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terça-feira, 8 de abril de 2014

UM LIVRO ESPECIAL

Ao Dr. Bernardino Zagalo

Das homenagens e louvores aos bombeiros da Régua dedicadas pelo seu espírito de abnegação, brio e heroísmo há uma, muito especial que, pela sua raridade, autoria e forma invulgar como foi divulgada, não pode ficar esquecida nas páginas da história da associação nem na memória colectiva.

Não é um diploma nem sequer uma medalha de ouro concedida por alguma entidade pública a reconhecer o mérito, a dedicação pública, a generosidade, o comportamento exemplar, a coragem e abnegação e os serviços distintos pelo que, nas suas arriscadas missões de socorro, fizeram os bombeiros.

Ao longo da sua existência, os bombeiros da Régua foram enaltecidos com importantes distinções e títulos honoríficos. Sem querer valorizar nenhum há um especial muito um que brilha mais alto e destaca-se nas glórias dos bombeiros da velha guarda, a Ordem Militar de Cristo, colocada no estandarte da Associação pelas mãos do Presidente da República, General Óscar Carmona.

Mas, os bombeiros da Régua têm uma homenagem que, se não valeu mais que a distinção das ditas comendas, ajudou a levar à imortalidade dos bombeiros que combateram o grande incêndio, em 26 de Junho de 1911, na cidade de Lamego.

Poucos sabem que o autor do notável louvor, foi o Dr. Bernardino Zagalo, advogado e escritor de novelas de índole regionalista e de uma peça de teatro intitulado O Heitorzinho, popularizado em apresentações no palco de teatro de amadores ao consagrar o exemplo de um homem justo e bom, natural da freguesia de Loureiro, que o povo tem  devoção e reconhece, ainda hoje, como um santo milagreiro.

O Dr. Bernardino Zagalo, lamecense pelo nascimento, foi um verdadeiro reguense pelo coração. Apaixonado pela terra adoptiva, onde teve a sua residência, dedicou-se às actividades do foro judicial. Cidadão inteligente e activo, trabalhou para o bem comum como dinamizador das Festas do Socorro e como criador e impulsionar da Parada Agrícola, uma espécie de primeira e moderna feira agrícola para promoção dos vinhos do Douro e outros dos produtos agrícolas da região duriense.

Nesse tempo, a Associação dos Bombeiros da Régua já era uma instituição muito prestigiada, que não se ocupava só em combates dos fogos, mas tinha nobres objectivos, pois auxiliava e promovia iniciativas sociais e culturais da sociedade civil. A normalidade era a vida associativa próxima dos associados e das pessoas que apoiavam os bombeiros. O Dr. Bernardino Zagalo, como vizinho do primeiro quartel dos bombeiros, situado então no Largo dos Aviadores, conhecia-lhes os exemplos de altruísmo, abnegação e heroísmo. Não é de estranhar que mantivesse com aqueles homens de paz e fraternidade, velhos combatentes de fogos, uma respeitável relação de amizade e apoiada uma elevada admiração.
(Clique na imagem para ampliar)
Já que se recordou um dos grandes incêndios de Lamego, temos presente uma pequena nota histórica da “assombrosa catástrofe” que, no dia 26 de Junho de 1911, pelas 21.00 horas, reduziu a um esqueleto de ruínas e cinzas uma grande parte das casas da movimentada Rua de Almacave. Rezam as notícias que nem a Igreja da Misericórdia foi poupada à violência das chamas, que a destruiu completamente, o que tornou impossível a sua reconstrução.

Para ajudar a apagar este incêndio foram chamados os bombeiros da Régua, comandados por José Afonso de Oliveira Soares. Combateram-no ao lado dos bombeiros de Lamego, mas a sua acção foi determinante pela sua coragem e heroísmo, o que evitou que o fogo alastrasse às ruas envolventes e causasse mais pânico e prejuízos.

Natural de Lamego, o Dr. Bernardino Zagalo terá registado algumas das brutais imagens que correram desse incêndio e tenha ouvido falar da destemida e corajosa acção dos bombeiros da Régua nesse fogo. Apesar de ser lamecense, não se sentiu diminuído em testemunhar aquela sua missão e o “tamanho do seu heroísmo se glorificou para todo o sempre”. 
Os Desherdados,  que fez questão em dedicar a um amigo, o Conde de Saborosa e também aos Bombeiros Voluntários da Régua e cujas vendas destinou que revertessem para os cofres da associação, confirmou a gratidão a esses bombeiros com este elogio: 

Este livro não se expõe á venda. É uma homenagem, embora obscurissima, a um amigo extremoso e aos Bombeiros Voluntários da Regoa.

Os Desherdados destinam-se a sêrem distribuidos ás pessoas de coração que desejem contribuir com o seu obulo caridoso para o cofre da benemérita Associação dos Bombeiros Voluntarios da Regoa, ficando as despesas de publicação a meu cargo.

Como lamecense amantíssimo da minha terra, venho assim testemunhar a minha gratidão á briosa e esforçada colectividade que teem prestado primorosamente serviços humanitários de alto relevo e superiores a encarecimentos banaes, e que com tamanho heroísmo se glorificou para todo o sempre no pavoroso incêndio que abrazou e reduziu a cinzas, em 26 de Junho de 1911, vinte e um prédios urbanos, salvando das labaredas temerosas o bairro mais importante da cidade de Lamego e o histórico povoado do Castello (….)”.

Dizia o Dr. Zagalo que era uma homenagem obscuríssima. Ora, de obscura é que não tem mesmo nada. Ao imprimi-la nas primeiras páginas de uma sua obra literária, imortalizou os bombeiros da Régua como admiráveis  valores do altruísmo. A literatura raramente os glorifica como personagens principais, mas sabe todos sabemos que na vida real, eles são verdadeiros heróis.

Esta homenagem de um escritor, ainda que desconhecido para a maioria das pessoas, à missão dos bombeiros foi uma excepção que envaidece a quem foi dedicada, neste caso, os bombeiros da Régua. 
Quando um escritor dedica um livro ao exemplo de coragem dos bombeiros, esta atitude vale muito mais que medalhas e títulos honoríficos. O livro, depois de chegar aos leitores, será sempre uma obra imortal. É isto que está a acontecer com Os Desherdados, uma obra que foi escrita há mais de 100 anos, mas de que existem antigas edições à espera uma consulta, mais atenta e demorada, em estantes particulares e públicas.

A mensagem do livro tem um significado importante que, em certa medida, permite entender os riscos de missão dos bombeiros. Se ela revela os genuínos ideais de um ilustre cidadão que adoptou a Régua, não deixa de espelhar o reconhecimento de uma sociedade que sabia respeitar a atitude cívica dos cidadãos mais solidários e generosos. Aqueles homens que deixaram provas de heroísmo ao serviço de uma missão de socorro em Lamego.

