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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Padre Manuel Lacerda

Os Bombeiros da Régua tiveram uma forte ligação à religião católica logo desde os primeiros anos da sua existência. Os bombeiros pioneiros beneficiaram da ajuda espiritual do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges. Ele foi, ao que consta, o primeiro capelão dos nossos Bombeiros.

O Padre Manuel Lacerda foi também um pedagogo e, nos tempos da monarquia e primeiros anos da república, na escola particular que fundou, ensinou as primeiras letras a crianças. Enquanto viveu, os reguenses admiraram-no e não deixaram de o chorar quando Deus o chamou na flor da vida, com pouco mais de 35 anos. Sendo um homem de belas feições, o seu coração perdeu-se de amores e paixões que nunca escondeu de ninguém. De uma relação amorosa que assumiu, foi pai de uma criança que ajudou a crescer. Esse seu filho, de nome José Lacerda, imitando as pisadas do seu pai, chegou a vestir a farda de bombeiro.

Depois da morte do sacerdote, os Bombeiros da Régua não tiveram mais ninguém que quisesse ser capelão, muito embora o saudoso Padre Carminé, figura conhecida no passado séc. XIX por ser um dotado director de orquestra, tenha andado a espalhar a fé pelo velho quartel da Chafarica. Se se terá ocupado de rezar missas por altura do aniversário da corporação ou, quando muito, pela morte de algum bombeiro, não se sabe, mas algum bem deve ter feito àqueles primeiros e generosos bombeiros.

Com a morte do Padre Lacerda, mais nenhum sacerdote encontrou vocação espiritual para pastorear as almas dos bombeiros reguenses. Mesmo que tivessem inclinação para usar, em vez da batina preta, uma farda, um capacete e uma machada para entrar com os bombeiros no inferno das chamas do fogo, por certo deve ter-lhes faltado a coragem. Ao levar a fé, o padre pode salvar alguém do pecado e até dos maus caminhos do viver em comunidade, mas nunca se pode comparar com  a missão dos nossos bombeiros que está no limite do verdadeiro altruísmo e generosidade e numa fronteira ténue entre a  vida e a morte, quando são chamados pelo toque do sino ou da sirene para salvar bens e vidas em perigo.

Nem no Quartel dos Bombeiros da Régua, nem no seu pequeno Museu há memórias vivas da passagem do Padre Manuel Lacerda. Como também não existe nenhuma lembranças da boa alma que ele foi como construtor de laços de concórdia e de fraternidade entre os concidadãos do seu tempo.Nas rotinas do dia-a-dia da Associação,que se mantém viva e activa permanentemente desde o ano de 1880, ninguém se deu ao cuidado de arquivar uma fotografia para que ali fossem, pelo menos,perpetuadas as sombras de sua presença e do seu carácter humano exemplar.

Mas, o Padre Manuel Lacerda, embora tenha sido sepultado numa campa rasa do cemitério de Canelas, não ficou esquecido como bom pastor na poeira do tempo e na memória do seu povo.E, muito sinceramente, até esperávamos que um dia ele fosse homenageado pelo bem que fez à sua terra e aos seus bombeiros...

E, por isso, quando sobre ele fizemos uma pequena nota a dar conhecimento da sua existência e da sua importância  na sociedade reguense, não sabíamos se lhe íamos encontrar os  rastos do caminho que, muito cedo,  o levaram daqui até aos confins do outro mundo. Enganámos-nos e, quase a terminar o ano de 2013, os seus descendentes ainda vivos e de boa saúde vieram ao nosso encontro. Uma sua neta, filha do José Lacerda, ao ler na internet uma nossa evocação do distinto capelão dos bombeiros, telefonou-nos, comovida pelo nosso gesto, indicando-nos os dados pessoais que dele nos faltavam. Ao mesmo tempo, acrescentava outros que nos alimentavam uma esperança de traçar o esboço de uma ligeira biografia e revelar uma pequena parte do curto percurso terreno deste sacerdote. Essa neta deu-nos a preciosa informação de que a outra irmã guardava do distinto padre uma fotografia muito antiga, que teria sido tirada ainda muito jovem. Dirigimo-nos ao marido da irmã, comerciante de roupas com uma pequena loja  na Rua dos Camilos que, depois de uma  simples conversa, nos trouxe a fotografia do sacerdote emoldurada num bonito quadro de madeira para fazer nos estúdios da Foto-Baía uma reprodução digital dessa imagem. Não demorou muito tempo que o retrato do capelão seguisse para o Quartel dos Bombeiros da Régua, para ficar exposto na galeria de figuras memoráveis.

Muitos anos depois, bem se pode dizer com um sorriso que o ditoso capelão estava de regresso à companhia dos homens do seu e nosso tempo, para se juntar àqueles que mais se sacrificaram por constituir na Régua um corpo de bombeiros voluntários, como é o caso dos Cdtes Manuel Maria de Magalhães, Afonso Soares, Joaquim de Sousa Pinto, dos bombeiros José Ruço e Riço, alguns dos tantos que, lá no infinito, andarão mortificados com algum incêndio que deixaram cá na terra por apagar.

