê-se tudo isto, mais as águias, imperiais, planando. O resto imagina-se. Visto de perto, este prodígio de homens sobre a natureza árida também encerra fantasmas. Quem diria? Uma estação de comboios, das mais belas que o rio beijou, está entregue a fatalismos e memórias de lua-de-mel. Pelas ruas, homens sonâmbulos ruminam conversas mortas. Esplanadas cansam-se da babugem aos novos cavalos de Troia do rio, cruzeiros a abarrotar de turistas rapinando a paisagem com olhares gulosos, mas apenas isso. "Chegam, entram ou saem dos autocarros, e seguem viagem. É negócio que não deixa um cêntimo nestas terras", lamenta-se Mário dos Anjos, testemunha diária de rebanhos excursionistas com karaokes de Malhão a bordo.

Não se vive dos olhos pasmados ou espantos que vêm e vão.

Oriundo de Vilar de Amargo, o feitor da Quinta da Batoca tem um pretérito imperfeito a bailar na boca. As terras que, do alto de Ligares, piscam o olho a Barca d'Alva significavam tudo para ele. A quinta, das maiores do Douro, "era um jardim perfumado, de vinhas, olivais e amendoeiras", gerando cobiças e atiçando invejas. O escritor Guerra Junqueiro, proprietário, conquistou-a, a palmo, à aridez e pedra rude, mas também à manha e astúcia de uns quantos. Com prosa bruta inscreveu na paisagem um poema visual, de enlevos homéricos. Deixou versos pela casa, esboçados na cal, que agora se vão descascando e apagando como recordações ténues. "Plantou a maioria das oliveiras e ainda se dedicava a partir miolo de amêndoa na varanda, ao serão", conta, de ouvir, Mário dos Anjos.

A casa está trancada há décadas. A fundação que leva o nome daquele que zurziu o sarrafo na monarquia e no povo "resignado" bem tentou abrir portas a residências artísticas, inspirando exuberâncias literárias ou da mesma espécie. Nada feito, sentenciaram os poderes de Estado e a penúria autárquica. Mágoas que nem o restauro dos cardenhos, a apanha da azeitona ou os cachos que Mário leva ao Porto conseguiram apagar.

O LAGAR, TRADIÇÃO REQUINTADA
Longe vão os tempos dos "parranas engravatados" que surripiavam a região e Eugénio de Andrade imortalizou. A cada época a sua moldura pacóvia. Por estes dias, o Douro, domesticado na sua fúria secular de águas livres, deixa-se ir na corrente de elitismos vistosos e manias sensaboronas, resignado a cenário de flirts turísticos sem consequência, mas muito na moda. Se não desaguarem à porta de Cristina Gomes, ali para Escalhão, em Figueira de Castelo Rodrigo, ela até agradece. "Isto é para saborear." O Lagar saiu-lhe do pelo e do coração, não é pasto de excursão.

A empresária agrícola deixou a capital quando a asma da filha recomendou a pureza das raízes. À doença foi um ar que lhe deu e veio a vontade de fincar, de vez, os pés na terra. Com o empenho do marido, Pedro Rocha, restaurou, a partir de ruínas, o lagar dos avós. "Para mim, isto não é um restaurante, é um lugar de afetos", assegura.

Ali, o muro dos antepassados recuperado. Aqui, um trilho antigo, alfaia de madeira e lâmina aguçada, a servir de balcão, no qual repousa um exemplar de Sente e Descobre, guia turístico de Figueira, o mais falado de quantos são editados por estas bandas. Autoria de Daniel Gil, que lançou a ideia dos roteiros a partir d'A Viagem do Elefante, de Saramago, ou não tivesse a odisseia literária do paquiderme Salomão deixado fundo rasto no Douro e mais além.

