Eram perto das 18.45 da 1º de Maio de 1964. Mais uma tarde primaveril acabava num horizonte cercado de montes de vinhas verdejantes e as aguas serenas de um rio pasmado na beleza das suas margens. De repente, um estrondoso ruído iria marcar de dor e sofrimento a sossegada vila da Régua.
Cumprindo com exactidão o horário, uma camioneta de passageiros da EAVT fazia o percurso habitual e rotinado, entre a cidade de Lamego e a Vila do Peso da Régua. Atravessava a ponte nova, já nos últimos tabuleiros – ponte destinada a uma linha ferroviária que nunca veio a ser construída. Avistava-se, já muito pertinho, o velho casario do Corgo, o imponente cais de mercadorias da estação do caminho-de-ferro, os táxis e camionetas de carreira a aguardarem passageiros, no Largo da Estação, onde também esta iria fazer a última paragem de giro.
Ao chegar prestes do fim da ponte, a camioneta cruza com um carro, um pequeno Austin Mini. Colidem lateralmente. A camioneta descontrola-se e guina para a esquerda. Sobe o passeio, derruba o gradeamento de ferro e precipita-se numa queda de 30 metros. A camioneta cai sobre lajes e pedregulhos que ladeiam a margem do rio, próximo do local onde as crianças costumavam brincar e tomar banho, conhecido como “Cais da Junqueira”. Desfaz-se em ferros retorcidos e vidros partidos. Gera-se o pânico nos passageiros. Surpreendentemente, um passageiro, o Sr. Matos Ferreira, sai ileso e a primeira coisa que faz é voltar a trás, à procura de um botão caído do seu casaco no meio daqueles destroços.
Pouco tempo depois, chegavam os primeiros bombeiros, o José Manuel Clemente e o pai, que ficam horrorizados com o cenário encontrado. São estes dois homens que prestam os primeiros socorros às vitimas feridas, ajudando-as a sair do interior da camioneta. De imediato, pedem reforços para responder com dignidade à gravidade da situação. Chegam os médicos e enfermeiros que trabalham na Régua e em Lamego, entre os quais é de salientar a presença do Dr. João de Araújo Correia. Começaram a ser retirados os corpos sem vida, o condutor e o cobrador da camioneta. Entre as manchas de sangue, aparecia calçado feminino, pastas de estudantes, uma colecção de pontos de matemática, chapéus de homem, um tubo de pasta dentífrica e as folhas de um ponto de matemática, com o nome do dono, Camilo Bernardes Pereira. Os feridos continuavam a ser retiradas do meio dos ferros retorcidos. Mais uma jovem sem vida, Maria Henriqueta, filha do vice-presidente da câmara, Roque Cruz.
Entretanto, os feridos são transportados nas ambulâncias dos bombeiros para a urgência do Hospital D. Luís I. Pouco tempo depois, corre a notícia de que acabava de falecer mais uma criança. Durante a madrugada, outra menina não resiste aos ferimentos. No dia seguinte, uma outra desiste de viver.
Acabam de perder a vida, neste trágico acidente, cinco adolescentes, na primavera da vida, e dois homens adultos. A Régua vive momentos de grande pesar, deixando-se enlutar pela tragédia das três famílias atingidas.
Para memória futura, João de Araújo Correia, chamado ao local para prestar assistência aos feridos, na sua qualidade de médico, não deixou de evocar a dor e o sofrimento dos sinistrados, dos familiares, dos amigos, de toda a população nem deixou de criticar a falta de civismo dos condutores, em geral, pouco dispostos a cumprirem o código, e lamentou que a tragédia acontecesse numa ponte nova, mas sem condições mínimas de segurança para circulação de veículos nos dois sentidos. Quem o ouviu, nesse tempo? Ninguém..! Fizeram ouvidos de mercador, foi como se nada ali tivesse acontecido. Passados muitos anos, naquela ponte, tudo permanece igual, mas com riscos cada vez maiores. Tudo isso faz parte de uma séria reflexão que ele próprio expôs na crónica “Duas Pontes”, publicada no jornal “Comércio do Porto”, de que aqui se transcreve o essencial:
“Mais um desastre de viação e, desta vez, horroroso. Cinco meninas em flor, ainda estudantes, e dois homens válidos, dois trabalhadores, encontraram a morte dentro de um autocarro, despenhado do alto de uma ponte, na Régua, sobre a margem direita do rio Douro.
Mas, além dos mortos, os feridos... O hospital da Régua foi hospital de sangue no fim de uma batalha. Quem assistiu àquelas ansiedades, àqueles estertores, continua a sonhar amargo pesadelo. O dia 1º de Maio de 1964, dia de rosas, fica assinalado, na Régua, como dia de goivos e martírios.
De quem foi a culpa? A culpa, senhores, não foi de ninguém. A culpa deve atribuir-se ao fatalismo, crença absoluta do automobilista português no que tem de acontecer. Com semelhante credo, tanto lhe faz guiar mal como bem, tanto lhe faz obedecer como desobedecer ao exame de condução. O código só tem valor antes do exame. Feito o exame, é letra morta.