Com o retrato do Padre Manuel Lacerda, a actual geração de bombeiros pode conhecer, finalmente, os traços e a fisionomia do seu primeiro capelão e, sobretudo, avaliar com mais atenção o seu exemplo de humanidade.Foi graças a esta inesperada e preciosa colaboração que o nosso sacerdote, lá do outro mundo, regressou ao nosso mundo, desta vez pelos caminhos do mundo virtual!

Quem tinha recordado o Padre Manuel Lacerda, num tom respeitoso e de elogio póstumo, quase como se o estivesse a venerar, foi o escritor João de Araújo Correia, que, numa crónica publicada no jornal Vida por Vida, de Novembro de 1957, sob o título "Recordações de Barro - Os Bombeiros", traçou o carácter da sua alma desta maneira:

“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras -tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda. Foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar. Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar...

Não chorou apenas aquele bombeiro, também ele já na Eternidade, a fazer companhia ao Padre Manuel Lacerda. Choram todos os reguenses pela alma do bom capelão dos Bombeiros da Régua, acreditando que lá na imensa Eternidade, onde andará a espalhar mensagens celestiais de concórdia, os espera com um bondoso sorriso para partilhar a vida espiritual em mais um grande e festivo banquete.
- Peso da Régua, 31 de Dezembro de 2013, José Alfredo Almeida*. Ler também - Escritos do Douro: O Padre Manuel Lacerda - Capelão dos Bombeiros do Peso da Régua.

*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras actividades (onde se inclui fotografia), escrevendo crónicas que registam neste blogue, no seu blogue "Pátria Pequena" e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, textos de escritores e poetas do Douro, além de fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Em conversa com Nogueira Borges - LEMBRANÇA DE NATAL

Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso:

“A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “.

Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". (Atualização daqui)

Pode ler M. Nogueira Borges neste blogue e no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 5.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Está sepultado em Cambres - Lamego. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Também publicado neste blogue em 19 de Dezembro de 2010. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

MEMÓRIA

Naquele tempo podia-se sonhar. O sonho era a ingenuidade de criança, poesia de um quotidiano que não se esgotava nem se rejeitava nele. Os limites eram imprecisos por desconhecidos ou não sentidos. Os sorrisos das pessoas “pareciam” sinceros e honestos. Não via neles nem ambição, nem inveja, nem ódio. Até os que zaragateavam nas tardes de domingo não se me antipatizavam como se tudo fizesse parte da naturalidade da vida. Aqueles de quem um dia me separava não  os inimizava nem disso necessitava. O que hoje se apresenta como sentimentalismo fácil, daquele tempo nascia sem segundas intenções e espontâneo.

O Verão era a época desejada do ciclo” estacional”. Os vinhedos tinham a cor da alegria e da esperança; ornamentados de verde e os bagos “pintavam-se” prenhes e fecundos. A minha terra tinha a beleza duma gestação sem dor. O céu assemelhava-se a uma gigantesca “ clarabóia” sob a qual se poderia dormir iluminado pelas estrelas e acordar, ao outro dia, com o sol acariciando-nos. Mas os homens da minha aldeia também arrastavam as grilhetas da angústia e traziam nos olhos a perturbação dum fatalismo irremediável. Eles viviam uns para os outros. Tivessem, ou não, terra esta era o fruto de que se alimentavam. Uns com mais, outros com menos ou com nada, eu dizia várias vezes que tinham de ser mais iguais e havia quem se espantasse. Os homens não eram maus, a realidade do ser levava-os, porventura, à repulsa do visionado.

Naquele tempo o viver não se projectava no cálculo geométrico dos gestos e a saudade era o desejo de estar onde não se estava… As palavras proibidas haviam-se fixado nos tempos de escola com os dois “retratos” lá no fundo a ladearem a grande lousa preta, onde os algarismos se escreviam debaixo da “vigilância” daqueles quatro olhos que nos infundiam o respeito das coisas intocáveis. Eles eram os “chefes”, os todo poderosos, perante quem o mais ligeiro altear da voz se tornava criminoso. E, no fim da tabuada e da redacção, a merenda, das uvas com broa, tinha um dobrado sabor. Então, estrada fora, sacola às costas, em juvenil algazarra, nos libertávamos sem sabermos de quê, jogando ao “ agarra”, pontapeando a bola ou correndo com o arco. E o sino da Igreja, sinalizando as Avés-Marias, quedava-nos por instantes, olhando os adultos que se “descobriram”.

Naquele tempo eu ia ao monte da minha terra, sentindo prazer no suor que a íngreme subida provocava, picando-me, aqui e além, nas tapagens de silvas, tentando descobrir ninhos no alto das oliveiras, estimulando com uma palha a saída dos grilos das suas loras, imitando com a ajuda das mãos o cantar das perdizes como via fazer aos caçadores...E lá no alto, bem no cimo das fragas, entretinha-me a escutar o eco dos meus brados – notas de satisfação duma forte impressão de liberdade. Sentado, via o Douro lá no fundo, superfície silenciosa de toda uma façanha de barqueiros, descobridores do caminho fluvial para a foz. Porque haveria homens assim? Fazendo trabalho tão duro com simplicidade quase complacente? E porque eram “eles” e não outros? O que determinava, afinal, a condição das pessoas? Seria a “sorte” uma aquisição irrevogável do nascer? Ou uma imagem de cada ser humano um modelo único sem hipótese de alteração? Homens havia que davam tudo e acabavam no esquecimento, que entregavam as energias da sua vitalidade à construção dum amanhã de crescimento e se viam de repente, com a brutalidade dum imprevisto estúpido transformados em anátemas. Mas as perguntas passavam, como a brisa por entre eucaliptos, para um posterior regresso interrogativo que nada conseguia evitar.

