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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os meus bombeiros

Camilo de Araújo Correia

Os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua fizeram cento e dez anos. É um número bonito. Não por ser redondo, mas por traduzir muitos, muitos milhares de horas de trabalho e sacrifício e de quem dirige, de quem comanda e de quem obedece a regulamentos e sentimentos em benefício do mais anónimo dos anónimos - o próximo.

O programa das festas cumpriu-se no dia 2 de Dezembro e com ele a tradição de visitar bombeiros directores, comandantes, sócios e benfeitores falecidos, sepultados nos cemitérios da Régua e de Godim; de assistir à missa na Igreja Matriz; de percorrer em formatura as principais ruas da cidade; de apresentar cumprimentos à Câmara Municipal.

Antes do almoço tradicional, sempre animado, houve imposição de medalhas, cerimónias de tocante significado, em que os silêncios e os aplausos sublinham os méritos distinguidos.

A Direcção e o Comando mantiveram também a tradição de convidar autoridades, afinidades e simpatias mais evidentes, o que sempre corresponde a uma boa apresentação de toda a Régua. E, assim, nos aniversários a cidade fica ainda mais perto dos seus bombeiros. 
Quem já fez uma dezena de anos, ao assistir a estas festas centradas nas magníficas instalações dos nossos bombeiros não pode deixar de recordar o velho e minúsculo quartel do Cimo da Régua. Velho, modesto e pequeno mas muito querido dos seus frequentadores e visitantes fortuitos, sem falar do rapazio, incapaz de passar adiante sem se deslumbrar com o pronto-socorro de cadeirinhas e com a ambulância, uma caranguejola esquinuda, de um branco muito duvidoso e um conforto ainda mais duvidoso... Os carros entravam à justa na porta estreita, sempre com grande vozearia de indicações e avisos.

O quarto do Zé Pinto, o quarteleiro, era também minúsculo e abria para o «parque automóvel». Deste se passava à sala de jogos, por dois degraus. O quartel acabava aqui, se não contarmos uma pequena cozinha lá no fundo. Cozinhava ali a senhora Antoninha, esposa do Zé Pinto, ainda hoje inconformada viúva, e ele próprio preparava os petiscos que os jogadores da noite lhe pediam.

Jogava-se um bilhar muito gozado, um dominó muito batido e umas cartas muito lambidas.

Havia, ainda, uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe, por esporádico leitor.
As formaturas só se desfaziam no quartel, à medida que iam entrando. De maneira que a porta estreita oferecia grandes dificuldades para manter o aprumo. As maiores dificuldades ainda eram as do Justino, garboso porta-bandeira de muitos anos. Garboso, mas desastrado… De rígida marcialidade, esquecia muitas vezes o globo da entrada: aquele globo de luz melancólica fendida por uma cruzinha vermelha. A rigidez do corpo e do gesto não lhe permitia baixar suficientemente a bandeira. Zás!... mais um globo. De nada valiam os avisos dos colegas mais próximos, feitos, disfarçadamente, pelo canto da boca: - Ó Justino... Ó Justino… olha o globo! Bumba!... mais um.

Até que um dia o Justino, muito infeliz, propôs que se arranjasse um globo de lata. 
Coitado do Justino. Já lá está, nem sei há quantos anos. Não pôde levar a sua querida bandeira dos Bombeiros da Régua. Ainda bem... Eu sei lá, se com o vagar da Eternidade, nos andaria a quebrar as estrelas, uma a uma.

Notas:
  1. Esta crónica foi publicada no jornal O Arrais, da edição de 6 de Dezembro de 1990.
  2. As fotografias da autoria de Baía Reis fazem parte do arquivo dos Bombeiros da Régua. E dizem respeito à tomada de posse do Senhor Dr. Camilo de Araújo Correia como Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua. 
Os Meus Bombeiros
Camilo de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 10 de Fevereiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Os meus bombeiros
Clique nas imagens acima para ampliar. Matéria enviada por J. A. Almeida para "Escritos do Douro 2011". Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". em Novembro de 2011. Actualizado em 4 de Novembro de 2013.

    Uma Chamada na Eternidade

    Camilo de Araújo Correia

    Pelo que os jornais disseram abertamente e os amigos falaram à boca pequena, a última eleição dos elementos directivos dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua teve aspectos de braço de ferro e ranger de dentes.