Pela mão do amigo ou iniciativa própria, Cristina calcorreou casas e lares de terceira idade da região à cata de receitas ancestrais, dadas como perdidas. O pão de trigo chega agora das aldeias. O azeite respeita saberes e sabores rurais de outrora, por isso o polvo à Lagar pode vir à mesa, a boiar. A horta é da época, respeita os ciclos naturais. Queijos, fumeiros e enchidos têm o rótulo da geografia sentimental. A maioria dos vinhos exibe o selo da região demarcada do Douro. Pode ser um Carm, branco, de 2011, ou um tinto Vale de Pios, 2008, ali mesmo, de Escalhão.

Luís Sottomayor, enólogo da Casa Ferreirinha, gosta de chamar ao Lagar a sua cantina. Ao espírito gourmet ou lá o que é, Cristina contrapôs uma ementa em iPad, feita de "tradição requintada". A evidência come-se com os olhos: onde outros rubricam design gastronómico e estrangeirismos pomposos num prato ratado, Cristina exibe mimos de avós em fartas travessas de barro, a fazer jus aos nomes suculentos: tirinhas de porco preto com molho de laranja, cacho de vitela com migas de tomate, lagarada de bacalhau. O doce de ovos com batata é um hino à sabedoria caseira. De "comer e chorar por mais", frase que, por acaso, também dá nome a uma sobremesa de amêndoa de enfeitiçar paladares. Até a morcela doce de Escalhão, com mel e canela, "que já ninguém fazia", renasceu aqui.

ALMENDRA, DOCE E ORGULHOSA
A esta mesa pantagruélica senta-se Alfredo Mendes, décadas de escrita batucada num jornalismo de sabor literário, por vezes devedor de mostos e partilhas gustativas. Ainda cachopo, rumou a Leça da Palmeira levando a aldeia com ele, por dentro dele. Outros o fizeram, por necessidade ou aventura. Almendra, em Vila Nova de Foz Coa, é território de pergaminhos vários, com gravuras rupestres à distância de um rabisco, casas aristocratas e romaria sem igual em todo o Douro, a Senhora do Campo. Ali se teceu o que viria a ser a Lusomundo, a partir da vivenda da família Bordalo. Ali ainda se tricotam episódios da envergadura de Romeu e Julieta, com enredo na Casa dos Caldeiras, onde donzela mal-amada traiu o temido doutor da terra e se enamorou de rapaz do povo. Em tenra idade, ali foi parar Maximino de Sousa, o famoso padre Max, de esquerdas, assassinado à bomba nas fervuras do pós-revolução. "Não vás para padre. És bonitinho e depois as pequenas vão andar atrás de ti", rogava-lhe, sem sucesso, Sezira Ivone, que recorda o catraio que ali fez a instrução primária, bondoso.

Alfredo dedicou anos ao garimpo das alcunhas e dizeres do torrão natal, devolvendo à terra "códigos que nos uniam a todos, carregados de afeto e distinção, fruto de laços harmoniosos e de sangue". Do mapa do tesouro fazem parte mais de três mil termos, condimentados por influências castelhanas, francesas e árabes, e encontrados, até, nas obras de Jorge Amado e Machado de Assis. Em breve, a Câmara de Foz Coa editará este levantamento, ilustrado a partir de precioso arquivo fotográfico, cuidado com saudade por almendrenses como João Varges, radicado no Brasil. As páginas lavram honra e posteridade à Cabra Manhosa, ao Mata-a-Morte, ao Cai-lo-Cú, ao à Puta Gaga, mas também ao Caldo Enchebre ou às Balulas. Não se pense que a empreitada é coisa arcaica, pois não passaram muitos anos desde que um conservador do registo predial viu as cartas para Almendra serem devolvidas à procedência por nelas não constar a alcunha do destinatário.