Naquele tempo, ainda muitos dormiam a sesta breve dum Verão encalorado que antecedia as vindimas, íamos de passo apressado para o adro da Capela romper os sapatos (os que os tinham) em jogos de futebol de mudar aos seis e acabar aos doze…Eram tardes de pó e suor, de ralhos e de “juras”, de nos “esfarrapar” para vencer aqueles Portos-Benficas da rapaziada da minha aldeia. Eram tardes de sol a pino e de correrias sem doseamento com ligeiras tréguas para deixarmos passar as mulheres que, de bacias à cabeça, regressavam do rio com a roupa lavada ou para ouvir as advertências do “guardador”, não fosse o entusiasmo dum pontapé mais forte levar a bola à vinha e esborrachar um cacho…

Era já com o sol a morrer e as mães em casa preparando as “contas”, que voltávamos, molhados e satisfeitos, discutindo os golos perdidos e combinando a desforra. A noite iria ser o interlúdio dum amanhã novo.
- *M. Nogueira Borges in Noticias do Douro de 21 de Junho de 1975
  
*Manuel Coutinho Nogueira Borges  é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição e imagem de Manuel Coutinho Nogueira Borges de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges... REVOLTA!

Fosse mais novo e sem responsabilidades familiares, quem emigrava era eu. Não para um outro país desta Europa desigual e dependente de soberbas geográficas e políticas, dos cafés e dos bares – como diz George Steiner - , mas para a África onde a pobreza tem sol, e alimento no mato, e água nos rios, e serenidade nas madrugadas das buganvíleas, e espelho no mar azul dos corais, e silêncio nas sombras dos palmares, e emoção num embondeiro perdido na imensidão da savana, e amor na contemplação das estrelas nas noites de arrebatamento.

Fugir desta Europa falida, levada à desgraça por homens e mulheres que atraiçoaram o voto da democracia, servindo-se da crença popular para se encharcarem no enriquecimento, cozinheiros de ementas para os banquetes sequazes; dirigentes de branqueamento intelectual e sem estofo e sem exemplo, mentirosos no limite do desaforo, a pensarem só neles e nos mais chegados, sem letra e sem lei, nomes e caras que só de lembrar ou ver nos revoltam as entranhas. Chegamos à miséria total, a da bolsa e a da alma, onde tudo o que é canalha triunfa, ao ponto em que só nos destinam a tristeza e a solidão, em que temos que aceitar tudo, mesmo o inaudito!

Criou-se a pior violência social: a silenciosa! Um povo infeliz, em que, como dizia o poeta, nos roubaram Deus e a humanidade! Uma Nação de duas classes: os desgraçados e os ricos cada vez mais frios, descarados e milionários.

Em África escolheria o mato das machambas e das palhotas, cultivaria a cana e o caju, escutaria os ecos dos meus gritos nas ”terras do fim do mundo”, andaria descalço nas picadas vermelhas, usaria uma catana só para abrir o coco que matasse a sede, rir-me-ia dos entretidos que dizem que o voto é a arma do povo, revoltar-me-ia contra os que sabem usar gravata e jogam ao poker eleitoral. Longe deles não seria tentado a fazer o que pede o coração.

Pôr-me a milhas deste continente, que criou uma civilização e se deixou afundar por calaceiros e falsos; corruptos sem classificação, que, em nome da Democracia, desempregam trabalhadores aos milhões, arruínam as finanças das pátrias, desviam réditos incontáveis para as latrinas do capitalismo, enquanto apregoam ideais igualitários e se afirmam defensores das doutrinas repartidoras.

Na África recôndita, sem cheiros de perfumes das alcofas de alperce, de tiques dos entendidos serventuários do sistema, dos que jogam e se vendem nos casinos do euro, afastado de toda a súcia desta desacreditada democracia, viveria feliz mesmo com o chirriar da coruja ou o uivo das hienas; é que a verdade é suportável, o fingimento sofrido.

Assim, não tenho outro modo senão partilhar o sofrimento…
- M. Nogueira Borges, 11 de Abril de 2012
Clique  na imagem para ampliar. Imagem original não editada recolhida da net livre. Edição de J. L. Gabão para os blogues "Escritos do Douro" e "ForEver PEMBA" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 30 de junho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges...

"... palavras sobre o homem amigo e o escritor nascido em S. João de Lobrigos, terra simples e de vinhos, para que sua grandeza humanista continue a brilhar no Douro. Uma vez me disse com um espanto infantil: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!...

Hoje, ao anoitecer, fiz estas fotos a ele dedicadas, enquadradas no Céu do Douro lembrando-me que só pode está lá em cima a dizer-me: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!"
- Jasa, Peso da Régua, 29 de Junho de 2012
A MINHA CIDADE
A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.
- M. Nogueira Borges in "O Lagar da Memória" -

O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.
- Vergílio Ferreira

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo contém colaboração de José Alfredo Almeida e pertence ao blogue Escritos do DouroÉ proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 30 de março de 2009

Manuel Maria de Magalhães - O Primeiro Comandante dos Bombeiros de Peso da Régua.