    Não cabe no meu comentário referir as serpentinas e garrafinhas de cheiro que das duas falanges atiraram uma à outra, traduzindo pútridos fermentos de incuráveis frustrações.

    Eu sei que eleições são eleições e falanges são falanges. O que eu não sabia era que o recurso ao “vale tudo” pudesse um dia acontecer nos garbosos e briosos bombeiros da minha terra.

    Mas aconteceu.

    Os rapazes do Corpo Activo, toldados pelo miasma político latente, pousaram a machadinha, só porque não ganhou a lista da sua simpatia!!! E não se julgue que foi gesto indigesto de momento. Noventa por cento dos bombeiros já se negou a prestar serviço.

    Esta atitude insuspeitada em mais de cem anos de História impoluta, não surpreendeu, tanto assim, o homem que hoje sou, um pouco capaz de acreditar em tudo.

    Quem se surpreendeu até à comoção foi aquele menino que anda dentro de nós e um dia recordei:

    “Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos meus primeiros raciocínios.

    Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem.

    Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas… como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? O que mais me intrigava era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer umas surras da minha mãe.

    Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo inteirinho…

    Foi numa tarde de calor e tourada. O cimo da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um figurante da corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas mãos de meu pai e de meu avô. De vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo.

    Houve até um certo pânico, quando um cavalo, de grande pluma vermelha, subiu o passeio. A certa altura, que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão!

    Os meus olhos nunca mais se despegaram daquele capacete de oiro e daquela machadinha de prata.

    Quando a inveja me deixou falar, perguntei ao meu pai:

    - Aquele menino é bombeiro?

    - Não… é a mascote!

    - É o filho do Zé Pinto. - disse-me, depois, voltado para o meu avô.

    Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber, dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os bombeiros grandes”.

    Naquele tempo os meninos vestiam a farda para serem homens. Os homens de hoje despem-na para serem nada.

    Quero fazer uma chamada na eternidade, nesta hora de passar a revista cá na terra a uma formatura de nadas:

    - Manuel Maria de Magalhães…
    - Presente!

    - José Afonso de Oliveira Soares…
    - Presente!

    - Joaquim de Sousa Pinto…
    - Presente!

    - Camilo Guedes Castelo Branco…
    - Presente!

    Sempre fiéis à sua Corporação, à sua terra, a si próprios! Mesmo no infinito.

    Nota: Esta memorável crónica encontra-se publicada no jornal “O Arrais”, de 17 de Outubro de 1990. Comenta um dos episódios da instituição, com traços de humanidade, de ternura e uma fina ironia invocando o exemplo de homens intocáveis como a referência cívica e ética. O Dr. Camilo de Araújo Correia foi um dos nossos: para além de ser director do extinto jornal “Vida por Vida”, órgão oficial da Associação foi um ilustre Presidente da Direcção (1964-65) desta Associação.

    UMA CHAMADA NA ETERNIDADE
    Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 3 de Novembro de 2011
    (Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
    Clique  na imagem acima para ampliar. Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2011. Actualizado em 4 de Novembro de 2013.

    UMA VOLTA CÁ POR DENTRO

    Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos meus primeiros raciocínios.

    Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem. Não ia longe o entusiasmo que me tinha arrancado ao que estava a fazer. Logo o meu espírito começava a intrigar -se com a rigidez daquelas fileiras, a limpeza daquelas fardas e a refulgência daqueles machados. Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas... como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? Depois, parecia-me impossível ficarem sempre como a prata as machadas, sendo a de partir a lenha em nossa casa uma vergonha de bocas e negrume, além de lhe estar sempre a sair o cabo... O que mais me intrigava ainda era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer umas surras da minha mãe.

    Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo inteirinho... 

    Foi numa tarde de calor e de tourada. O Cimo da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um figurante de corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas mãos enormes de meu pai  e de meu avô. De vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo. Houve até um certo pânico, quando um cavalo de grande pluma vermelha subiu o passeio. A certa altura que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão!
    Os meus olhos nunca mais se despegaram daquele capacete de oiro e daquela machadinha de prata... Quando a inveja me deixou falar, perguntei a meu pai:

    - Aquele menino é bombeiro?

    - Não... é a mascote!

    - É o filho do Zé Pinto – disse-me, depois, voltando para o meu avô.

    Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber, dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os bombeiros grandes.