Freguesia de destino marcado por partidas e chegadas, coube a Jorge Ribeiro e Valerie Censier encontrar aqui a terra a que chamam sua. Ela francesa, artista plástica. Ele de Gondomar, músico, ator e homem de mil ofícios, com percurso certificado pelas portas que abril abriu, onde, cantava-se, a seiva de uma espera tornou tudo mais urgente. Cansados da vida de estrada, Valerie e Jorge assentaram arraiais na vila duriense, depois de viagens ao desatino. Vegetarianos, nem os trajes nem a postura vagamente hippie desencadearam estigmas ou maldições ciciadas. "Fomos acarinhados desde o início. Trouxemos ideias novas, mas absorvemos o espírito da terra", reconhece Jorge.

O casal cuidou da autoestima das gentes da terra e povoados da região. Voluntariou-se para atividades socioterapêuticas junto de crianças e jovens das terras do Coa e organizou caminhadas, vindimas, sessões de ioga, passeios de burro, dignificando natureza e tradições. "Quando acontece algo novo, as pessoas ficam ansiosas", diz Valerie, que agora quer fazer pão em forno antigo. Jorge, esse, já andou no restauro de pombais e aprendeu com os velhotes as artes da enxertia, da poda e das apanhas. É vê-lo animando aldeias, comunidades agrícolas. Qual saltimbanco, carrega às costas espetáculos para crianças e adultos, com reportório e itinerários inspirados na musicoterapia, na pedagogia curativa e socioterapia. Nas horas que nunca sobram é vê-lo vestido de homem paleolítico nas atividades teatrais do Museu do Coa ou em diálogos pessoanos. Lá para finais de setembro aparecerá em Serralves a puxar um burro com livros. "É um espetáculo para crianças. Até o asno pode ser difusor de cultura."

A GUARDIÃ DE LENDAS
Ao final de uma destas manhãs tórridas do Douro, na outra margem do rio, no concelho de Carrazeda, Flora Teixeira já havia recebido nove notificações no Facebook. Deitara-se tarde na véspera: falara com filhos e netos, radicados em Moçambique, pelo Skype.

Levantara-se cedo. Antiga catequista, agradeceu aos céus mais um dia na terra e foi "mata-bichar", não sem antes sintonizar a Ansiães FM, a cujos discos pedidos não falha. Na mesa, repousam, rabiscados a letra redonda, os próximos poemas e artigos sobre as tarefas rurais de antigamente, que publica no jornal da terra, da Associação Cultural e Recreativa de Pombal de Ansiães. A aldeia, onde sobram pouco mais de cem almas, tem tradições teatrais desde 1927 e, no passado, tomou-se de brios na luta contra o analfabetismo.

Os habitantes vivem ainda a ressaca do festival de artes, realizado há semanas. Flora deu um workshop de sabão biológico e andou numa azáfama para acolher artistas, todos com alimento e teto garantido, ano após ano, nas casas dos anfitriões. Aos 82 anos, esta antiga tecedeira e ex-emigrante em África não falta a uma aula de ginástica e mantém a agenda preenchida com atividades onde canta, dança e representa. "Não sei o que é o tédio nem o isolamento", assume, de sorriso aberto. Há uns anos, a filha enviou-lhe, pelo correio, um computador portátil. "Para a melhor mãe do mundo, que nunca se esquece de saber e aprender", escreveu. E ela aprendeu.

O escritor Alexandre Perafita imortalizou-a no património imaterial da região. Flora herdou do avô a veia de narradora. É guardiã de lendas. "Para cima de três dúzias!" Histórias da peste em Pombal ou de mulheres que sonharam com ouro numa fraga que vai contando às crianças, nas escolas. "Sempre inventei monólogos e variedades." Das visitas despede-se de copo em riste, com presunto e queijo "para fazer a boca ao vinho", que é generoso ou fino, diz-se por aqui, com propriedade e acerto. "Não sejam pessimistas, toquem a vida para a frente", brinda.

