Dois séculos depois do nascimento da D. Antónia Adelaide Ferreira (1811-1896), na rua Direita (a actual rua Custódio José Vieira), no Peso da Régua, a famosa e mítica Ferreirinha”, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, não pode deixar de evocar esta figura ímpar da história do Douro não só como um símbolo do empreendedorismo, mas também do altruísmo e da generosidade para com as instituições e obras de assistência social e caridade, como hospitais e asilos e, sobretudo, de muitas pessoas pobres ou doentes.
Quando, em 28 de Novembro de 1880, assinou o “Livro dos Estatutos da Associação e inscripção dos sócios contribuintes”, a Ferreirinha, tinha 68 anos, vivia na Quinta das Nogueiras, em Godim e acabava de enviuvar de Francisco Silva Torres. Já era considerada uma grande proprietária vitícola, dona de um vasto património de mais 20 quintas, espalhadas por toda a região duriense, onde trabalhavam mais de um milhar de jornaleiros, e mantinha em actividade uma empresa comercial de prestigio e solidez financeira invejável, administrada por dois fiéis e experientes colaboradores, como era António Claro da Fonseca (administrador no Porto) e Francisco Correia Monteiro (administrador na Régua).
A inscrição da benemérita empresária Ferreirinha, na qualidade de primeira associada contribuinte dos bombeiros voluntários da Régua prova que se disponibilizou para os ajudar ainda durante o período da fundação. Certamente como estava na presença de uma organização com fins humanitários em proveito da comunidade e, conhecendo da sua necessidade e importância, deve ter-lhe manifestado o seu incondicional apoio.
A primeira sócia contribuinte foi, portanto, uma benemérita. Disso não parece não haver dúvidas, apesar de nada ter legado em testamento à instituição, quer bens, que valores da sua fortuna pessoal.
Mas, a Associação ainda possui algo imaterial da Ferreirinha que, não sendo valioso, tem um significado especial e honra a sua história. Orgulha-se, pois, de guardar no livro onde foram exarados os primitivos estatutos, a assinatura de tão conterrânea, feita pelo seu próprio punho.
Não existem documentos que permitam saber se a D. Antónia aderiu por sua iniciativa própria ou, pelo contrário, terá surgido de pedido de pessoa amiga e influente. Há motivos para pensar que o convite tenha partido de Francisco Correia, administrador da empresa na Régua, uma vez que este seu funcionário se inscreveu como contribuinte da Associação (está registado no livro no vigésimo terceiro lugar). Só outra pessoa, porém, pode ter convidado a Ferreirinha para contribuinte dos bombeiros, o fundador e Comandante Manuel Maria de Magalhães, escrivão de direito, com que ela terá mantido contactos, nas idas ao Tribunal da Régua, para prestar declarações no inventário por óbito de seu primeiro marido, António Bernardo Ferreira.
Desconhece-se o valor da jóia nem da quota que a Ferreirinha pagou. Embora não sendo relevante, admite-se que o seu contributo monetário tenha chegado para a compra de alguns equipamentos destinado ao serviço de incêndios.
Outra virtude do génio da Ferreirinha, no contexto dos bombeiros da Régua, deve ser distinguida. Sendo uma figura prestigiada da sociedade local e mesmo nacional, como sua primeira sócia contribuinte soube dar um exemplo cívico e, ao mesmo tempo, demonstrar a sua solidariedade aos homens bons e generosos que, haviam decidido entregar-se à suprema missão da defesa de bens e vidas.
A sua adesão ao movimento associativo dos bombeiros revela que era uma cidadã atenta e interessada pelos problemas da sua comunidade. A D. Antónia foi uma personalidade humana, generosa, solidária com os mais desfavorecidos, e sempre disposta, como aconteceu ao longo da sua vida, a acarinhar e proteger as obras de interesse e vocação social.
A empresa comercial da Ferreirinha teve sucessos financeiros, ganhou prosperidade, mas alguma da riqueza gerada, serviu para fomentar a coesão social na comunidade. Através do mecenato permitiu que as instituições de solidariedade social, religioso e humanitário que, privadas de subsídios públicos, realizassem aquilo que seria um dever fundamental do Estado.
Assumiu, deve salientar-se, desafios que, actualmente, se entendem como ser de responsabilidade social. Com a promoção dos valores de filantropia contribuía para a qualidade de vida das pessoas numa pequena terra do interior, como era a vila da Régua, que procurava na agricultura e comércio a sustentabilidade do seu desenvolvimento económico. De alguma maneira, terá sido esta a melhor resposta que a Ferreirinha encontrou para atenuar os efeitos da miséria que afligia a sociedade em que viveu. Deve ter pensado, e bem, que a prática de liberalidades e actos de beneficência não eram incompatíveis com a obtenção de lucros das vendas dos vinhos de qualidade produzidos nas suas quintas do Douro!