A história dos Bombeiros da Régua escreve-se com a abnegação, solidariedade e coragem daqueles homens que juraram cumprir o lema “Vida por Vida”. O dever de cada bombeiro é ajudar os seus semelhantes quando as vidas e bens estão em perigo. Eles não socorrem para serem reconhecidos como heróis. Aquilo que o Dr. Bernardino Zagalo escreveu no seu livro sobre os Bombeiros da Régua é mais uma homenagem ao seu esforçado e valente trabalho perante a destruição devoradora dos fogos. É um louvor, também de alguém que lhes está grato!

Certos livros voltam quando pensávamos que estavam esquecidos, como este do Dr. Bernardino Zagalo. E ainda bem, assim as novas gerações podem saber que os bombeiros da Régua alcançaram um digno reconhecimento pelos seus talentos de humanidade e de heroísmo e, por ser mais nobre que a atribuição de qualquer medalha de ouro, atingiram o estatuto da Imortalidade.

A partir de agora, os bombeiros da Régua sabem que, na sua longa história, há um livro especial, intitulado Os Deserdados que, publicado há cem anos, os evoca pela sua brilhante competência e também pela coragem e abnegação no combate a um dos maiores incêndio ocorridos em Lamego, prestigiando assim o bom nome da benemérita associação reguense.
- José Alfredo Almeida*, Régua, Julho de 2011. Actualizado em 8 de Abril de 2014. Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.
  • Um outro post - O Nosso Dr Zagalo
Um Livro Especial
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 21 de Julho de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)

Edição de Jaime Luis Gabão para Escritos do Douro 2011 em 19 de Julho de 2011. Actualização em 8 de Abril de 2014.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Padre Manuel Lacerda

Os Bombeiros da Régua tiveram uma forte ligação à religião católica logo desde os primeiros anos da sua existência. Os bombeiros pioneiros beneficiaram da ajuda espiritual do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges. Ele foi, ao que consta, o primeiro capelão dos nossos Bombeiros.

O Padre Manuel Lacerda foi também um pedagogo e, nos tempos da monarquia e primeiros anos da república, na escola particular que fundou, ensinou as primeiras letras a crianças. Enquanto viveu, os reguenses admiraram-no e não deixaram de o chorar quando Deus o chamou na flor da vida, com pouco mais de 35 anos. Sendo um homem de belas feições, o seu coração perdeu-se de amores e paixões que nunca escondeu de ninguém. De uma relação amorosa que assumiu, foi pai de uma criança que ajudou a crescer. Esse seu filho, de nome José Lacerda, imitando as pisadas do seu pai, chegou a vestir a farda de bombeiro.

Depois da morte do sacerdote, os Bombeiros da Régua não tiveram mais ninguém que quisesse ser capelão, muito embora o saudoso Padre Carminé, figura conhecida no passado séc. XIX por ser um dotado director de orquestra, tenha andado a espalhar a fé pelo velho quartel da Chafarica. Se se terá ocupado de rezar missas por altura do aniversário da corporação ou, quando muito, pela morte de algum bombeiro, não se sabe, mas algum bem deve ter feito àqueles primeiros e generosos bombeiros.

Com a morte do Padre Lacerda, mais nenhum sacerdote encontrou vocação espiritual para pastorear as almas dos bombeiros reguenses. Mesmo que tivessem inclinação para usar, em vez da batina preta, uma farda, um capacete e uma machada para entrar com os bombeiros no inferno das chamas do fogo, por certo deve ter-lhes faltado a coragem. Ao levar a fé, o padre pode salvar alguém do pecado e até dos maus caminhos do viver em comunidade, mas nunca se pode comparar com  a missão dos nossos bombeiros que está no limite do verdadeiro altruísmo e generosidade e numa fronteira ténue entre a  vida e a morte, quando são chamados pelo toque do sino ou da sirene para salvar bens e vidas em perigo.

Nem no Quartel dos Bombeiros da Régua, nem no seu pequeno Museu há memórias vivas da passagem do Padre Manuel Lacerda. Como também não existe nenhuma lembranças da boa alma que ele foi como construtor de laços de concórdia e de fraternidade entre os concidadãos do seu tempo.Nas rotinas do dia-a-dia da Associação,que se mantém viva e activa permanentemente desde o ano de 1880, ninguém se deu ao cuidado de arquivar uma fotografia para que ali fossem, pelo menos,perpetuadas as sombras de sua presença e do seu carácter humano exemplar.

Mas, o Padre Manuel Lacerda, embora tenha sido sepultado numa campa rasa do cemitério de Canelas, não ficou esquecido como bom pastor na poeira do tempo e na memória do seu povo.E, muito sinceramente, até esperávamos que um dia ele fosse homenageado pelo bem que fez à sua terra e aos seus bombeiros...

E, por isso, quando sobre ele fizemos uma pequena nota a dar conhecimento da sua existência e da sua importância  na sociedade reguense, não sabíamos se lhe íamos encontrar os  rastos do caminho que, muito cedo,  o levaram daqui até aos confins do outro mundo. Enganámos-nos e, quase a terminar o ano de 2013, os seus descendentes ainda vivos e de boa saúde vieram ao nosso encontro. Uma sua neta, filha do José Lacerda, ao ler na internet uma nossa evocação do distinto capelão dos bombeiros, telefonou-nos, comovida pelo nosso gesto, indicando-nos os dados pessoais que dele nos faltavam. Ao mesmo tempo, acrescentava outros que nos alimentavam uma esperança de traçar o esboço de uma ligeira biografia e revelar uma pequena parte do curto percurso terreno deste sacerdote. Essa neta deu-nos a preciosa informação de que a outra irmã guardava do distinto padre uma fotografia muito antiga, que teria sido tirada ainda muito jovem. Dirigimo-nos ao marido da irmã, comerciante de roupas com uma pequena loja  na Rua dos Camilos que, depois de uma  simples conversa, nos trouxe a fotografia do sacerdote emoldurada num bonito quadro de madeira para fazer nos estúdios da Foto-Baía uma reprodução digital dessa imagem. Não demorou muito tempo que o retrato do capelão seguisse para o Quartel dos Bombeiros da Régua, para ficar exposto na galeria de figuras memoráveis.

Muitos anos depois, bem se pode dizer com um sorriso que o ditoso capelão estava de regresso à companhia dos homens do seu e nosso tempo, para se juntar àqueles que mais se sacrificaram por constituir na Régua um corpo de bombeiros voluntários, como é o caso dos Cdtes Manuel Maria de Magalhães, Afonso Soares, Joaquim de Sousa Pinto, dos bombeiros José Ruço e Riço, alguns dos tantos que, lá no infinito, andarão mortificados com algum incêndio que deixaram cá na terra por apagar.

Com o retrato do Padre Manuel Lacerda, a actual geração de bombeiros pode conhecer, finalmente, os traços e a fisionomia do seu primeiro capelão e, sobretudo, avaliar com mais atenção o seu exemplo de humanidade.Foi graças a esta inesperada e preciosa colaboração que o nosso sacerdote, lá do outro mundo, regressou ao nosso mundo, desta vez pelos caminhos do mundo virtual!