    É bem certo que neste mundo é que elas se pagam. Deus, na sua infinita ironia, acabou por me fazer bombeiro, cerca de trinta anos depois do meu ataque de inveja. Vim a ser Presidente da Direcção por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos. Não pensaram na minha desesperada falta de tempo...Tive de abandonar com o dedo imperioso da profissão espetado nas costas.

    Tudo acabaria muito bem, se ficasse por aqui. Mas é que eu viria a ter anos depois, a sobrinha mais travessa que Deus ao mundo deitou!...

    Um dia, num chá de certa cerimónia e sem vir a propósito, saiu-se com esta:

    - O meu tio já foi bombeiro, mas teve que sair porque não apagava nada.

    Os risinhos das senhoras, mal disfarçados, atravessaram-me como alfinetes...
    De cada vez que me pregava esta partida, tentava fazê-la compreender que o meu papel de Director não era ir aos incêndios, nem apagar fosse o que fosse, por mais que as coisas ardessem à minha volta. Em vão procurei convencê-la de que os bombeiros também têm escritório com secretárias cheias de papéis...

    De cara fechada e olhos trocistas dizia sempre:

    - Sim... sim...

    Paguei bem paga a inveja que me fez o capacete e a machadinha daquele bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão, numa tarde de calor e de tourada.
    Camilo de Araújo Correia
    Nota: Esta deliciosa crónica foi publicada  na revista comemorativa do 100º Aniversário da AHBV do Peso da Régua, comemorado no dia  28 de Novembro de 1980.

    Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 14 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Actualizado em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

    quinta-feira, 15 de agosto de 2013

    Cantar até ao Céu

    Uma crónica divertida e cheia de fé do saudoso dr. Camilo de Araújo Correia:

    Naquele ano os mordomos das Festas do Socorro começaram tarde a tratar de tudo. E tudo é muito na tradição da grandiosidade a que se habituaram naturais e forasteiros. A Comissão, inteiramente nova, não se lembrou de que o dia 15 de Agosto é dia de muitas Senhoras do Céu, festejadas por muitas terras.

    Entre outras dificuldades, viram-se e desejaram-se os mordomos para arranjar fogo que chegasse para os três arraiais e para ir estoirando durante o dia. Tiveram mesmo de mandar vir algum da Espanha, mais caro e mais duvidoso.

    - Seja o que Deus quiser… Da Espanha, nem bom vento nem bom casamento! Quanto mais foguetes !- exclamou o mordomo responsável pelo fogo, ao assinar a encomenda.

    Por causa das bandas de música houve acesas discussões na sacristia. De uma vez, chegariam a vias de facto se o bom abade não tivesse interrompido uma confissão para os ir meter na ordem.

    Das bandas contactadas, apenas três se comprometiam a preencher os arraiais. Por mais dinheiro e comodidades que oferecessem, não arranjavam músicos para a tarde da procissão.

    Já desesperavam, quando o mordomo mais novo, um rapaz vesgo e cabeludo, se saiu a dizer:

    - Eu sou capaz de resolver o assunto…

    - Como?!?- perguntaram todos.

    - Numa carrinha, arranjada à maneira, metíamos uma aparelhagem de “compact disc”…

    -Isso não! Nossa Senhora do Socorro é uma Senhora de muito respeito! Não é para andar metida nessas fantochadas! opôs-se o mordomo mais velho.

    Sem outro remédio, acabaram por aceitar a sugestão do cabeludo, melhorada com a promessa de recamar de flores a carrinha transbordante de meninas vestidas de azul…

    O “compact disc” de músicas marciais que mandaram vir agradou a todos…

    - Para ser música de banda só lhe faltam as fífias!- disse um que tinha a mania das piadas.

    Mal quebrou o sol daquele dia 15 de Agosto, a procissão saiu do Largo da Igreja, a ganhar solenidade a cada passo percorrido na primeira rua. A carrinha, enfeitada de meninas e flores, cumpria o seu papel, inundando tudo em redor de música puríssima. As pessoas gostavam da vibração daqueles sons, poderosos e envolventes, mas achavam que lhe faltava qualquer coisa, como às flores de papel.