Fanático do fatalismo, o motorista português é suicida sem desgosto e assassino sem rancor. E, se assim se pode dizer, um inocente. Maneira de o desviar de si próprio, fazer-lhe crer no livre arbítrio ou no determinismo, seria castigá-lo, de modo que lhe doesse, quando prevarica. Mas, a lei portuguesa e o tribunal português são benignos com o motorista desastrado. No fim das audiências, ouve-se dizer: pobre de quem morre.
Sobre a má filosofia, o vinho, a pressa, a inveja, o delírio - fazem da estrada portuguesa um cemitério. Não o seria se a lei fosse mais dura, e o tribunal menos indulgente.
Pobre estrada portuguesa! Em vez de caminho florido, é um calvário, uma fábrica de lutos. Na Régua, há hoje exemplos da maior “dor humana". Dois casais felizes perderam, cada um, duas filhas. São, como diria Camilo, sepulcros vivos de duas filhas mortas.
Quem acode à nossa estrada? Quem acode à família portuguesa? O caso da Régua é um grito que implora eco na consciência nacional. Tanta morte em estrada tão pequenina! Os desastres, em Portugal, são o dobro e o tresdobro dos inevitáveis.
O caso da Régua, à parte o erro ou erros de condução, é atribuível a outra espécie de incúria. Se, na ponte malfadada, estreita e desprotegida, com duas guardas que são dois ornatos, fossem proibidos cruzamentos e ultrapassagens, o desastre não teria ocorrido. Mas, nem do lado de Lamego, nem do lado da Régua, há sinal proibitivo. Nem sequer se reforça, num letreiro, o mandamento que obriga a moderar a marcha numa ponte. Não há nada! O que ali se faz, de vez em quando, é espantoso. Vai, pela sua mão, um motorista pacato. De repente, sem tir-te nem guar-te, passa-lhe à esquerda uma sombra. É um automóvel que vai para o outro mundo e quer levar consigo outros automóveis. Mais adiante, o motorista pacato avista uma nuvem. É outro automóvel, que vem ao seu encontro para o matar e fazer do seu carrinho um bolo. Pobre motorista pacato!
Na Régua, há duas pontes. Há a ponte nova, onde se deu o desastre, e a ponte velha, inutilizada por avaria do tabuleiro, mas, com pilares tão rijos, que pede tabuleiro novo. Se lho dessem, teria a Régua duas pontes, bastantes para o seu tráfego. Seriam duas pontes sem desastres, porque o trânsito se faria em sentido único. Ia-se da Régua a Lamego pela ponte velha e regressava-se à Régua pela ponte nova”.
Diz-se que o tempo tudo apaga, mas não parece ser verdade, quando se recordam os acontecimentos da tragédia na ponte da Régua, que não está esquecida por ninguém. Lembram-se dela os familiares das vítimas, onde a dor permanece viva, os feridos que sobreviveram da queda, acreditando que foi um milagre que lhes aconteceu nesse dia.
Os bombeiros também não esquecem o dia da tragédia. Aqueles que ajudaram na operação de salvamento e no transporte dos feridos e os que acompanharam o funeral das duas irmãs da família Roque Cruz, transportadas no velho pronto socorro Buick pela ruas da Régua, entre o hospital e o largo da Igreja Matriz, no Peso, onde se celebraram as últimas cerimónias religiosas.
Esta era a única missão que os bombeiros gostavam de não ter cumprido. Como aconteceu nas últimas viagens, ficou uma dor e luto profundo no coração daqueles homens que pelo caminho interminável da vida, choraram a morte daquelas crianças do acidente trágico, em cima da ponte nova da Régua.
Os nossos bombeiros prefeririam não ter participado nesta missão de dor que enlutou a população da sua vila natal, pelo facto de um acontecimento abrupto ter cortado o fio da vida a algumas jovens da sua comunidade e terem de ser eles a conduzir os restos mortais à última morada. Mas dar acolhimento a tal preferência seria traírem a razão da sua existência na Régua. A dor custa a suportar a todo o ser humano. É nessas ocasiões que as pessoas em sofrimento mais precisam da presença, do apoio e do auxílio dos amigos. Os bombeiros, igualmente em sofrimento, marcaram a sua presença amiga, oferecendo o seu auxílio até ao fim, até ao fel amargo da dor dos familiares destroçados. No meio das lágrimas que choraram mantiveram alta a nobreza que sempre os tem caracterizado.
- Peso da Régua, Dezembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 1 de Dezembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Tragédia na Ponte da Régua - 1º de Maio de 1964.
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3 comentários:
adoro o seu blog! parabéns! Gosto de ver a minha terra, sobretudo as memórias que dela existem e nos dá a mostrar. Gostaria de ver algo sobre os cortejos de oferendas que faziam para o hospital, eram tão lindos!... nunca vi qualquer foto ou reportagem sobre os mesmos.
Será que existe algum arquivo? Foto?..
Bem haja! vou continuar a visitá-lo.
Não deixa de ser coincidência a data desta tragédia: 01 de Maio de 1964, dia do trabalhador! Se o regime político em vigor respeitasse esse dia, a tragédia não teria acontecido.
Podia acontecer no dia seguinte ou noutro dia qualquer. O destino marca a hora.
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