Quem tinha recordado o Padre Manuel Lacerda, num tom respeitoso e de elogio póstumo, quase como se o estivesse a venerar, foi o escritor João de Araújo Correia, que, numa crónica publicada no jornal Vida por Vida, de Novembro de 1957, sob o título "Recordações de Barro - Os Bombeiros", traçou o carácter da sua alma desta maneira:

“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras -tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda. Foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar. Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar...

Não chorou apenas aquele bombeiro, também ele já na Eternidade, a fazer companhia ao Padre Manuel Lacerda. Choram todos os reguenses pela alma do bom capelão dos Bombeiros da Régua, acreditando que lá na imensa Eternidade, onde andará a espalhar mensagens celestiais de concórdia, os espera com um bondoso sorriso para partilhar a vida espiritual em mais um grande e festivo banquete.
- Peso da Régua, 31 de Dezembro de 2013, José Alfredo Almeida*. Ler também - Escritos do Douro: O Padre Manuel Lacerda - Capelão dos Bombeiros do Peso da Régua.

*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras actividades (onde se inclui fotografia), escrevendo crónicas que registam neste blogue, no seu blogue "Pátria Pequena" e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, textos de escritores e poetas do Douro, além de fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

MEMÓRIAS VIVAS - Textos sobre os Bombeiros da Régua

Textos sobre os Bombeiros da Régua organizados por José Alfredo Almeida.
Dia 8 de Dezembro de 2013 pelas 15h00, no Salão Nobre do Quartel Delfim Ferreira.

clique na imagem para ampliar o 'convite'.
  • Textos sobre os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua neste blogue.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ser bombeiro

Com apenas doze anos, entrei para sócio dos nossos Bombeiros, então instalados na Rua dos Camilos, com o intuito de frequentar a sala de jogos. Convivendo diariamente com os bombeiros, desde o quarteleiro Zé Pinto ao Comandante Lourencinho (como era conhecido), passando pelos irmãos Castelo Branco, todos fizeram nascer em mim a veia voluntária que ainda hoje possuo. Éramos uma família e eu sentia-me em casa.

O patrão Álvaro e o Manuel Carteiro eram os meus companheiros na ida ao futebol, algum tempo ainda no Campo das Figueiras e depois já no Artur Vasques.

Situando-me na época, recordo o incêndio da Rua de Medreiros e da Casa Viúva Lopes, onde faleceu o João dos Óculos, como era conhecido.

Vivia-se a luta pela conclusão do novo quartel, na Avenida Sebastião Ramires, projeto do mestre pedreiro Anastácio, que chegou a vender bens pessoais para concluir a sua obra que ainda hoje perpetua a sua arte e também a sua memória.

Acompanhei e participei nesta campanha para a construção do novo quartel que foi feita ao longo de uma década. Realizavam-se cortejos, peditórios, festas e até bailes que chegaram a rivalizar com “O Carolina” de Vila Real. Os reguenses entregavam-se entusiasticamente aos cortejos alegóricos, de destacar os Irmãos Clemente e o mítico Figueiredo, que, montado no seu alazão, atraía e entusiasmava grandemente a população e os seus visitantes.

Foi a partir daqui que os nossos bombeiros ganharam fama, sendo considerada uma das melhores corporações do país. O mérito deve-se ao Comandante Cardoso e à presidência de Júlio Vilela, que integrava na sua direção pessoas de grande valor como o Baptista, também fundador do Jornal Vida por Vida, entre outros.

Mais tarde, em 1974, o então presidente da Câmara Municipal e também Presidente da Assembleia dos Bombeiros, Manuel Gouveia, convidou-me, segundo ele mesmo, por indicação do Manuel Montezinho, então secretário da Direção. É claro que aceitei de imediato e até lhe lhe sussurrei que desejava fazer mais do que o exercício do cargo de diretor impunha. Garantiu-me o seu total apoio e o convite foi oficializado em janeiro de 1974, com a tomada de posse no dia catorze desse mesmo mês.

O desejo de aumentar o quartel dos bombeiros era uma prioridade. Para tal, impunha-se a aquisição de uma casa vizinha, pertencente à EDP. Dada a minha boa relação com alguns responsáveis desta empresa, especialmente com o chefe das expropriações, Manuel Monteiro, consegui a aquisição da propriedade gratuitamente. Em simultâneo, o meu amigo Caveiro, topógrafo da ITEL, fez o respetivo levantamento, também graciosamente.

Em abril de 1974, surgiu a Revolução dos Cravos e com esta o saneamento do Presidente da Câmara, que veio a ser substiuído pelo Dr. Cândido Bonifácio. Foi no mandato deste amigo que numa reunião de todas as Câmaras do distrito de Vila Real, presidida pelo Dr. Montalvão Machado, tive a oportunidade de apresentar a pretensão do alargamento do quartel dos Bombeiros. O Gabinete de Estudos de Vila Real comprometeu-se a fazer o projeto, através do seu diretor, Engenheiro Arménio.

Também presente, na reunião, estava o Engenheiro Valente, que garantiu desde logo dar provimento não só a este projeto de urbanização, mas igualmente a outros dois por mim apresentados: as obras do parque desportivo do Clube de Caça e Pesca e a construção das piscinas termais das Caldas do Moledo. Todas estas obras foram financeiramente contempladas.

Todo o desenvolvimento da obra do quartel foi da responsabilidade do Manuel Dias Montezinho, então secretário da Direção dos Bombeiros, devidamente apoiado pelo fiscal, Engenheiro Né.

Em janeiro de 1977, tomei posse como vereador da Câmara Municipal. Assim, tive a oportunidade de contatar com uma equipa de técnicos do Fundo de Fomento de Habitação que na altura se deslocaram à Régua para dar seguimento à construção do Bairro Verde. É a este organismo do Fundo de Fomento de Habitação, com sede em Lisboa, que eu me dirijo, alguns dias depois, para concorrer à construção de um bairro social para habitação dos nossos bombeiros. Inteirado da viabilidade, foi-me recomendado dirigir-me à sua Delegação do Norte, no Porto, onde tudo acabou por ser tratado.

No dia um de agosto de 1980, por despacho do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, é autorizada a comparticipação de trinta mil contos aos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua, destinada à construção de trinta fogos. O auto de construção é assinado em outubro do mesmo ano, pela firma José Ermida Lopes e Irmão e pelo secretário dos bombeiros da Régua, Manuel Montezinho. Esta obra, que arrancou em janeiro de 1981, paralisou ao fim de dez meses, o que obrigou a Direção dos Bombeiros a tomar posse administrativa da mesma para proceder a novo concurso. É a firma Eusébio e Filhos que assume a construção do bairro, então já adjudicada por quarenta e cinco mil contos. Salinte-se a disponibilidade do Engenheiro Né, não só enquanto fiscal da obra, mas também pela colaboração em diversos casos e situações problemáticas que esta construção implicou. Esta só viria a ficar pronta em 1984, ano em que fui afastado da Direção, e entregue aos seus legítimos utentes apenas cinco anos depois...