PAI CALVO, CEMITÉRIO DE XISTO
José Pinto bem gostaria de dizer o mesmo, mas deixaram-lhe uma herança de pedra. Era esse o nome do filme baseado na saga duriense dos romances de Alves Redol, cuja rodagem, nos anos 1990, esteve prevista para Pai Calvo, aldeia fantasma, de xisto, em Armamar. "Ainda andaram aqui uns meses, prometendo que o filme ajudaria à reconstrução da aldeia. Mas depois a empresa faliu e eu fiquei a arder em 600 contos", conta este proprietário de afamada quinta.

A aldeia sofreu com a razia da filoxera, praga que, no final do séc. XVIII, transformou o Douro num cemitério de fragas e gentes, túmulos gravados nas encostas, desesperos atirados ao rio ou suspensos num laço fúnebre de corda. Desde 1930 que não se vislumbra vivalma naqueles carreiros onde repousam 13 casas e lagares, três delas compradas por José Pinto. "Desbastei o mato bravo, arranjei telhados, pus isto à vista." Chamam-lhe "o dono de Pai Calvo" e vagueia horas por ali, entre sonho e alucinação. "Não perdi a esperança de recuperar a aldeia para turismo rural ou museu. É uma questão de honra à memória familiar e de gerações", desabafa, de voz embargada.

A história do Douro está cheia de penitências carregadas entre flores bravas e penedos. Cansaços que, desafiando a natureza esquiva e encostas íngremes, vindimaram, do granito e do xisto, néctares dos céus, empoleirados em vidas precárias. O radioso resultado vê-se, como em nenhum outro lugar, do miradouro da Casa Redonda, na Quinta das Carvalhas, no Pinhão, propriedade da Real Companhia Velha. Dez minutos a subir, em círculo. As nuvens quase tocam a cabeça. O esplendor duriense pode ser apreciado, num ângulo de 360 graus, durante uma das atividades da quinta, do enoturismo à observação de aves.

O Douro anda, entretanto, obstinado em acasalar com a modernidade. Ora agasalhando um ripanço perigoso e sem freio, ora prenhe de rebeldia e inovações. Nos últimos anos, o Pôpa Vinho Doce tinto e o levíssimo Rufete, feito a partir de castas mal-amadas, beliscaram novos e desconfiados apetites. Maria do Céu é mais doces, mas pagou, em invejas e mentalidade retorcida, a fatura da sua magia.

Em Remostias, no Peso da Régua, a Doces do Céu impôs-se pelo saber, os produtos da terra e a lambarice, "mas não à custa destes turistas estrangeiros que aparecem por aqui e regressam com a barriga cheia de paisagem". As Régulas, de avelã, ovos moles e massa folhada, são uma dedicatória à sua terra. As Penaguiotas, pecado de ovos, é tributo aos de Santa Marta. As natas e os lacinhos não têm explicação, nem precisam. Já as Ferreirinhas são diamantes de chocolate, chila, amêndoa, uvas passas e vinho do Porto e trazem água no bico. Homenagem a D. Antónia Ferreirinha, mulher brava do Douro, "mas também uma forma de perpetuar, com doçura, a memória das mulheres da região, cujo destino era ter um bando de filhos, 15 ou 20, fazer o caldo à noite e aturar pancada dos maridos. E olhe que ainda há disto", lamenta-se ela.

AQUI NASCEU O 'VINHO CHEIRANTE'
Na margem esquerda, com vista para o casario estilo pato-bravo da Régua, João Azeredo também anda a matutar nas invejas que uma recente descoberta originou e que ameaça revolucionar a historiografia do Douro. Segundo um estudo do investigador Altino Cardoso, a publicar pela Universidade do Porto, a secular Casa dos Varais ocupa o território onde, em 1142, os monges de Cister iniciaram a produção do "vinho cheirante de Lamego" a partir de castas da Borgonha, para usar nas missas, que viria a ser posteriormente denominado Vinho do Porto. "Comprova-o um documento do Mosteiro de São João de Tarouca. A data, um ano antes da fundação da nacionalidade, até arrepia!", confessa o proprietário da quinta que receberá este legado.

