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quinta-feira, 8 de maio de 2014

Viagem Inesquecível a Chaves

Esta viagem de comboio, na linha do Corgo, foi há mais de 85 anos…!

Poderia ter sido mais uma, igual a muitas outras, que se fizeram nessa magnifica linha de caminho-de-ferro, mas esta deve ter sido bem diferente. Se bem que não se conheçam os motivos que terão levado os bombeiros da Régua, acompanhados de uma grande comitiva, de irem a Chaves, essa viagem não ficou esquecida no tempo.

Alguém se lembrou de registar os pormenores mais significativos dessa “Excursão à vila de Chaves, promovida pelos bombeiros voluntários da Régua, no dia 19 de Julho de 1925”. Com a intenção de informar a posteridade, ainda escreveu aquela única mensagem numa folha, onde arquivou as melhores cinco fotografias, inesquecíveis tanto para eles como para nós, agora.

Não sabemos com que finalidade os bombeiros da Régua promoveram esta excursão a Chaves. Agradecemos que alguém nos ajude, se para tanto dispuser de elementos capazes. Terá sido uma vigem de lazer? Uma viagem de cortesia à associação flaviense congénere? Quem eram as pessoas que os receberam na estação? Que foram festejar? Um aniversário dos bombeiros de Chaves? Uma inauguração de novo quartel ou de outro melhoramento? Parece haver um segundo estandarte para além do dos Bombeiros da Régua, mas será dos Bombeiros de Chaves? A locomotiva (uma Ensechel E 224) parece estar decorada com elementos alusivos aos bombeiros. Se assim é, poderemos imaginar que tenha sido uma viagem especial, com programa fora do normal.

Uma certeza, talvez mesmo a única: os bombeiros da Régua foram recebidos com toda a pompa e entusiasmo pela população de Chaves. Com o respeito que se impunha, de estandarte bem erguido, os nossos bombeiros desfilaram garbosamente pelas ruas principais, exibindo à frente homens bem conhecidos, como Lourenço Medeiros, mais tarde comandante, e o destemido patrão Álvaro Rodrigues da Silva.
Há viagens de comboio que valem a pena.

Uma delas, se ainda fosse possível, seria a da Linha do Corgo. Quem a fez no tempo dos comboios a vapor, dos velhos “Texas”, como eram carinhosamente conhecidos, teve a última oportunidade de apreciar o percurso de uma das mais bonitas linhas de caminho-de-ferro do nosso país. O traçado entre Vila Real e Chaves encerrou em 1990, o troço entre Régua e Vila Real encontra-se encerrado, por tempo indefinido, desde 2009, para obras de melhoramento.

Os que adquiriram bilhete na estação da Régua para a viagem de 19 de Julho de 1925 fizeram, com certeza, uma viagem inesquecível.

Primeiro, um percurso panorâmico, ao longo de 25 km, da Régua a Vila Real, que serpenteia por entre vinhedos e nos permite a contemplação das águas do Corgo, a correr lá ao fundo do escarpado vale, depois a atracção dos cumes do Marão a encimar as penedias agrestes na linha do horizonte. Depois de Vila Real, onde normalmente a locomotiva se reabastecia de água e carvão, a paisagem completamente diferente da veiga e planalto de Vila Pouca de Aguiar, avistando-se, ao longe, as límpidas águas do Tâmega.

Sem atraso no horário, este comboio especial fez as paragens habituais nos apeadeiros e estações mais importantes. Conhecedor experiente da arquitectura sinuosa da linha, o maquinista aportou “à tabela” à estação de Vidago. Em obediência às instruções do chefe da estação, parou o comboio em linha de estacionamento, como procurasse um tempo perdido, marcado pelo fascínio de uma nova época.

Antes, o comboio tinha feito uma breve pausa no apeadeiro de Zimão. Alguém mais crente no divino recordou a bondade do padre Manuel do Couto, admirado pelo povo da sua humilde terra natal de Telões.

Este missionário distinguia-se pelo atendimento em confissão de quantos a ele recorriam, pelo amor à escrita, pela paixão pelo bem e, muitas vezes, passavam pela sua pessoa maravilhosos e inexplicáveis milagres. Ouviam-se contar relatos dos seus milagres, no meio dos ruídos da composição em andamento, só possíveis num homem, como ele, a caminho da santidade: "O Padre Manuel ia muito prós lados de Chaves pregar. Ia quase sempre numa mula. Mas um dia, não sei porque razão (talvez a mula estivesse doente), resolveu apanhar o comboio na estação de Zimão. Como não tinha dinheiro para o bilhete ( andava sempre sem dinheiro, apesar da família ser rica), o revisor obrigou-o a sair, já ele estava sentado, dentro do comboio. O Padre Manuel, como era obediente, saiu logo para fora. Mas, mal pôs os pés no chão, a máquina deixou de trabalhar. As pessoas que estavam na estação e dentro das carruagens ficaram pasmadas e meio assustadas. Foi então que o Padre Manuel disse ao revisor: Ou me deixais entrar, ou o comboio não sairá da Estação. O revisor olhou para o chefe da estação e para o maquinista. Estavam sem pinta de sangue. O chefe da estação não esperou nem mais um segundo e deu ordem para o Padre Manuel entrar no comboio. O que se segue é que, mal ele pôs os pés na escada do vagão, o comboio começou logo a andar" (texto retirado do http://paradadocorgo.blogs.sapo.pt/).
Na estação de Vidago, a locomotiva parava para um descanso e o maquinista procedia a afinações. Como havia tempo de sobra, os bombeiros, na companhia de ilustres elementos da comitiva, que seguiam nas carruagens de 2ª classe, aproveitaram a frescura do dia para folgarem. Nas redondezas encontraram uma casa de pasto que lhes serviu um delicioso bacalhau frito e um vinho branco à maneira. Saíram acompanhados do fotógrafo de serviço, que não se esqueceu de fotografar a locomotiva, festivamente adornada com ramos de árvores e duas bandeiras, a ganhar fôlego para o resto da viagem. Como estava sol, desceram a alameda ladeada de plátanos até à entrada do majestoso Palace Hotel, único na beleza da sua fachada principal, deslumbravam-se com o parque de vegetação abundante. Ao lado, ficava a estância termal, apreciada pelos poderes curativos das suas águas, bem frequentada de aquistas metódicos nos tratamentos diários e movimentada de turistas do entardecer, perdidos na sombra e na frescura dos arvoredos.