Bem inseridos na comunidade e não menos bem identificados com a realidade socio-económica da região, os bombeiros voluntários do Peso da Régua tomaram, por vezes, posições públicas em defesa de causas e interesses dos lavradores do Douro, manifestando-se SOLIDÁRIOS SEM LIMITES. Uma delas consta da sessão extraordinária realizada a 7 de Maio de 1893, que reuniu com a finalidade de aprovar medidas de apoio aos pequenos lavradores de algumas freguesias do concelho da Régua, a quem um temporal tinha causado elevados prejuízos nas suas vinhas:
“Pelo director Sousa Pinto foi dito que pediu a convocação extraordinária dos directores desta Associação para um fim altamente humanitário. Parecia-lhe que esta casa humanitária como é não podia ficar indiferente às desgraças causadas aos lavradores deste, digo de algumas freguesias deste concelho pelo temporal do dia 7 e propunha que esta Direcção tomasse a iniciativa de minorar os sofrimentos de muitos desses desgraçados, oficiando a Sua Majestade a pedir para serem sustadas as execuções fiscais e à Câmara deste concelho a pedir a sua coadjuvação para ser atendido este pedido. Propor o director-comandante que não só oficiasse a El-Rei e à Câmara, mas também ao deputado por este círculo a pedir o concurso para este fim, e abrir uma subscrição pública para socorrer os lavradores mais necessitados. Propor o director Martins que também oficiasse a Sua Majestade a Rainha D. Maria Pia. Todas estas propostas foram aprovadas por unanimidade.
Alberto P. Rolla,
José Avelino C. P. Almeida,
Joaquim Sousa Pinto,
Camilo Guedes,
José Afonso de Oliveira Soares”.
Se a D. Antónia pudesse hoje voltar à Régua e ao Douro encontrava o “país vinhateiro” e o centro de negócios do vinho do Porto muito transformados.
Desde logo, podia constar que o comércio do vinho do Porto se tinha concentrado num pequeno grupo de empresas exportadoras (só uma é de origem portuguesa), que controlam cerca de 80% do comércio. E verificar que os exportadores do vinho do Porto continuam a aumentar a produção própria (atingiu já cerca de 20%), o que há cem anos não acontecia. As principais casas exportadoras de vinho do Porto, eram as maiores clientes da casa da Ferreirinha e, apreciavam, ao que sabe, a inconfundível qualidade dos seus vinhos.
Mas o Douro de hoje, apesar de ter recebido o estatuto de património da humanidade, como paisagem cultural evolutiva viva, o seu futuro está numa encruzilhada. Os tempos não vão de feição para o vinho do Porto. As vendas, no ano passado, recuaram em volume e em valor. Há uma tendência negativa que não pode ser explicada pela recente crise mundial.
A paisagem da vinha também mudou. A imagem tradicional dos velhos anfiteatros de socalcos deu lugar aos patamares e de “vinha ao alto”. A área de cultivo de vinhos aumentou em mais cerca de 40 mil hectares de área de cultivo de vinha. A regulação da produção e comércio vivida pela Ferreirinha que oscilou entre o proteccionismo estatal e a liberdade comercial, com o poder centrado na majestática companhia pombalina, evoluiu para um modelo institucional de orientação interprofissional.
A D. Antónia teve de enfrentar o pesadelo e angústia do flagelo de graves pragas nas videiras das vinhas – o oídio e a filoxera – que destruíam a capacidade produtiva, mas não nunca desistiu de plantar novas vinhas, como a do Vale Meão, podia constar mudanças radicais no cultivo da vinha, no sistema de vinificação e nos vinhos produzidos.
Apesar de tudo, o Douro na identidade histórica permanece imutável…Os ideais da Ferreirinha e dos bombeiros da Régua, alicerçados na obstinação, esforço e solidariedade humana, na sua forma mais simples, continuam a ter sentido na construção do futuro do Douro, que só existe com pessoas como nós.
Alguém, disse um dia, que o Douro não “precisa de nada universal, além, do sol, da chuva e vento. O que precisa é de leis universais que protejam, ao mesmo tempo, o lavrador e o cavador”. Nada mais certo…!
- Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro". Peso da Régua, Junho de 2010.
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