Lamento não ter podido completar tudo aquilo a que me propus. Congratulo-me, no entanto, por, para além das obras citadas, ter podido ainda, durante o meu mandato, participar na criação da Fanfarra, mérito do amigo António Dias; na criação do museu, mérito de Pedro Macedo, e na reativação da Biblioteca, entre outras atividades que ficaram pelo caminho...

Enquanto Presidente da Direção, quero aqui deixar o meu agradecimento a todos os colegas que em muito contribuíram para todo o trabalho executado.

Como sócio, quero continuar a manter a minha grande amizade aos nossos bombeiros.
- António Bernardo Pereira, antigo Presidente da Direcção


PROBLEMA RESOLVIDO EM CASA
Desde criança que sou admirador e amigo dos Bombeiros Voluntários. O meu tio mais velho, Eduardo Menezes, irmão de minha mãe, era bombeiro e foi, durante alguns anos, comandante dos bombeiros de Alpiarça.

Uma vez por ano, na véspera do 5 de Outubro, vinha jantar a casa de meus pais, onde ficava para no dia seguinte comemorar com os seus correligionários a implantação da República. Quando conheci o nosso Comandante Carlos Cardoso, alto e aprumado, lembrava-me muitas vezes do meu tio.

Ao ser sondado para concorrer às eleições como candidato a presidente da Direção dos Bombeiros Voluntários aceitei imediatamente com alegria, ainda que sentido a responsabilidade do esforço que tal tarefa, a concretizar-se, me exigiria. Se é verdade que tinha trinta e poucos anos, pensava também que já era pai de quatro filhas e advogado com uma intensa atividade.

Fui eleito e comecei logo a trabalhar com dedicação e empenho. Queria ser digno da memória do meu saudoso tio Eduardo e dos meus ilustres predecessores doutor Júlio Vilela, Vieira de Castro, Camilo Araújo Correia, Abel Almeida e tantos outros.

A Direção a que tive a honra de presidir, teve logo a coragem de acabar com uma escondida salinha de jogo que funcionava na sede da nossa associação.

Foi uma realidade com a qual não contava até ao dia em que uma senhora me falou do vício do seu marido, que eu estimava, com verdadeira amizade, e acrescentava que não percebia como é que uma pessoa, “como o senhor doutor”, referindo-se a mim, podia permitir uma mesa de jogo nos Bombeiros. Não queria acreditar no que ouvia mas depois de informado, convenci-me que era verdade. Na reunião seguinte, coloquei o problema e todos os dirigentes acordaram a por termo a tal prática. Uma Associação tão respeitável e respeitada como a nossa não podia viver com receitas desta espécie.

Tivemos sócios que não concordaram com a nossa decisão, invocando que tais proventos faziam falta aos Bombeiros mas defendemos que a Associação não podia também permitir uma casa de prostituição para os arranjar. O dinheiro dos “amigos”, que se entretinham a gastá-lo no jogo, fazia mais falta nas suas casas para as necessidades dos filhos e das esposas. Assim se acabou com o jogo ilícito na sede dos Bombeiros.

A partir daí, a nossa Associação tornou-se mais forte e realizou algumas obras que, até então, pareciam um sonho longínquo: a ampliação do quartel dos Bombeiros e sede da Associação e o bairro dos Bombeiros. Com esta posição da Direção a nossa Associação tornou-se mais humanitária e mais próxima de todos os reguenses.

Vila Real, 16 de Novembro de 2012
- Aires Querubim de Meneses Soares
Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Actualizado em Dezembro de 2013. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 21 de Novembro de 2012. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

VIDA POR VIDA: não há maior prova de amor

Quando alguém me diz "aquele é bombeiro", o primeiro julgamento que faço é este: "se é bombeiro, é boa pessoa ".

Na verdade, as primeiras palavras que ocorrem ao espírito ao pensar nos bombeiros são "vida por vida", devido naturalmente ao facto de ser um slogan comum entre as corporações de bombeiros, que se dedicam a salvar o próximo, arriscando a própria vida, se necessário for, em favor de outrem.

O bombeiro encontra-se no quadro da minha memória num lugar de destaque, porque realiza um serviço de alto risco no apoio à comunidade em situação de acidente ou de incêndio.

Recordo alguns vizinhos meus que eram bombeiros e que, quando tocava a sirene, corriam pela rua fora para o quartel, para irem acudir aos que estavam envolvidos em chamas, a lutar para se salvarem a si, aos seus familiares e aos seus bens do fogo devorador que em pouco tempo pode reduzir tudo a cinzas.

Recordo-me do tempo em que era criança e vivia na travessa da Rua da Alegria, lá no fundo, junto à Avenida Marginal João Franco. Presto homenagem aqui ao Quim Laranja e ao Zé Pinto, que Deus tenha em Sua Santa Morada por todos os bons serviços e sacrifícios que fizeram ao longo da sua longa carreira de Bombeiros Voluntários da Régua. Muitas vezes os vi a correr pelo nosso quelho abaixo e logo tinham de enfrentar a íngreme subida da Rua da Alegria, conhecida também por Rua General Alves Pedrosa. Quando depois vivia na Rua dos Camilos, que tem o nome do meu pai, talvez o único com esse nome, eu via um número maior de bombeiros de todas as idades a deixar os empregos e a correr, rua fora, para o quartel, respondendo à chamada da sirene.

Quando o Dr. José Alfredo Almeida um dia destes fez questão de, pessoalmente, me mostrar o Museu dos Bombeiros, fiquei surpreendido ao encontrar um quadro onde estava assinalado o número de badaladas necessárias, do sino da capela do Cruzeiro, para dar a conhecer à Régua a rua onde estava a acontecer o incêndio, pois foi o sino a primeira sirene usada pelos bombeiros voluntários da nossa terra. Claro que me surpreendi, embora não estivesse longe da minha memória o costume de falar do toque de sinos a rebate, a apelar à ajuda do povo na luta contra um incêndio, ou para outro acontecimento relevante. É um costume que ainda está nas nossas memórias, pelo menos nas aldeias por onde passei como pároco entre os anos 80 e 2003: Sedielos, Vinhós, Vila Marim e Cidadelhe.

No dito museu, encontrei também a fotografia do padrinho do meu pai, que foi um dos comandantes desta nobre associação, Camilo Guedes Castelo Branco, e por aqui percebi porque o meu pai era Camilo. No verão de 2011, por ocasião de um batizado dum descendente, pude retribuir àquele comandante o gesto que teve para com o meu pai, pois quando me apercebi estava na qualidade de sacerdote a abrir as portas da Igreja a uma criança, filho do Sr. José Luís Castelo Branco, com quinta em Remostias, em cuja capela foi realizado o ato litúrgico, o que foi para mim motivo de grande alegria.

O slogan "vida por vida" recorda-me aquele bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, que deu a sua vida, aqui na Régua, no ano em que eu tinha apenas dois anos de idade, em 1953, no incêndio do edifício da Casa Viúva Lopes. Recorda-me todos os oito bombeiros que este ano de 2013 deram a vida pelos seus semelhantes. Recorda-me todos os que no mundo inteiro já deram a vida pela mesma causa.