(Clique na imagem para ampliar.)

Manuel Maria de Magalhães, filho de Aires Maria de Magalhães e de Virgínia do Carmo Pereira, nasceu em 21 de Março de 1845, na freguesia de Santa Maria, em Bragança. Faleceu, com apenas 47 anos de idade, no dia 10 de Outubro de 1892, pelas 19.30 horas, em sua casa, na Rua Serpa Pinto, no Peso da Régua, achando-se o seu corpo sepultado, em jazigo de família, no cemitério municipal.

Exerceu as funções de escrivão de direito, no Tribunal da Comarca do Peso da Régua. Mas destacou-se, no meio reguense, por organizar um grupo de cidadãos que pretendiam constituir no concelho uma Companhia de Bombeiros, com o objectivo de ser dada melhor utilização à bomba de incêndios adquirida pela Câmara Municipal, em 1873.

Manuel Maria Magalhães deu resposta aos anseios da edilidade reguense que, preocupada com a frequência e a dimensão dos incêndios nos armazéns de vinhos, ambicionava colocar ao serviço da população um corpo de bombeiros voluntários, preparados e organizados – à semelhança do que estava a acontecer por todo o país - tendo assumindo a liderança de uma “Comissão Instaladora”, para preparar a constituição de uma associação humanitária.

Essa comissão, formada por mais vinte e cinco distintas e famosas pessoas, discutiu aprovou na Assembleia-geral, realizada em 25 de Junho de 1880, os primeiros estatutos (com 44 artigos e em anexo o regulamento interno para os sócios activos) que haviam de reger a instituída Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua - é a 13º a ser constituída em Portugal - e confirmados por Alvará de 12 de Agosto de 1880, assinado pelo Dr. José Ayres Lopes, Governador Civil de Vila Real.

Manuel Maria Magalhães tornou-se, com o apoio incondicional dos sócios fundadores, o primeiro comandante dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

Por sua iniciativa, a senhora D. Antónia Adelaide Ferreira, mais conhecida por Ferreirinha (1811-1896), uma das personalidades mais marcantes da história do Douro, foi a primeira a assinar o livro destinado à inscrição sócios contribuintes da Associação, grande honra para os bombeiros que receberam também a ajuda desta grande e distinta benemérita, nascida no Peso da Régua.

Manuel Maria de Magalhães, como Comandante da Companhia de Bombeiros - assim se dizia ao tempo - iniciou essas funções no dia 28 de Novembro 1880, que foi a data por si escolhida para realizar na casa da extinta Associação Comercial, sita na então Rua da Boa Vista, os festejos da inauguração da Associação, cessando-as no dia 10 de Outubro de 1892 (e não em 1904 como vinha a constar), isto é, no dia do seu falecimento.

Para o substituir no comando do Corpo de Bombeiros, os sócios activos elegeram na Assembleia-geral o sócio activo e fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro que, por desinteligência com os restantes sócios fundadores, veio a renunciar ao esse cargo, pedido que a Direcção da Associação aprovou, pelas razões invocadas, na sessão extraordinária, realizada no dia 24 de Novembro de 1892.

Após novas eleições para a escolha do comandante, foi escolhido desta vez, José Afonso de Oliveira Soares (1863-1939), que havia sido aceite alguns anos antes, como sócio activo, iniciando funções de comando nos bombeiros, no dia 3 de Fevereiro de 1893.

Da breve pesquisa não conseguimos recolher mais dados biográficos de Manuel Maria de Magalhães, mesmo tendo em atenção os contributos do seu bisneto, o nosso amigo Noel de Magalhães, Crachá de Ouro da LBP, que foi durante muitos anos director da Associação.

Mas, encontramos no Livro de Actas de 1880, a da Sessão Extraordinária de 10 de Outubro de 1892, efectuada no dia do falecimento de Manuel Maria de Magalhães.

Nessa noite, a Direcção reunida, com o seu presidente José Joaquim Pereira dos Santos Soares e os restantes directores, Padre Manuel Lacerda Oliveira Borges, Camilo Guedes Castelo Branco, Francisco Ferreira Ribeiro e o 2º Comandante Joaquim de Sousa Pinto, fez uma exposição da sua reconhecida grandeza e dos seus feitos, manifestou um sentido de profundo pesar pela sua perda para todos eles e, em especial, para a Associação, que ajudara a fundar e, em último, aprovou alguns actos de carácter público, para assinalar com dignidade a sua cerimónia fúnebre.