    A certa altura a carrinha enguiçou. Nem para trás, nem para diante. A procissão seguiu em grande silêncio. Um silêncio que parecia dor a toda a gente. Ir, assim, Nossa Senhora, como num enterro…

    Por um longo minuto, só se ouviu o bater de pau ferrado dos homens do andor. Depois, a multidão que seguia atrás do pálio começou a cantar. Primeiro baixinho, como um murmúrio. Mas logo a plenos pulmões e plena alma. O fervor gregário e religioso foi de tal modo contagiante que, à passagem, arrastava as vozes de quem assistia das janelas, das varandas e da beira dos passeios. Muita gente chorava de felicidade.

    Nossa Senhora parecia viva. Linda como sempre e mais feliz do que nunca.
    - Camilo de Araújo Correia, publicado  no Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1991.
    • Festas de Nossa Senhora do Socorro neste blogue.
    1960
    2012
    Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

    terça-feira, 2 de julho de 2013

    Recortes ...

    Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2013. Trabalho do Dr. Camilo de Araújo Correia cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

    quinta-feira, 28 de março de 2013

    Páscoas Passadas

    Não se compreende que se festeje tanto o Natal e tão pouco a Páscoa. Se é que a Páscoa ainda se festeja… E os festejos de Natal têm, de ano para ano, uma expressão mais consumista que religiosa. Ainda o 25 de Dezembro vem longe, já as ruas se iluminam feericamente e se animam com músicas ternurentas, repetidas até à exaustão. As lojas oferecem os seus artigos até à porta da rua e os shoppings são autênticos formigueiros de pessoas entontecidas com as compras. É preciso cumprir a tradição de oferecer aos familiares, aos amigos e a quem se deve qualquer favor ou cortesia. Acima do intenso bruaá, ouve-se constantemente o guincho de uma criança contrariada. O guincho só se extingue, quando o pai, a mãe ou o avô fazem a vontade ao tiranete. Nas casas, a opulência da árvore de natal vai fazendo cada vez mais sombra à ternura do Presépio. A consoada e o almoço do Dia de Natal são os pontos altos da reunião familiar em redor de iguarias tradicionais. À Missa do Galo já pouca gente vai. Não por falta de fé, mas por falta de missa. Raras são as terras a poder dispor de pároco, fixo ou itinerante.

    Seria mais compreensível a decadência das comemorações de Natal que as da Páscoa. O nascimento do Menino Jesus é uma grata memória, vivida em cada ano, com a maior ternura no mundo cristão. As comemorações poderiam ser limitadas ao fervoroso sublinhar de uma das mais vultuosas datas da História da Humanidade. Ao passo que a Semana Santa, a começar no Domingo de Ramos e a findar no Domingo de Páscoa, é um tempo de reflexão sobre o que Jesus Cristo foi como inexcedível exemplo de amor e sacrifício. Entre o presépio de Belém e a cruz do Gólgota, há uma curta vida de trinta e três anos marcada por um apostolado de amor ao próximo e as perseguições de quem não aceitava o alcance da palavra e da humanidade de Jesus Cristo.

    Apesar de todas estas razões para celebrar e reflectir, a Páscoa que hoje temos é, praticamente, a que nos entra pela televisão.

    Mas eu tenho na memória uma Páscoa só para mim. A que vivi alguns anos em rapaz na ridente aldeia de Poiares, diante do solene negrume da Serra do Marão.

    O Seminário Salesiano exercia ali a sua pedagogia e o seu apostolado. E era com grande rigor que os seus padres cumpriam toda a liturgia da Semana Santa.

    Recordo, como quem folheia ao acaso um velho álbum de gravuras sépia, as cores e o aroma da luminosa igreja no Domingo de Ramos, o silencioso recolhimento da Procissão do Senhor dos Passos, o misterioso temor das Trevas, o repicar dos sinos e o estralejar dos foguetes no Sábado de Aleluia, a humildade na Cerimónia do Lava Pés, o esplendor da Missa da Páscoa, com as raparigas muito tesas no seu vestidinho acabado de estrear, a passagem do Compasso, de opas a esvoaçar e o tinir da sineta sempre interrompido…

    Um ano, fui convidado, entre outros estudantes em férias, a figurar na Última Ceia. O cenáculo foi o refeitório do seminário, onde nos esperava o senhor padre Paulo, a representar Cristo com a figura de grande bondade e respeito.

