Naquele tempo podia-se sonhar. O sonho era a
ingenuidade de criança, poesia de um quotidiano que não se esgotava nem se
rejeitava nele. Os limites eram imprecisos por desconhecidos ou não sentidos.
Os sorrisos das pessoas “pareciam” sinceros e honestos. Não via neles nem
ambição, nem inveja, nem ódio. Até os que zaragateavam nas tardes de domingo
não se me antipatizavam como se tudo fizesse parte da naturalidade da vida. Aqueles
de quem um dia me separava não os
inimizava nem disso necessitava. O que hoje se apresenta como sentimentalismo
fácil, daquele tempo nascia sem segundas intenções e espontâneo.
O Verão era a época desejada do ciclo” estacional”. Os
vinhedos tinham a cor da alegria e da esperança; ornamentados de verde e os
bagos “pintavam-se” prenhes e fecundos. A minha terra tinha a beleza duma
gestação sem dor. O céu assemelhava-se a uma gigantesca “ clarabóia” sob a qual
se poderia dormir iluminado pelas estrelas e acordar, ao outro dia, com o sol
acariciando-nos. Mas os homens da minha aldeia também arrastavam as grilhetas
da angústia e traziam nos olhos a perturbação dum fatalismo irremediável. Eles
viviam uns para os outros. Tivessem, ou não, terra esta era o fruto de que se
alimentavam. Uns com mais, outros com menos ou com nada, eu dizia várias vezes
que tinham de ser mais iguais e havia quem se espantasse. Os homens não eram
maus, a realidade do ser levava-os, porventura, à repulsa do visionado.
Naquele tempo o viver não se projectava no cálculo
geométrico dos gestos e a saudade era o desejo de estar onde não se estava… As
palavras proibidas haviam-se fixado nos tempos de escola com os dois “retratos”
lá no fundo a ladearem a grande lousa preta, onde os algarismos se escreviam
debaixo da “vigilância” daqueles quatro olhos que nos infundiam o respeito das
coisas intocáveis. Eles eram os “chefes”, os todo poderosos, perante quem o
mais ligeiro altear da voz se tornava criminoso. E, no fim da tabuada e da
redacção, a merenda, das uvas com broa, tinha um dobrado sabor. Então, estrada
fora, sacola às costas, em juvenil algazarra, nos libertávamos sem sabermos de
quê, jogando ao “ agarra”, pontapeando a bola ou correndo com o arco. E o sino
da Igreja, sinalizando as Avés-Marias, quedava-nos por instantes, olhando os
adultos que se “descobriram”.
Naquele tempo eu ia ao monte da minha terra, sentindo
prazer no suor que a íngreme subida provocava, picando-me, aqui e além, nas
tapagens de silvas, tentando descobrir ninhos no alto das oliveiras,
estimulando com uma palha a saída dos grilos das suas loras, imitando com a
ajuda das mãos o cantar das perdizes como via fazer aos caçadores...E lá no
alto, bem no cimo das fragas, entretinha-me a escutar o eco dos meus brados –
notas de satisfação duma forte impressão de liberdade. Sentado, via o Douro lá
no fundo, superfície silenciosa de toda uma façanha de barqueiros,
descobridores do caminho fluvial para a foz. Porque haveria homens assim? Fazendo
trabalho tão duro com simplicidade quase complacente? E porque eram “eles” e
não outros? O que determinava, afinal, a condição das pessoas? Seria a “sorte”
uma aquisição irrevogável do nascer? Ou uma imagem de cada ser humano um modelo
único sem hipótese de alteração? Homens havia que davam tudo e acabavam no
esquecimento, que entregavam as energias da sua vitalidade à construção dum amanhã
de crescimento e se viam de repente, com a brutalidade dum imprevisto estúpido
transformados em anátemas. Mas as perguntas passavam, como a brisa por entre
eucaliptos, para um posterior regresso interrogativo que nada conseguia evitar.
Naquele tempo, ainda muitos dormiam a sesta breve dum
Verão encalorado que antecedia as vindimas, íamos de passo apressado para o
adro da Capela romper os sapatos (os que os tinham) em jogos de futebol de
mudar aos seis e acabar aos doze…Eram tardes de pó e suor, de ralhos e de
“juras”, de nos “esfarrapar” para vencer aqueles Portos-Benficas da rapaziada
da minha aldeia. Eram tardes de sol a pino e de correrias sem doseamento com
ligeiras tréguas para deixarmos passar as mulheres que, de bacias à cabeça,
regressavam do rio com a roupa lavada ou para ouvir as advertências do “guardador”, não fosse o entusiasmo dum pontapé mais forte levar a bola à vinha
e esborrachar um cacho…
Era já com o sol a morrer e as mães em casa preparando
as “contas”, que voltávamos, molhados e satisfeitos, discutindo os golos
perdidos e combinando a desforra. A noite iria ser o interlúdio dum amanhã
novo.
- *M. Nogueira Borges in Noticias do Douro de 21 de Junho de 1975
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
- Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição e imagem de Manuel Coutinho Nogueira Borges de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.