Reflectindo essa extraordinária acta o genuíno pensamento dos homens que o acompanharam nos primeiros passos de vida da Associação e que com ele conviveram as primeiras alegrias e as muitas incompreensões no erguer desta grande obra, a permanecer no tempo como uma grande instituição de utilidade pública ao serviço da população, e ainda os sentimentos de camaradagem dos seus amigos, não resistimos em transcrevê-la na íntegra:

“Aos dez dias do mês de Outubro de mil oitocentos e noventa e dois, reunida na sala de sessões toda a direcção, substituindo o primeiro comandante o segundo, foi dito pelo presidente que se atrevera a fazer reunião a esta hora, 10 da noite, visto a urgência do caso a tratar. Acabava de lhe ser comunicado o falecimento do mais representante (seja dito sem ofensa para ninguém) sócio desta Associação o primeiro Comandante Manuel Maria de Magalhães. Com esta perda sofreu esta Associação a perda do sócio, à qual devia a sua vida, pois que ninguém desconhecia que fora ao prestigio de Magalhães que esta Associação se fundara e, não só isso, vingara vencer dificuldades, mercê da sua vontade e dos seus esforços. Cada um dos sócios perdera um amigo, e esta colectividade um chefe que fora um modelo de louvar. Sem expressão com que pudesse dizer muito que a sua alma sentia, propunha que fosse dado conhecimento a todas as associações do país do falecimento do nosso colega; que fosse lançado em acta um voto de profundo sentimento pela perda sofrida; que se fechasse a Associação por um prazo de oito dias, em sinal de luto que fosse deposta uma coroa no (….) do falecido, em nome desta Associação; que fossem feitas as despesas do enterramento do mesmo, atentas as circunstâncias em que a família ficava, sendo desnecessário expô-las por serem do conhecimento de todos; e por último que fosse representado por esta Associação a todas as Associações congéneres do país, a fim de ser pedido o lugar de escrivão de direito que exercera o finado nesta comarca para o seu filho Alfredo de Magalhães, prestando assim uma última homenagem ao homem que deixe vinculado o seu a uma das instituições mais significativas desta vila. Não punha à discussão esta proposta: parecia-lhe que nem discussão tinha. Foi aprovada por unanimidade. O 2º Comandante (Joaquim Silva Pinto) pediu para que ficasse consignado nesta acta o seu profundo pesar e o da colectividade que comandava. O presidente ficou encarregado de fazer a representação a S. Majestade telegraficamente. Não havendo mais a tratar foi encerrada a sessão.”

Verifica-se que no âmbito do determinado pela mencionada deliberação da Direcção, foram pagas pelas contas da Associação as despesas do enterro do Comandante Manuel Maria de Magalhães.

Esse gasto constituiu uma despesa extraordinária, no valor de 75: 250 réis, como se pode ver documentada no rigoroso “Relatório de Contas”, devidamente apresentado aos sócios da Associação, no dia 21 de Dezembro de 1892, pela Direcção presidida por Camilo Guedes Castelo Branco, que fez expressar um sentido "voto de profundíssimo sentimento pelo seu óbito”.

Até à presente data, foram realizadas pela Associação duas singelas homenagens em memória de Manuel Maria de Magalhães.

A primeira, aconteceu em 1905 na celebração do 25º aniversário da Associação, com a colocação de uma lápide no seu jazigo, assinalando uma “saudosa lembrança” do Corpo de Bombeiros desse tempo.

A outra foi efectuada, em 2006, por ocasião das comemorações do 126º aniversário da Associação, ao “baptizar-se” com o seu nome, um moderno veículo de combate aos fogos urbanos, adquirido nesse ano.

Mas, já em 2005 a Direcção da Associação, entendendo que ele continua a ser o principal rosto e o mais importante dos seus fundadores, a quem se deve toda a grandeza da instituição, elegeu uma fotografia sua, a única que se conhece, para ilustrar a capa do livro da história: “AHVB de Peso da Régua-125 anos da sua História”. Evocam-se nessas páginas, os momentos mais significativos do passado da Associação que, sem margem para dúvidas, deve as suas origens ao esforço abnegado e altruísta do seu primeiro Comandante Manuel Maria de Magalhães.
Esta sensibilidade foi logo patenteada após a sua morte pelos demais sócios fundadores, ao confirmarem “que fora ao prestígio de Magalhães que esta Associação se fundara e, não só isso, vingara vencer dificuldades, mercê da sua vontade e dos seus esforços”.
-Peso da Régua, Março de 2009, José Alfredo Almeida.

- Outros textos publicados sobre os Bombeiros Voluntários de Peso da Régua e sua História:

  • A Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A cheia do rio Douro de 1962 - Aqui!
  • O Baptismo do Marçal - Aqui!
  • Um discurso do Dr. Camilo de Araújo Correia - Aqui!
  • Um momento alto da vida do comandante Carlos dos Santos (1959-1990) - Aqui!
  • Os Bombeiros do Peso da Régua e... o seu menino - Aqui!
  • Os Bombeiros da Régua em Coimbra, 1940-50 - Aqui!
  • Os Bombeiros da Velha Guarda do Peso da Régua - Aqui!

- Link's:

  • Portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua (no Sapo) - Aqui!
  • Novo portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • Exposição Virtual dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A Peso da Régua de nossas raízes - Aqui!

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Padre Manuel Lacerda - Capelão dos Bombeiros do Peso da Régua.

(Clique na imagem para ampliar)

Este retrato de Dezembro de 1956 conta várias histórias. Conta, em primeiro lugar, um momento muito significativo dos Bombeiros do Peso da Régua: a sua devoção ao seu santo padroeiro S. Marçal, cujo imagem se encontra em destaque ao fundo do Quartel Delfim Ferreira.

Ele mostra-se uma procissão vinda da Igreja Matriz, onde se tinha realizado a bênção da imagem deste santo, com a mesma a ser transportada em cima de um dos mais emblemáticos carros da Associação, o Buick, adquirido por volta de 1926.