"Vida por vida" lembra-me ainda o maior de todos os bombeiros que deu a vida por todos nós, homens, e para nossa salvação, Jesus Cristo, homem e Deus verdadeiro, modelo de todos os bombeiros, que, sendo Deus, se fez homem e desceu do Céu para dar a vida por toda a humanidade condenada a perder-se eternamente no fogo do inferno, onde há choro e ranger de dentes.

Esta instituição recorda-me o meu querido avô paterno, que me levava muitas vezes na sua camioneta de aluguer para muitas terras. Um dia em que eu estava em cima dela na avenida João Franco, vi ao longe o pronto-socorro a tocar a sirene e baixei-me para diminuir a sensação aflitiva que me causava.

Ao pensar nos bombeiros penso também no meu pai, que é o sócio número 1956, desde 1994, e saúdo todos os sócios desta associação e peço a Deus o eterno descanso para todos os que já partiram deste mundo e fizeram parte desta bendita obra que em boa hora nasceu na nossa cidade. Que Deus a todos recompense segundo a Sua promessa: “tudo o que fizerdes a um dos mais pequeninos dos meus irmãos foi a mim que o fizestes”.

"Vida por vida" recorda-me todos os que deram a vida por esta associação, empregando-a nos serviços que prestaram, no tempo que concederam, nos bens que partilharam, nas bençãos que fizeram descer sobre esta benemérita e centenária instituição. Uma vez aqui, não posso deixar de lembrar todos os sacerdotes que a abençoaram em nome de Deus. Recordo com particular afeto o Reverendo Dr. Avelino Branco, que tive a alegria de ver numa das fotos do arquivo desta casa, e que foi Pároco desta freguesia de S.Faustino do Peso da Régua no tempo em que fui para o Seminário de Vila Real e a quem dei o último abraço em Fátima, no pavilhão do Seminário da Consolata, pouco tempo antes de ele ir para o Céu.

"Vida por vida" recorda-me a referência que Jesus faz no Evangelho quando diz que não há maior prova de amor do que dar a vida por um amigo. Ele, quando ainda éramos pecadores e seus inimigos, deu a vida por nós, por isso tem autoridade para nos dizer: amai os vossos inimigos, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos caluniam para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus e que faz chover sobre justos e injustos.

Finalmente, a minha homenagem vai para um dos maiores, o comandante Carlos Cardoso, que o Senhor levou para si há relativamente pouco tempo. Conheci-o um pouco mais de perto, visitei muitas vezes a sua casa e a sua família, laços de amizade e fé ligavam as nossas famílias, deixou-me um valoroso testemunho de fé. Ele foi um dos católicos mais empenhados desta nossa comunidade, pois estava bem alicerçado em Jesus Cristo. Uma vez convertido num curso de cristandade, nunca mais abandonou a Jesus; pelo contrário, Jesus era toda a sua razão de ser, de viver e sofrer, aceitou cristãmente o sofrimento e adormeceu tranquilamente, confiando e esperando em Cristo e na Sua promessa de vida eterna feliz para todos os que crêem Nele.

Bem hajam todos os que deram, dão e hão de dar a vida nas pequenas e grandes coisas desta benemérita e centenária instituição, que Deus vos sirva em Sua Glória como vós servistes e amastes os vossos irmãos.
- Padre Zeferino de Almeida Barros. Em 17 de Setembro de 2013, Memória de São Roberto Belarmino, Bispo e doutor da Igreja. (Actualizado em Novembro de 2013)

Clique  na imagem para ampliar. Texto e imagm cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2013. Actualizado em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

Congresso da Régua

Guardo, na memória mais viva, um registo impressivo da minha passagem pelo Congresso da LBP, o 41º, que teve lugar na cidade da Régua, de 28 a 30 de Outubro de 2011.

Foi um Congresso com uma excelente organização e um ainda melhor acolhimento por parte dos Bombeiros Voluntários  da Régua, que, com simplicidade e mestria, souberam receber e reconhecer os Congressistas.

Três dias, antecedidos de tantos outros, todos indistintamente entusiasmantes e não menos marcantes.

Durante 6 meses, preparei afincadamente o Congresso e parti para ele com motivação, ambição e realismo q.b.

O realismo de antecipar uma disputa difícil, também pelo rol de personalidades que desfilaram, dias a fio, na passadeira dos apoios e adesões, expondo razões, algumas, escondendo motivações, outras tantas, marcando posições, todas elas.

A ambição de representar os Bombeiros de Portugal, liderando a Confederação, com um Programa conhecido, abrangente e explícito.

A motivação de um saber e conhecer, com capacidades para, com entrega e a tempo inteiro, responder ao desafio a que me propunha.

Recorri às novas tecnologias e delas fiz uso insistente e recorrente para divulgar, com propriedade e actualidade, um conjunto vasto de textos, contendo a minha opinião sobre temas prementes, e permanentes, da vida dos nossos Bombeiros.

Deste modo, julguei estar mais próximo e procurei chegar mais longe.

Conscientemente, privilegiei o circuito comunicacional, sabendo que, com isso, me comprometia e também me expunha.

Do Congresso, dos seus 3 dias, reclamo uma quase ausência de projectos e ideias, um enfoque nos protagonistas e em alguns figurantes e um rebuscado e intrigante jogo de bastidores.

Todos excessivos.

Tendo feito uma prévia e profunda reflexão sobre o sector dos Bombeiros e a sua integração activa no Sistema Nacional de Protecção Civil, com apuramentos necessários e urgentes, apresentei ideias e propus-me ao debate do papel e das responsabilidades do Estado, do modelo organizativo para os Bombeiros, do modelo de financiamento para as AHBVs/CBs, das responsabilidades na área da saúde (do transporte de doentes ao pré-hospitalar) e da formação.

Não alimentei ataques pessoais nem me revi em atentados de carácter.

Foram dias intensos, muito intensos e vibrantes.

Um Congresso eleitoral com mais que uma lista concorrente é sempre um espaço emocional e um momento vivo e singular, enquanto expressão de divergências e de visões plurais.

No Congresso, a par de uma “foleira” fulanização, ficou evidente a existência de duas abordagens opostas, de duas visões bem distintas, resultado também de dois percursos bem diferentes que alguns, confortados no desconhecimento, quiseram apoucar.

E essa oposição vale, hoje, como herança, que enriquece o presente e condiciona o futuro.

O futuro faz-se do imprevisto, da incerteza, do risco, mas também do que para ele carrearmos em propósitos, compromissos e cumprimento de palavra dada.

Apesar de não ter ganho o Congresso, como era minha expectativa, não saí zangado, nem ácido e muito menos azedo.

Apenas triste.

Porque não vi traduzido em votos e em confiança o investimento, físico e intelectual, que fiz ao longo dos tempos para que os Bombeiros abraçassem a missão de sempre, com outra ousadia e ambição.

Bati-me para que os Bombeiros ganhassem um lugar central no sistema, reflectindo nesse lugar o seu peso e importância operacionais como garante do funcionamento regular e pronto da Protecção e Socorro.