João Azeredo foi apanhado de surpresa. A princípio desconfiado, rendeu-se às evidências. "É uma grande responsabilidade, para mim e para a região. Mas vem sustentar uma convicção pessoal: o Vinho do Porto não é apenas obra de ingleses, da D. Antónia, do Barão de Forrester ou do Marquês de Pombal, como pretendem fazer crer. Foi obra de gente mais simples e humilde", acentua. A Casa dos Varais já tinha sido pioneira no turismo de habitação, mesmo enfrentando resistências familiares. João abandonou o Porto nos anos 1980, deixando para trás a escola agrícola, e evitando o esfarelar da herança familiar. Transformou lagares, melhorou a qualidade das castas, apostou na comercialização. Na Casa dos Varais, manteve-se Maria Rosa, raro património duriense da safra de antigas cozinhas e encantamentos de levar ao lume, devidamente comprovados no arroz de pato e na doçaria. João também põe o avental, mas apenas nas ocasiões em que, fazendo uso do seu único segredo gastronómico, confeciona a Truta do Monge. "É fumada em barrica de vinho do Porto e leva sete ou oito horas a preparar", refere, orgulhoso.

Da janela da sala de jantar, ainda atordoado com os efeitos da novidade recente, repousa o olhar nas águas do Douro e medita nos tortuosos caminhos da região. "Assustam-me os projetos tipo elefante branco. Corremos o risco de replicar a Régua", medonho exemplo estético planeado de costas para o rio e "casas de banho viradas para fora", como lhe chamou D. Duarte Pio de Bragança. "O Douro é tradição, origem, genuinidade", acode Ernestina, a esposa. Ele concorda: "Os projetos e as modas não podem ignorar o rosto humano desta região."

'GANCHINHO' E O RIO CANSADO
Em Baião, a uma hora do Porto, o Douro já vai cansado, antes do encontro com o mar. Já não é bem um rio, esta bacia de águas serenas. "É mais um penico", lamenta Adriano Mouta, 73 anos, um dos últimos barqueiros vivos, imortalizados em Porto Manso, por Alves Redol. Estamos entre a terra do romance e a Pala. Nascido em Porto Antigo, do lado de Cinfães, Adriano mergulhou nas águas outrora matreiras para enganar a fome. "Tinha nove anos. Quando fiz a comunhão, levei sapatilhas emprestadas e mal segurava as calças", conta, enquanto se prepara para matar saudades do tempo em que era apenas Ganchinho, catraio travesso, filho de Joaquim Ruço, corajoso arrais da região.

Para Adriano foram dias e noites, por vezes de "nagalho à cabeça, todo nu", nadando desde Aregos, ou a domar rabelos com 70 pipas, Cockburn, Ramos Pinto, "por aí fora". Em Melres, já as ditas iam mais leves, aliviadas de litros de vinho fino, por conta de um crédito de misérias. Fez exame de quarta classe, com distinção. Disseram-lhe que escrevesse a Salazar. Um amigo embelezou o rascunho. "Acrescente 'A Bem da Nação'", recomendou o padre, influente. Adriano empregou-se na ferrovia, entre Lisboa e Porto. A vida passou-a a ver comboios, nas oficinas. Quando voltou ao Douro, de vez, encontrou-o transtornado, enjaulado em nome de futuros risonhos que poucos viram. Depois, veio o Lúcio, trasladado para o Douro, "que engoliu quanto peixe bom havia: escalo, boga, barbo. Agora só sai peixe mole, esfarelado. Nunca mais comi nada destas águas."

Adriano guarda o Douro dentro de si. Caudais de súplicas e desânimos, mas onde homens e mulheres foram erguidos ao tamanho de gigantes por sonharem com presépios acima do nível das águas. "Foi uma vida tirana. Mas se me tirassem o Douro dos olhos, matava-me logo aqui."

Clique nas imagens para ampliar. Imagens e textos da revista "VISÃO", com a devida vénia. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue sómente com a citação da origem/autores/créditos.