A presença dos bombeiros na vida e obra de João de Araújo Correia
“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia
Quem teve o prazer de ler algumas das crónicas do escritor João de Araújo Correia sabe bem que o Douro, desde o humilde jornaleiro ao abastado proprietário, o seu rio dos barcos rabelos, os seus socalcos de vinhedos, onde se produz o vinho do Porto, foi o seu universo real e literário.
A vila da Régua - como era ainda designada – e o concelho, como lugar onde nasceu, criou, viveu, trabalhou e morreu, que chamou de “Pátria Pequena”, serviram-lhe de inspiração e pano de fundo para escrever uma grande parte das suas crónicas.
Da íngreme rua de Medreiros - a actual Maximiano de Lemos - onde teve a residência familiar e um frequentado consultório médico, João de Araújo Correia, nas horas de repouso, estendia o olhar para a montanha que lhe ficava em frente ao terraço, plena de luz sobre o casario de cal branca e os vinhedos fartos pela encostas de Loureiro, Fontelas e o Vale de Jugueiros, em Godim.
Em volta deste cenário gravitavam figuras sagradas do imaginário popular, como ele dizia, as “almas sem penas” do Santo Heitorzinho de Loureiro, do viticultor rico António Borges e do Dr. Mesquita, médico andarilho, enquanto o rio Douro se espraiava na curva da margem do Salgueiral. Se o olhar se deleitava com esta sua paisagem, muitas vezes lhe inspirava os seus pensamentos de cidadão atento e crítico, apontando os erros graves aos que estragavam este equilíbrio natural da sua terra.
Com frequência, o escritor e o cidadão apontavam o desagrado ao poder camarário pelos erros e as fealdades urbanísticas de uma terra que crescia atabalhoadamente, sem nenhum respeito pela preservação ambiental, a falta de asseio e limpeza das ruas e de qualidade de vida numa vila em que não havia uma escola do ensino público secundário, uma biblioteca para os espíritos mais inquietos, um hospital para as urgências médicas, nem sequer um jardim para as crianças brincarem e os mais velhos se refrescarem nas quentes tardes de verão da Régua.
Era assim, a vila Régua, por volta de 1913. A urbe que conheceu como criança durante o tempo em que frequentou a escola primária do mestre Zezinho e fez depois estudos secundários, até rumar para o Porto para, na Escola Médica, estudar medicina.
Alguns anos depois, em 1928, formado em médico, regressou para exercer clínica e fazer-se, por devoção, escritor. A Régua pouco ou nada tinha mudado. Estava quase igual como a tinha deixado, sem alterações de monta no seu espaço geográfico urbano, o que se via pelas mesmas casas e as mesmas ruas.
A maior diferença que notou estava na sua rua, a Rua de Medreiros - hoje Rua Dr. Maximiano de Lemos. Já não encontrou os moradores mais lustres, como o Sr. Silva, contínuo da câmara, o Dr. Zagalo, talentoso advogado boémio, a D. Pantalona, a Joaquina Pinheira, a Mariquinhas Taranta, cozinheira conhecida de Sol da Rua, o Zé Ruço e sua consorte Senhora Ritinha e o maluquinho Tanta-Rua, pregoeiro das festas e dos enterros, todos sumidos e de partida para o outro mundo.
Se o jovem médico encontrou algo diferente na vila do Peso da Régua, foram os bombeiros e a associação humanitária. Aí encontrou uma casa modelar no exemplo do altruísmo e coragem dos seus bombeiros.
Pelo contrário, nos bombeiros encontrou algo mais que um serviço de voluntariado. Os bombeiros eram uma força viva e dinâmica. Desde o seu princípio desejavam fazer mais que a protecção da vida e dos bens das pessoas. No seu edifício sede, no quartel guardavam os seus equipamentos para os incêndios, mas também havia lugar para as reuniões, o convívio social, a leitura e os jogos para quer fosse sócio ou tão só amigo dos bombeiros.
Essa movimentação cívica e cultural em volta dos bombeiros talvez tenha sido o bastante para, nos seus escritos, os aplaudir como cidadãos diferentes, pelos valores éticos e de cidadania activa. Esta era a verdadeira razão que os distinguia numa terra pacata, parada no tempo, sem que ninguém ousasse mudar este desinteressante estado de coisas.
A partir de certa altura, a Associação dos Bombeiros passou a ser motivo da sua atenção como mais ninguém o fez até aos nossos dias. Na verdade, poucos escritores haverá que se tenham lembrado de escrever sobre os bombeiros, de lhes conhecer os nomes, os seus sinais de fogo e tanto os elogiar. Aos bombeiros da sua terra, alguns dos quais conheceu, respeita-lhes os seus valores e mostra a admiração e gratidão pelo trabalho realizado em prole do semelhante, seja a apagar fogos ou a transportar doentes nas velhas e cansadas ambulâncias, a vangloriar o nível e a qualidade das suas iniciativas culturais.
São tantas e tantas as páginas de João de Araújo Correia em louvor dos bombeiros da sua terra, que poderíamos formar uma pequena antologia dedicada exclusivamente ao tema. Só quem conhece da história dos bombeiros da Régua – o que acreditamos ser assunto desconhecido a muitas pessoas - está habilitado a perceber que as suas palavras não foram meramente laudatórias. Elas espelham a grandeza de uma instituição que, nascida da vontade popular, tem mantido há mais de cem anos um trabalho permanente ao serviço da sociedade reguense.
Por outro lado, o escritor considerava os bombeiros, a instituição como tal, como um bom exemplo de uma sociedade civil que, ao contrário do ambiente geral, estava activa e dinâmica.