Com o Congresso da Régua ganharam os Bombeiros.

Houve confronto e pluralidade de ideias e, com dignidade, provou-se que é possível construir a unidade nos fins, impulsionando a diversidade estratégica.

Aos Bombeiros da Régua, o meu muito obrigado por me (nos) terem acolhido tão bem!

Aos Bombeiros de Portugal, o meu agradecimento por me terem proporcionado dos dias mais ricos da minha vida dedicada a esta estranha causa, que, por ser também estranha, mais se entranha!
- Rebelo Marinho, Presidente da Federação de Bombeiros do Distrito de Viseu. (Actualizado em Novembro de 2013)
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de texto e imagens de JASA (José Alfredo Almeida) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012. Actualizado em Novembro de 2013. Texto também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 21 de Junho de 2012. Só permitida a cópia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

domingo, 24 de novembro de 2013

GERIR O NOSSO TEMPO…

As iniciativas designadas de “projetos que fazemos para a nossa vida” são abundantes, mas nem sempre realizáveis. No quadro lógico, o relacionamento assume maior relevo comparativamente aos elementos isolados e, se bem aplicado, reforça a amizade, e o trabalho produzido a bem de uma causa torna-se mais profícuo, reforçando a legitimidade daquilo para que somos eleitos.

Os projetos são intervenções que devem ser capazes de atestar coerência. Tal é conseguido se não se afastarem daquele que é, ou se assume que deva ser, o fundamento da sua existência, a concretização de um sonho que alimentamos desde criança.Tal situação estimula a seletividade dos nossos pensamentos e torna a avaliação das nossas iniciativas como um fator importante para o desenvolvimento das nossas capacidades.

Numa perspetiva prática para desenvolver um trabalho, não importa ter muitas ideias. Importa ter ideias e capacidade de concretização. Não chega saber-se aquilo que se quer. É fundamental transmitir isso aos outros.

Tive a felicidade de servir em várias causas. Eleito para a Direção do Sport Clube da Régua, desempenhei vários cargos durante anos. Fiz parte de algumas Comissões de Festas de N. S.ª do Socorro. Durante quatro anos exerci o cargo de vereador do Município da nossa terra, tendo, nessa altura, proposto que fosse dado o nome a uma rua do malogrado Bombeiro que morreu tragicamente no incêndio da Casa Viúva Lopes, João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos, proposta que foi aprovada por unanimidade, estando essa rua localizada no Bairro de N. S.ª do Socorro. Atualmente faço parte da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia. Por fim, quero falar daquilo que não foi a última causa que servi, mas aquela que me marcou mais – fazer parte da Direção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua durante cerca de quinze anos, sempre como primeiro secretário. E digo isto porque, no momento em que o Senhor Doutor Aires Querubim teve que deixar o cargo de Presidente da Direção por ter assumido o de Governador Civil, foi-me proposto pelos meus colegas que o substituísse, o que não aceitei por entender que as minhas aptidões estavam mais viradas para aquilo que desempenhava.

Participei e trabalhei na concretização de vários projetos, sendo que os de maior relevância foram o alargamento do Quartel e a construção do Bairro. Empenhei-me, não só eu, mas também todos os meus colegas de Direção, para que um sonho antigo que já vinha de alguns anos atrás – o bairro – se tornasse numa realidade. Não posso esquecer o momento em que, tendo o Senhor Doutor Aires Querubim sido nomeado para o cargo que exerceu brilhantemente como Governador Civil, lhe pedi para interceder junto do Fundo do Fomento da Habitação para o desbloqueamento do projeto, o que fez com todo o entusiasmo e competência e, assim, tornou realizável aquilo que já se vinha arrastando há longo tempo, anterior mesmo às Direções de que fiz parte. Foi com muita emoção que assinei o contrato para a sua construção.

Também um momento alto na minha passagem pela Direção dos nossos Bombeiros foi aquele em que, com muito entusiasmo e crença, consegui, juntamente com o saudoso Comandante Senhor Cardoso, como eu o tratava, trazer para a nossa terra a realização de um Congresso no ano do centenário da nossa Associação.

Foi um momento alto que vivi aquando da votação para a realização de tão importante e apetecido evento, já que havia outras Corporações interessadas, entre as quais a do Porto, mas foi escolhida a do Peso da Régua. Houve, na altura, quem duvidasse da nossa capacidade, pois era entendimento de alguns que a nossa terra não possuía estruturas capazes de albergar mais de um milhar de participantes, entre Bombeiros com farda e sem farda. É certo que na altura não possuíamos hotéis ou residenciais, tanto aqui como nas redondezas, capazes de albergar tamanho número de participantes.

Mas, como “querer é poder”, conseguimos, com a ajuda de muitos reguenses, que receberam em suas casas alguns elementos diretivos das corporações de quase todo o país, dos Seminários de Godim e de Poiares e de um salão da Real Companhia Velha, onde foram colocados colchões insufláveis que nos foram cedidos pelo Regimento Militar de Lamego, alojar centenas de Bombeiros que vieram no dia anterior ao do encerramento. Tivemos, ainda, a cedência do pavilhão, que na altura ainda estava em final de construção, da Escola João de Araújo Correia, onde foi servido um jantar a todos quantos nos honraram com a sua vinda e foram mais de um milhar.

A abertura do Congresso, que teve lugar no Cine-Teatro Avenida, foi presidida pelo então Ministro da Administração Interna, Eng.º  Eurico de Melo, e ao seu encerramento assistiu o Senhor Presidente da República, General Ramalho Eanes, com um almoço no salão Nobre da Casa do Douro.

Foram momentos que jamais esquecerei, aqueles que vivi naquele dia ao ver desfilar na minha terra centenas de Bombeiros e dezenas de viaturas!

Foi com muito orgulho que, em ambos os momentos, assumi as honras da Casa, por ausência inesperada do então Presidente da Direção, Senhor António Bernardo Pereira. Jamais esquecerei o que, em dada altura, me perguntou o então Presidenta da Liga dos Bombeiros Portugueses, Padre Vítor Melícias, se eu ainda sabia onde ficava o Norte e o Sul do País.

Estive presente em vários Congressos, deslocando-me sempre em representação da Direção e na companhia do nosso tão querido e saudoso Comandante, Carlos Cardoso dos Santos, tais como em Aveiro, Estoril, Guarda, Viana do Castelo e Viseu, mas, como é natural, aquele de que guardo as melhores recordações, é do nosso, feito com muito trabalho e sacrifício de toda a Direção, mas também de vários reguenses e de elementos de outras corporações do distrito que connosco tiveram a amabilidade de colaborar, excetuando-se a de Mesão Frio, que não concordou com a nossa eleição.

Não poderei esquecer, ainda, a colaboração que tivemos do nosso Município, presidido pelo saudoso Professor Renato Aguiar, do qual obtivemos grandes ajudas, inclusive a de fazer coincidir com o Congresso a realização da Feira do Douro, que tanto o abrilhantou.