O ambiente romântico do lugar inspirou a veia poética dos mais sensíveis, donde nasceram quadras de amor dedicados às namoradas. Desconheço se esses versos chegaram às mãos e ao coração das amadas, mas muitos anos mais tarde, alguém se encarregou de lhes desvendar a intimidade para todos nós, dando-se ao cuidado de os publicar nos jornais, hoje esquecidos.
O saudoso jornal dos bombeiros, “Vida por Vida”, foi o periódico escolhido por Horácio Moura Lopes, reguense por adopção, poeta sem livros editados, autor de escritos dispersos pelos jornais da época, para nos dar a conhecer o seu poema “A Luz Que Me Roubaste”:

“Não cesso de dizer a toda a gente
Que o fogo dos teus olhos me cegou:
Onde não me julgares, eu lá estou,
Ceguinho, com o meu bordão à frente.

Há preces em minha alma que pecou
Ao ver-te graciosa, docemente…
Em ti, o “não” fugiu e o “sim” não mente,
Entre nós a amizade já findou.

Não me escrevas, te peço, mais missivas
Para um cego as propostas são altivas.
Hoje, já não te devo interessar.
Mas, se por mim passares, tem cuidado…

A tua voz em timbre modulado
Pode bem minha luz recuperar!”

Como passageiro acidental desta viagem de comboio, fico maravilhado a reler os dois últimos versos, que revelam a pureza dos afectos do poeta à mulher. Emocionam-me como se eu pudesse sentir a sua dor antiga. O amor, sempre o amor, com as suas desilusões e as suas mágoas, tornam as pessoas mais frágeis.

Descubro, por mero acaso, que os versos do poeta Horácio Moura Lopes eram destinados a uma mulher de quem se apaixonou por toda a vida, até ao último dia. Deveria dizer melhor, a paixão mantêm-se na eternidade. Essa mulher acabou por ser muito importante na infância do autor destas linhas. Foi sua primeira professora. A Dona Esmeralda, como eu a conheci sempre, era uma educadora exigente, culta e rigorosa, que ensinou, numa velha escola primária, as primeiras letras e os caminhos da vida, começando por um lugar muito pequenino, como são as Caldas do Moledo.

Não podiam ficar mais tempo parados na estação de Vidago. Como a vida nunca pára, a viagem deste comboio tinha de continuar até ao destino, até à vila de Chaves, onde ia terminar em festa e em alegria. A distância a percorrer era ainda longa. Na marcha lenta do comboio, seriam precisas mais de duas horas de viagem e de conversas para o desembarque dos bombeiros e dos passageiros que os acompanhavam. Na gare da estação, mesmo antes de o fotógrafo fazer as imagens que iam ficar para a História, uma grande multidão de pessoas felizes havia de aguardar os forasteiros reguenses. Iriam viver um momento único, uma recepção de primeira, uma festa de esfuziante alegria, organizada para homenagear os heróicos bombeiros da Régua.
“Senhores passageiros, o comboio vai partir……” anuncia, em voz rouca e dolente, o chefe da estação de Vidago, aprumado num coçado fato cinzento, de apito e a bandeira de serviço na mão. Sente-se já o calor de um verão que se anuncia quente, a descer pelas montanhas verdejantes. A velha locomotiva dá o último silvo, deixando à sua volta uma negra nuvem de fumo e para trás a magia poética de um lugar eterno, onde havemos de regressar.

Com o comboio em movimento, aproveitemos esta vigem na linha do Corgo até ao fim, pela memória daqueles que tiveram o prazer de a fazer. Não tardará nada que este comboio chegue à estação Chaves. A partir desse momento, não deixem de continuar a sonhar porque a vida não será mais a mesma.

Afinal, nos nossos dias, não se pode repetir uma viagem de comboio na linha Corgo, como a que os bombeiros da Régua fizeram em 1925. Limitamo-nos a viajar nessas filigranas de carvão, pela linhas imaginárias da nostalgia, com a paragem nas estações e apeadeiros de memórias fugazes, percorrendo os lugares e as paisagens que, desde as nossas origens, fazem parte dos mapas da nossa geografia sentimental.
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida.
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VIAGEM INESQUECÍVEL A CHAVES