Destaca-se ainda a guarda de honra composta por garbosos bombeiros, acompanhados pelo reverendo padre Miranda Guedes, no momento em que a procissão seguia pela Rua Dr. Maximiano de Lemos, próximo da chegada à entrada principal do majestoso quartel.

Conta e documenta as memórias e as identidades da cidade que, nos últimos 50 anos, cresceu muito urbanisticamente, gerando a descaracterização na silhueta da sua paisagem envolvente, revelada na fraca qualidade arquitectónica das actuais edificações.

As alterações da “fisionomia” da cidade que, a essa data, ainda espelhava beleza nas antigas casas de habitação, com terraços e quintais floridos e cheios de frescura das árvores que, nos tempos actuais, cederam lugar a grandes e volumosas edificações de habitação colectiva, as quais progressivamente cortaram o contacto visual com a bacia do rio Douro.

Quanto aos bombeiros do Peso da Régua, estes tiveram sempre uma ligação à religião católica. Desde os primeiros anos da fundação da Associação que a vertente espiritual foi fortificada nos “sócios-activos”, ou seja, nos primeiros bombeiros do Corpo Activo, por influência do bom Padre Manuel Lacerda Oliveira Borges que, para além de exercer as funções de director, foi seu capelão durante anos, até à hora da sua morte.

Desde a morte deste insigne sacerdote, o lugar de capelão no Corpo de Bombeiros do Peso da Régua nunca mais esse lugar foi ocupado. E, foi pena…! A sua existência foi logo prevista no art. 3 do primeiro “Regulamento para os sócios activos” juntamente com a de um engenheiro ou arquitecto e a de um farmacêutico.

Recordamos, pois, com saudade a sua pessoa, recorrendo para o efeito às palavras do escritor João de Araújo Correia, que numa crónica publicada no jornal “Vida por Vida”, de Novembro de 1957, sob o título "Recordações de Barro", descreve desta forma magistral, o dia do seu funeral:

“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.

Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.

O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me do o ver conversar com pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.

Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar. Deixou, na Régua, essa tradição benigna.

O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”

Não chorou só por ele o bombeiro Borrajo.

Choramos todos nós, pela alma do nosso bom capelão, o padre Manuel Lacerda, acreditando que lá na imensa eternidade, onde andará a espalhar mensagens celestiais de concórdia, nos espera a sorrir, para um grande e festivo banquete.
- Peso da Régua, Abril de 2009, José Alfredo Almeida.

Outros textos publicados neste blogue sobre os Bombeiros Voluntários de Peso da Régua e sua História:

  • A Ordem Militar de Cristo - Uma grande condecoração para os Bombeiros de Peso da Régua - Aqui!
  • OsBombeiros no Largo da Estação - Aqui!
  • A Tragédia de Riobom - Aqui!
  • Manuel Maria de Magalhães: O Primeiro Comandante... - Aqui!
  • A Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A cheia do rio Douro de 1962 - Aqui!
  • O Baptismo do Marçal - Aqui!
  • Um discurso do Dr. Camilo de Araújo Correia - Aqui!
  • Um momento alto da vida do comandante Carlos dos Santos (1959-1990) - Aqui!
  • Os Bombeiros do Peso da Régua e... o seu menino - Aqui!
  • Os Bombeiros da Régua em Coimbra, 1940-50 - Aqui!
  • Os Bombeiros da Velha Guarda do Peso da Régua - Aqui!

- Link's:

  • Portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua (no Sapo) - Aqui!
  • Novo portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • Exposição Virtual dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A Peso da Régua de nossas raízes - Aqui!

sábado, 17 de julho de 2010

Poema a PORTO AMÉLIA

(Clique na imagem para ampliar) 

POEMA A PORTO AMÉLIA
(À Memória de Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, escrito em Junho/70)

Terra suada pelo fogo do sol e esquecida lá no norte,
onde tantos ganharam a coragem para refazer a vida
e teimam em ficar, unidos e em comunhão com os lá nascidos.
Terra que ouve tiros ecoando na selva
e sepulta corpos vestidos com sangue de guerra,
poetas gritando justiça e paz, mesmo que ninguém os ouça,
nem os que trincam a alma no amanho da machamba,
nem os que mastigam o tempo no amanho da esperança.
Terra vermelha com cemitério debruçado sobre o mar,
cruzes escurecendo no desfilar da memória,
epitáfios de números e de nomes esquecidos além.
Terra que sente os espaços limitados,
as angústias das palmeiras seculares,
abrigando a sombra de olhos fixos nos corais
e suspirando horizontes na quietude triste de um cais.
Terra que ajudou a criar o poeta, a fazer o poema
e a construir a filosofia do abraço e do sorriso.
Terra que também é minha porque nela chorei de solidão,
chorei amigos que foram mortos sem razão
e nela joguei sem deserções o xadrez da vida;
vi crianças de olhos esbugalhados pelo espanto
e homens hipnotizados pelo minuto seguinte.