Sempre me empenhei, com a colaboração de todos os meus colegas de Direção, entre os quais destaco o incansável trabalho desempenhado pelo nosso Tesoureiro, Senhor Heitor Gama, por fazer o melhor que sabia e podia para o engrandecimento e bem-estar dos nossos Bombeiros e da nossa Associação, citando a criação da Fanfarra e a realização das Festas de Natal. Para fazer face às despesas com tais realizações e ainda quando era necessário adquirir uma viatura, lá íamos percorrer todas as freguesias do nosso concelho, levando a cabo peditórios para a recolha de fundos. Sempre fomos recebidos com o maior carinho e boa-vontade, acompanhados pelo Corpo Ativo, que, juntamente com a Direção e o Comando, sempre quis colaborar.

Fui responsável pela saída dos últimos números do jornal Vida por Vida, interrompida pelos seus custos, que se tornaram difíceis de suportar pela Associação.

Por fim, recordo duas situações que vivi, nas quais desempenhei o trabalho de um bombeiro com farda. A primeira foi quando fomos chamados para a extinção de um fogo na Quinta do Castelo, em Medrões. Na falta do Comandante e de Bombeiros que se encontravam em serviço em Moura Morta, tive que conduzir uma viatura transportando para o local, com autorização do Comandante, material e alguns homens que foram desempenhando funções, aos quais se juntaram depois os seus colegas vindos do local onde se encontravam.

O outro foi quando trabalhava na secretaria desempenhando funções que me estavam adstritas. Atendi um telefonema em que era pedida uma ambulância para transportar um acidentado em estado grave em Vilarinho dos Freires. Havia viatura, mas faltava quem a conduzisse. Imediatamente interrompi o que estava a fazer para ir socorrer quem dos Bombeiros necessitava.

E foi assim que passei dos melhores momentos da minha vida, servindo com amor, carinho e abnegação as causas que abracei desinteressadamente.
- Manuel Montezinho. Actualizado em Novembro de 2013

Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Actualizado em Novembro de 2013. Texto e imagem cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

BUICK, O CÃO “VOLUNTÁRIO”

Todos os dias, quando passo pela manhã para levar as crianças à escola, fito-me no teu olhar dócil, ternurento, “alguém” que mesmo ali, parado, de cauda a abanar, está sempre disponível para partilhar a sua fidelidade, amizade. Não usas farda, não tens botas, nem esse chapéu ou capacete vermelho que os teus amigos usam. Tens quatro patas e, ali sentado, estás alerta, és um quartel imenso aos meus olhos…trazes a paz, a disponibilidade e a vontade de dares o teu carinho a quem passa sem receber nada em troca…

Mas eu, que todos os dias te vejo, já te abracei quantas vezes no teu olhar, já toquei em imensos momentos no teu pêlo, que imagino sedoso… É certo que falo de um cão, sentado ou deitado à entrada do quartel...

Sabes, tive curiosidade de saber o teu nome… Para mim, Buick, és um sol que irradia e que me inspira, pois todos os dias continuam mais felizes quando te vejo… Para mim, seja o que fores nesse grupo de bravos humanos, serás sempre o meu bombeiro preferido.

É certo que poderia estar a falar dos bombeiros humanos, os bravos que correm entre as chamas, que estão aqui e ali, sempre onde é preciso, sem falsos ideais.

E tu, amigo de quatro patas, estás ali, no quartel, para o que der e vier, para “abraçares” quem passa, para nos fazeres lembrar que a vida ainda tem coisas simples que nos cativam e nos ajudam a ser melhores!

Desejo-te muitas bravuras, muitos anos de voluntário, na companhia dos teus heróis – os bombeiros!

É porque os animais têm destas coisas, fazem-nos sentir assim.
.- Peso da Régua, Anabela Almeida, Junho de 2013. Actualizado em Novembro de 2013.

Clique na imagem para ampliar. Sugestão de texto e imagem de José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2013. Actualizado em Novembro de 2013Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Refazer Memórias

Na primeira metade do século passado ainda o senhor José Afonso de Oliveira Soares andava por aí, por todos os caminhos e todos os recantos da vila do Peso da Régua. E sempre numa postura de bonomia e de bom trato, de mais a mais afeiçoado não só às motivações jornalísticas, mas também a todos os cenários do desenho e da pintura. Andava por aí com as suas barbas já um tanto abrancaçadas e a sorver as fumaças de um cachimbo de boa paz.

Por esse tempo já eu era um gaiato de meia dúzia de anos, nascido e criado em meio rural, todo envolvido de singelezas e flores campestres.

Por esse tempo eu não conhecia o senhor Afonso Soares, muito menos o seu talento e as suas qualidades artísticas. E mal feito fora que eu, ainda mal saído dos cueiros, andasse já a dar tento das pessoas mais ilustres e mais admiradas. Os meus cuidados, de todo infantis, andavam de volta das pereiras e dos pessegueiros a ver se já tinham frutos amadurados. Também de volta da coelha parida, a saber de quantos laparotos era a ninhada. E a pocilga do reco, sempre na engorda, até que, pelo Dezembro, o Seara vinha matá-lo e sangrá-lo em modos de o aviar em presuntos e salpicões. Nos dias mais soalheiros da Primavera, podia ir aos ninhos ou à cata dos grilos, enquanto a moça Carolina lavava um montão de roupa no tanque grande, com a água toda escumada de sabão.

Isto será um resumo da minha pretérita ruralidade. Mas foi o quadro da Margarida, quadro que Afonso Soares pintou, que veio, só por si, refazer estas memórias.

O quadro da Margarida, pintado em folha-de-flandres, foi-me oferecido pelo meu amigo Mário Joaquim, que, na altura, trabalhava na tipografia da Imprensa do Douro. O quadro é, todo ele, um cenário de tonalidades e sabores campesinos e já há tempos lhe dei realce em letra de forma. Disse, por exemplo, que por um carreiro de terra vem caminhando uma rapariga cheiinha de mocidades. Ela traz na ilharga uma regaçada de erva fresca,  se calhar para mantença da coelheira. Afonso Soares, com um pincel miudinho, deu-lhe a finura dos traços e o que quer que seja de uma luz irradiante. Os olhos da rapariga,  movediços a todo o largo, não deixam de ser envolventes e nas faces afogueadas até parece que vem por aí a cantar umas cantiguinhas, bem avivadas no calor da garganta. Os longes do quadro, esses, são ainda uma harmonia de ruralidades. À cachopa pus eu o nome de Margarida, cachopa que sendo grácil e bem apessoada, também tem o nome de uma singela flor campestre.

Guardo o quadro como uma reserva do passado e com as ressonâncias que sobrevivem num crescendo harmonioso.