Na sua opinião, na vila da Régua tudo morria ao nascer, faltava o mais elementar para a vida de um cidadão, não ganhava sequer raízes. Identificando-se com os valores fraternais dos bombeiros, inerentes à sua dedicação ao voluntariado, não surpreende ninguém o seu humanismo, a cidadania e, sobretudo, respeito que nutria pelos mais fracos e humildes, aqueles que punham os seus talentos ao serviço da comunidade e do bem. É sabido que o escritor admirava os homens simples, generosos, altruístas e abnegados, no cumprimento de missões humanitárias.
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Inaugurada – para usar a palavra dos sócios fundadores - em 28 de Novembro de 1880, num difícil período da monarquia, a Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua nasceu da vontade de um grupo de 27 homens generosos que organizaram uma companhia de bombeiros voluntários para combater os incêndios nas casas e, sobretudo, nos armazéns de vinhos e aguardentes, situados na principais ruas da vila.
Quando ainda não se falava de uma protecção civil municipal, aqueles homens, com os seus quereres e inconformismos, lutas e êxitos, tudo fizeram para garantir o bem estar à sociedade reguense em situações de risco, como os incêndios, os acidentes e as temíveis cheias do rio.
O escritor João de Araújo Correia não encontrou, por acaso, os bombeiros. Teve a sorte de encontrar na sua infância, alguém da família que, para o entreter nas suas irrequietas brincadeiras, lhe deu os adornos de uma velha farda que tinha pertencido e sido usada pelo seu pai, António da Silva Correia (1869-1947), que tinha sido um sócio activo - um bombeiro voluntário como hoje se diz - nos primórdios da corporação, quando era comandada por Manuel Maria de Magalhães.
O seu pai, republicano por convicção, foi bombeiro, mas por pouco tempo. Como ele nos segreda numa crónica, faltava-lhe o jeito e a destreza física, o que o terá levado a desistir cedo do voluntariado, continuando, contudo, a mostrar os seus sinais de solidariedade e fraternidade.
Pode ter nascido aí esta afeição que ganhou aos bombeiros que o levou a construir no seu imaginário infantil uma auréola que nunca esqueceu. Mais tarde, numa fase adulta da sua vida, os bombeiros passavam a ter um estatuto de seres humanos fantásticos nas suas criações literárias, a quem chegou a comparar com “Semi-Deuses”.
A paixão desvelada com que os envolveu nos seus escritos não ficou pela admiração que guardou de criança e que guardou fielmente na sua memória. Acompanhando o seu pai, teve a oportunidade de frequentar no primeiro quartel dos bombeiros, situado ao fundo do Largo da Chafarica – hoje conhecido por Largo dos Aviadores -, numa velha casa, uma modesta biblioteca. Aí os bombeiros guardavam as bombas e pouco material de combate aos incêndios e, no 2º andar, funcionava a parte social e recreativa, um clube frequentado por todos estratos socam e de diferentes credos políticos. Era um lugar franqueado aos sócios, beneméritos e amigos da instituição que se reuniam para conversar, jogar dominó, quino e as cartas, desfrutar a o prazer da leitura dos jornais nacionais e de algumas novidades literárias, que se encontravam num vistosa estante de madeira, se assim se pode chamar, uma pequena biblioteca pública.
Mais tarde, já médico de nome feito, e, consagrado como homem de letras, pelas suas obras “Sem Método” e “Contos Bárbaros”, haveria de publicar nas páginas do boletim “Vida por Vida”, órgão oficial dos bombeiros, entre 1956 e 1974, as suas crónicas que depois seriam coligidas no livro “Pátria Pequena” e ainda de subscrever alguns estudos e apontamentos linguísticos, inseridos no livro “Enfermaria do Idioma”.
E, sobre este boletim, na crónica “Diário da Régua” (in Pátria Pequena, 1958) fez uma breve alusão à sua existência como uma fonte de informação local, mas privativa dos bombeiros.
“Pode-se dizer que a Régua, há cerca de cinquenta anos, teve um diário. Hoje, com mais habitantes, mais edifícios, mais automóveis, publica um semanário. Não importa para o efeito, o nosso boletim, que sai mês a mês, nem sequer passou de boletim…É folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros.”
As origens do seu livro “Enfermaria do Idioma” estão contadas numa crónica inserta nas páginas do “Vida por Vida”, onde deu conta do seguinte:
“A Enfermaria do Idioma inaugurou-se aí no Porto, na falecida Revista do Norte, no já recuado ano de 1955, ano em que nasceu, viveu e morre aquela tentativa de publicação literária estreme. Pode dizer-se que morreu ainda como anjinho, porque durou apenas doze meses.
(…)
A Enfermaria do Idioma não morreu com a Revista do Norte. Salvei-a… Peguei-lhe ao colo e trouxe-a para o Douro, para o boletim dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. Aí viveu até ao mês de Agosto de 67. Não sei se ressuscitará.”
Já quanto às origens do livro “Pátria Pequena”, que tiveram lugar no mesmo boletim de informação dos bombeiros destinado a sócios, no prólogo desse volume, o escritor dava conta aos leitores do seguinte:
“As notas que constituem este livro foram publicadas, quase todas, sem o meu nome, no Boletim Vida por Vida.
Mas, que é isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso dos leitores me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.
Publicou-se entre 1956 e 1974.Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.
(…)
Compare-se com uma luzinha inocente o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raio e pernas de rã, e abufou-lhe. Deu o ar - como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.
As notas que lancei ao Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole.”
Continua...
- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
João de Araújo Correia na "Wikipédia"
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