Ó terra excitada pelos batuques das gentes negras,
sons perdidos na cumplicidade das tembas!
Eu te lembro deste continente que se chama Europa,
meto o poema numa carta e pergunto quantos selos leva,
sem selos a palavra escrita não salta mares,
deito-a num saco de correio azul – azul como o teu céu
e espero, meu AMIGO, que me respondas do outro lado.
Seria bom – ó terra dos ecos nocturnos! – voltar às tuas manhãs de luz,
aos teus entardeceres como quem fecha os olhos para sonhar,
perder-me nas picadas de fins ignorados e ouvir o eco do meu grito,
aliviar o meu alvoroço oprimido e poder dizer: «Viva a vida!».

M. Nogueira Borges* – Porto, Junho/1970
  • Outros post's neste blogue que falam de Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, cidadão português nascido na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924, falecido em 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus e sepultado no Cemitério do Peso.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google. Pode ler também os textos deste autor no blogue ForEver PEMBA. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!
POEMA A PORTO AMÉLIA
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domingo, 28 de junho de 2015

SAUDADE AFRICANA - Manuel Coutinho Nogueira Borges

EM MEMÓRIA DE UM AMIGO QUE PARTIU HÁ 3 ANOS
Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória":
(Clique na imagem para ampliar)

Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 2

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Sem abusar da sua confidência, julgo que não alterarei o rigor da sua dedicatória, se acrescentar que o livro “Pátria Pequena” não foi só escrito e como uma homenagem, à “vila e o concelho do Peso da Régua”. Em grande parte esse seu livro, foi – é e será -  também,  um preito aos bombeiros da Régua, em especial aos bombeiros da velha guarda,  a todos os bombeiros do seu tempo,  como a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum”. Da mesma forma, deve ser entendido como o reconhecimento de uma Associação Humanitária que criou raízes no seu meio social e, por assim dizer, se tornou uma força invencível, obstinada em cumprir os ideais legados pelos seus heróicos fundadores.


Certamente que contar a história dos bombeiros da Régua não foi uma tarefa pensada ou imaginada pelo escritor, no sentido de que desejasse narrar os factos e os acontecimentos com uma ordem cronológica, como se fosse mestre de história. Mas, os temas tratados nas crónicas são uma grande parte da história dos bombeiros. Se nelas há muito das sua memórias também está também retratada a sua relação de amizade com os velhos bombeiros os directores. O escritor de memória em memória, de retrato em retrato e de acontecimento para acontecimento faz enobrecer a grandeza de homens bons e enaltece os seus ideais humanitários.


João de Araújo Correia, nas crónicas que dedica aos bombeiros consegue reconstruir uma parte do passado, obscuro e desconhecido, com génio, humanismo e até ternura por figuras humanas que já se tornaram imortais, em momentos que testemunhou, directa ou indirectamente, da existência uma instituição modelar, no que ela tem de sonho e de paixão, abnegação e heroísmo, grandioso e nobre, mas também de sofrimentos, desânimos, e tragédias que fizeram perder a própria vida a homens, que cumpriram ao extremo o lema do voluntariado: “Vida por Vida”.


Desde o projecto organizado por Manuel Maria de Magalhães, o líder escolhido para comandar o movimento associativo, os bombeiros aparecem referenciados nas inúmeras crónicas que o escritor publicou quer em livros quer em jornais, até ao fim da sua vida, encontrando-se as últimas no jornal O Arrais. Sempre com uma indisfarçável paixão, descreveu os bombeiros da sua terra como uma força invencível, uma força ao serviço de causas com uma dimensão moral e ética, que sempre apoiou.


Com os bombeiros, João de Araújo Correia manteve também uma ligação de sócio contribuinte. Era assim que o dizia na sua correspondência que encontramos arquivada nos bombeiros. Curiosamente, contribuinte era a classificação dos associados, definida nos primeiros estatutos, os que pagavam uma quota fixa em dinheiro para ajudar. Esta classe de associados, onde já se incluiu a D. Antónia Adelaide Ferreira, a famosa Ferreirinha, que se inscreveu como a sócia numero um, foram sempre muito importantes pelos seus contributos generosos nos momentos de maiores dificuldades económicas.


Como já se disse, João de Araújo Correia foi um dos colaboradores literários nas páginas do boletim “Vida por Vida”, folha informativa da Associação. Teve como primeiro director o seu filho Camilo de Araújo Correia que, durante um mandato de dois anos, exerceu as funções de Presidente da Direcção da Associação. Mas o escritor, sempre que lhe foi pedida a sua colaboração literária, respondeu de forma positiva. Escreveu textos e memórias relacionados com os bombeiros para os dois boletins comemorativos que a Associação editou, em 1955 e 1980, datas em que, respectivamente, comemorou as “Bodas de Diamante” e o seu primeiro centenário.


Perante os sacrifícios dos bombeiros, o escritor dizia numa carta que enviou  num dos aniversários da Associação que “a associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”.


Quando nasceu João de Araújo Correia, em 1 de Janeiro de 1899, a Associação dos Bombeiros da Régua tinha perto de dez anos de existência. Das mais antigas do país, encontrava-se numa fase em que havia muita boa vontade e determinação dos seus homens e um sentido de manter, apesar de todos os sacrifícios, um corpo de bombeiros voluntários capazes de cumprirem uma tarefa de protecção civil, então da responsabilidade da Autarquia.


Na história dos bombeiros rezavam a proeza e feitos, agraciados com medalhas e reconhecimentos públicos pelos relevantes serviços prestados às populações da Régua e dos concelhos vizinhos, onde não havia nenhuma corporação, como seja em Santa Marta de Penaguião, Armamar e Mesão Frio.