Ainda a refazer memórias, bem me lembro de há uns bons trinta anos ter ido, em consulta clínica, a casa do senhor António G. Castelo Branco, ali em Cambres, na Quinta da Bugalheira. Na casa e na estreiteza do quarto, reparei que um belo quadro estava pendurado na parede. Figurava uma cabeça de Cristo, com uma bela expressão de sereno e compadecido misticismo. Da transparência das tintas e suas discretas tonalidades, pareceu-me que se evolava uma luz de recolhida santidade. Pareceu-me, até, que aquele quadro era propício à beleza e ao talentoso amadorismo do pintor Afonso Soares. E, em conversa de bom e salutar convívio, disse-me o senhor Castelo Branco que o quadro lhe fora oferecido pelo autor Afonso Soares, pois tinha sido seu amigo e quase contemporâneo.

Mas, Afonso Soares também se distinguiu como escritor e jornalista e um digno Comandante dos Bombeiros da Régua. E foi com redobrado deleite que li e reli a primeira edição da História da vila e concelho do Peso da Régua, edição que guardo a bom recato na minha biblioteca.

Em conclusão, digamos que Afonso Soares tem um busto em bronze no Jardim do Cruzeiro, a exaltar e a perpetuar o talento e as benquerenças do jornalista, do escritor e do pintor. Ali está como um sinal de luz não esmorecida, sinal a reluzir e a pulsar no nosso entendimento.

O artista, afeito a uma órbita de novidades, parece adorar o seu mundo. A olhar a rua é ainda e sempre um mendicante da arte e da beleza.
- Manuel Braz de Magalhães, Novembro de 2013.

Clique na imagem para ampliar. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Recordando… O incêndio na Casa Viúva Lopes

António Guedes

Quem era, na Régua, que não conhecia o João dos Óculos? João Figueiredo era o seu verdadeiro nome, sendo natural de Vila Pouca de Aguiar. Há meia dúzia de anos atrás alistara-se na Corporação dos Bombeiros Voluntários, da qual era um valioso elemento, de comportamento exemplar.

Era um belo e leal camarada. Tipógrafo de profissão, tinha a particularidade de ser um exímio tocador de gaita de beiços. Tinha arte e jeito para aquilo. Várias vezes tocara para a Emissora Nacional, que transmitia depois, para todo o país, as inúmeras e bem executadas músicas do seu sortido e selecto reportório.

Era míope e, para corrigir essa deficiência, usava uns óculos demasiadamente grandes para a sua estatura, pelo que dava a impressão de que trazia uma bicicleta escarranchada quase na ponta do nariz.

Gostava de passear, segundo me disse. Mas tinha a infelicidade de a escala nunca o contemplar quando se tratava da saída de qualquer piquete de representação para qualquer terra do país. E tão desiludido ficava quando isso acontecia que um dia, no quartel, me falou sobre o assunto.

- Não te aflijas, amigo João. Na primeira ocasião em que eu seja escalado, levo-te comigo, - respondi-lhe.

Até a alma se lhe riu, ao ouvir estas palavras, ficando demoradamente, como era seu gesto habitual, a esfregar as mãos de contentamento.

E um dia, de facto, caiu-lhe a sopa no mel. Fui escalado para, com um piquete, representar a Corporação numa festa qualquer que se realizava em Lisboa.

Um dia antes da partida fui até ao quartel, verificar se tudo estava em ordem e procurar o João, para lhe dar a boa nova.

Lá o encontrei, indolentemente encostado a uma viatura. Dirigindo-me a ele, informei-o de que, desta vez, a «cautela» lhe tinha saído premiada, pois que o levaria comigo, como lhe prometera.

Estou a ver a sua cara, radiante de felicidade. E, num abrir e fechar d’olhos, pôs o capacete e os botões da sua farda a brilhar como diamantes.

Na madrugada do dia imediato, partimos para a capital, levando o João, pequeno e franzino, entre mim e o motorista, visto que a lotação da viatura estava completa.

A viagem correu bem. E em Lisboa, após a parada, destroçámos e, com o Gastão e o Cristiano, fomos a Cascais e, depois, a Cacilhas, onde, como «aperitivo», comemos umas frescas e deliciosas sardinhas assadas. Foi um verdadeiro «magusto».

O João dos Óculos demonstrava a sua satisfação e alegria num constante sorriso, e não se separou de mim um instante, na eventualidade de vir a precisar dos seus serviços.

Não permiti que ele despendesse um centavo, contrariando a sua vontade.

E foi este, afinal, o único passeio que deu, pois que, passados tempos, a importuna sirene convocava-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes desta vila, e ele, - tal como no passeio que deu a Lisboa - para lá seguiu precisamente entre mim e o motorista.

Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam totalmente o prédio sinistrado.

Se, como sucedeu, em vez de tentarem apagar o fogo, nos tivessem chamado imediatamente e, entretanto, tivessem desligado o quadro da electricidade, talvez se tivesse feito qualquer coisa proveitosa e não tivéssemos de lamentar, agora, a perda de uma vida preciosa. Mas não sucedeu assim, infelizmente.

À uma hora e meia da manhã, um bombeiro pediu para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.

Mandei chamar outro bombeiro para isso, mas o João, que estava ali próximo, ofereceu-se para substituir o camarada.

O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este de pouca espessura, aplicado sobre o soalho, o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.

O João tomou conta da agulheta, estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.

Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinza e faúlhas, que quase nos cegavam.

A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e, então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra, entalado por escombros, em cima de um tonel. Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos, sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos deixaram de se ouvir.

Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.

Quando vi baldados todos os nossos esforços para salvarmos o infeliz João, corri à procura do Comandante, para lhe dar parte da terrível tragédia. Mas já alguém se tinha antecipado a fazê-lo, pois que fui encontrá-lo completamente aniquilado. Abraçando-se a mim, chorou e soluçou como uma criança.

E essas lágrimas, sinceras e sentidas que vi deslizar, em catadupas, pelo enrugado rosto do meu bom e velho Comandante, contagiaram-me de tal forma que os soluços me embargaram a voz e as lágrimas me correram também pelo rosto, sujo pela cinza e pelo fumo daquele vulcão infernal, que tirara a vida àquele nosso bom e querido camarada.

Lágrimas destas não envergonham um homem.

Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a fim de evitar que ficasse carbonizado, o que se conseguiu.

E só às seis da manhã, - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.

Pobre e infeliz João! Como eu senti a morte daquele pequeno e grande amigo!

Pequeno e franzino como era, tinha no entanto uma alma de gigante.

Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.

O seu amolgado capacete ficou religiosamente guardado, no quartel, para figurar no nosso sonhado museu.
NOTA: Quem quiser conhecer a história dos bombeiros Régua terá ler as Memórias desde antigo Chefe dos Bombeiros da Régua (ocupou ainda o lugar de segundo comandante), já desaparecido do mundo dos vivos e que era filho do ilustre Comandante Camilo Guedes Castelo Branco. Este seu texto, faz parte de uma série que escreveu, com o título de Recordando… (já que o subtítulo é da responsabilidade exclusiva de quem faz este arquivo) evoca um dos maiores incêndios na Régua e, comovidamente, a personalidade singular do cidadão e do bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, que vi morrer queimado nesse fogo quando estavam a combatê-lo, foi publicado no jornal Arrais, na sua edição de 25/01/1979.

Clique  nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição e atualização de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.