Em 1882 foi atribuído aos bombeiros da Régua, o título de “Real” , que estes passaram a usar na bandeira desenhada pelo Comandante José Afonso de Oliveira Soares.


Havia também falecido, em finais de 1892, de doença, na sua residência na Rua Serpa Pinto, com a idade de 47 anos, o principal fundador e o primeiro comandante Manuel Maria de Magalhães, o decidido impulsionador da criação dos bombeiros da Régua. Presidiu a uma Comissão Instaladora que depressa redigiu os estatutos da benemérita Associação e o regulamento para o bombeiro, com colaboração do advogado e então Presidente de Câmara, Dr. Joaquim Claudino de Morais, o qual prometeu a ajuda pessoal e da autarquia.


Na crónica “Bons e Maus Exemplos”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, -  assinada com o pseudónimo Joaquim Pires -  o escritor evoca um  pormenor da vida pessoal do primeiro comandante, natural de Bragança, mas que viveu e trabalhou na Régua, onde exerceu no Tribunal Judicial, então localizado no rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal, as funções de escrivão de direito.


“Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação Manuel Maria de Magalhães.
Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o Comandante Manuel Maria de Magalhães”.   


O escritor não conheceu pessoalmente o primeiro comandante dos bombeiros da Régua, mas na crónica “Bombeiros da Velha Guarda” (in Pátria Pequena, 1965) confessa a sua admiração pelos primeiros bombeiros alistados, com os quais se relacionou e conviveu, não para lhes bendizer feitos heróicos, mas para retratar os seus exemplos de altruísmo.


“Fim de Novembro, fazem anos os Bombeiros da Régua. Contam oitenta e cinco, mas parece que nasceram ontem. Nem uma ruga, nem um cabelo branco, nem um desalento…Garbosos até no capacete, fazem do seu garbo agilidade, frescura e força. Que milagre!
Confraternizam, em cada aniversário, os Bombeiros da Régua. Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…Mas talvez que nenhum se lembre, nem bombeiros nem contribuintes, de sócios e bombeiros antigos, que também se sentaram, em ágape semelhante para comer e gracejar.
Quem vai contando anos, dos que já fazem mossa, não dos bombeiris, que rejuvenescem, lembra-se da velha bomba e de quem a movia e sustentava.
Lembra-se de Afonso Soares, com a sua barba branca; do poeta Camilo Guedes, de gravata à La Vallière; do José Avelino, que comia um boi por uma perna; do José Ruço, que pertencia ao grupo auxiliar; do Joaquim Maria Leite, o Riço, que pertencia ao corpo activo com alma de criança e alma de bombeiro. Mas, de quantos se não lembra ainda? Justino Lopes Nogueira, o Justino, daria um livro de inocentes recordações alegres.
O quartel dos Bombeiros, situado ali em baixo, na Chafarica, largo dos Aviadores, como hoje se diz, era o clube da terra. Havia outro, mas, aristocrático, presidido pelo monóculo do Dr. Costa Pinto. Clube, ponto de reunião sem preconceitos, era o quartel dos bombeiros. Ali se jogava e conversava à vontade. Ali se davam gargalhadas que faziam estremecer o quartel. Guarda-lhe o eco algum ouvido então adolescente…”.


O escritor lembrou um bombeiro voluntário, o divertido Justino Lopes Nogueira, natural de Santa Marta de Penaguião, que foi conhecido por falar com erros gramaticais. Não se distinguiu não pelas suas proezas heróicas, mas antes pelos seus burlescos e impagáveis comentários.


Em “As anedotas do Justino”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, traçou um breve retrato deste humilde 1º patrão – hoje equivalente ao posto de Chefe -  dos bombeiros, à mistura com palavras de ironia e muita  ternura pela sua  humilde figura.


“Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…
Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.
Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.


- Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…
Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.


-Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…
Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.


-Deu-lhe de presente uma apendicite.
Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.


-Sempre simpatizei com o seu panorama…
Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama. Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!


O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança.   Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.


À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!


Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira.   Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.
Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.
Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”


Quem o escritor lembrou de forma comovente na crónica  “Figuras de Barro - Os Bombeiros” (in Manta de Farrapos-1957) foi  o primeiro Capelão dos bombeiros da Régua,  a figura bonacheirona  do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges e o dia triste do seu funeral, quando  ia  a caminho do cemitério do Peso.


“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar.    Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”


Embora João de Araújo Correia não o tenha confessado, o seu pai António da Silva Correia, solicitador encartado, republicano convicto, nascido nas Caldas do Moledo, foi um dos bombeiros da velha guarda. Tinha pertencido, por algum tempo, ao corpo de bombeiro, mas o seu porte físico não era compatível com a acção exigida a um bombeiro.


Como seu pai deixou guardou a farda de bombeiro e seus adereços no baú das recordações, foi aí que o escritor encontrou a inspiração para o recordar, comovidamente, em “Figuras de Barro - Os bombeiros” (In Manta de Farrapos - 1957),  publicado, originalmente,  no boletim “Vida por Vida”.


“Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu eu, isto é, com o seu físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.
Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após outra, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso.
Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.
Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulho no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável.
Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
João de Araújo Correia na "Wikipédia"