    Ao saber-me designado para representar Judas Tadeu, fiquei tão nervoso e tão pálido que dei nas vistas ao nosso improvisado Jesus Cristo. Mas logo o bondoso padre me sossegou:

    - Não te aflijas… o apóstolo mau foi Judas Escariote. Judas Tadeu veio até a ser um grande santo!

    E a paz voltou ao meu espírito. Mas agora que Judas Escariote foi reabilitado, voltei a preocupar-me por ter sido Judas Tadeu. Eu sei lá o que a História me reserva!
    - Camilo de Araújo Correia,  In jornal “O Arrais”, Peso da Régua.

    CAMILO DE ARAÚJO CORREIA neste blogue.

    Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

    terça-feira, 15 de janeiro de 2013

    Rodas de Cavaqueiras

    Dir-se-ia que os novos, diversos e cómodos meios de comunicação nos aproximam cada vez mais uns dos outros. Não é verdade. Sob o ponto de vista da relação humana o próximo está cada vez mais distante. A própria carta, onde reflectidamente se trocavam pensamentos e sentimentos está em vias de extinção.

    O meio de comunicação que mais se afirmou em todo o mundo foi o telemóvel. A princípio, de tão raro, as pessoas serviram-se dele com um certo recato e solenidade. Afastavam-se de quem estivesse perto e procuravam um canto onde pudessem satisfazer a necessidade de atender ou fazer uma chamada. Mas não tardou a que o telemóvel se propagasse como uma doença altamente contagiosa. Vê-se hoje nas mãos de toda a gente como se fosse um osso de pôr e tirar do esqueleto. E não se julgue que é só nas mãos dos adultos, em plena actividade, que o telemóvel está sempre a ser levado ao ouvido. Também os pegulhos da instrução primária como ele se entretêm como dantes se entretinham com o pião.

    Acontece muitas vezes estar num café a ler, quando chega à mesa do lado uma revoada de rapazes e raparigas. Apuro logo o ouvido, interessado em saber como andam as conversas da juventude. Não há conversa. Há apenas uma troca de monossílabos, frases sincopadas e muitas interjeições do calão mais corrente. Não tarda cada um a puxar do cigarro e do telemóvel. E, então, eles e elas passam largos minutos numa troca de risinhos e banalidades com gente das suas relações. Nunca me apercebo de uma conversa urgente ou apenas necessária.

    E, assim, o telemóvel, de inegável utilidade e cada vez mais evoluído, muito contribui para manter o próximo à distância de um premir de teclado.

    As pessoas não se procuram, por mais perto que vivam umas das outras. Telefonam-se, por tudo e por nada. Mais por nada do que por tudo.

    Nunca mais se viram dois homens a esquina, a conversar, a rir e gesticular. Há muito se desfizeram as rodas de cavaqueira. E havia-as bem características, em qualquer aldeia, vila ou cidade.

    Recordo com nostalgia as rodas de cavaqueira da minha juventude. Em Poiares da Régua, a mais animada era a que se organizava ao fim da tarde na mercearia Santos e Campos. Peroravam as figuras da terra, ouvidas por cavadores, no seu regresso das vinhas. Deixado o silêncio e ramerrão do trabalho, ficavam presos às palavras e aos gestos daqueles senhores engravatados. Pareciam esquecidos do que vinham comprar. Recordados hoje, parecem-me figuras de Goya pintadas numa tela esfumada pelo tempo.

    Na Régua havia três rodas de cavaqueira, todas no Cimo da Régua, a poucos metros umas das outras. A dos Bombeiros, dada a discussões desportivistas. A da Loja do Zé Pinto, onde os mais diversos assuntos eram tratados com ironia, troça ou sarcasmo. A da Farmácia Lemos, com tendência para a política. Os frequentadores, sempre os mesmos, conversavam à boca pequena e olhar de través, não fosse o Salazar aparecer por ali…

    Tempos… Tempos…
    - Camilo de Araújo Correia
    - Sobre Camilo de Araújo Correia neste blogue.

    Clique  na imagem para ampliar. Texto e imagem original cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 9 de Janeiro de 2013. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

    terça-feira, 4 de dezembro de 2012

    Camilo de Araújo Correia - O NATAL BRASILEIRO


    Em quarenta anos de Brasil, João Patrício nunca tivera possibilidades de vir a Portugal. A príncipio, por falta de dinheiro, depois, por falta de ocasião. Na verdade, os primeiros quinze anos tinham sido duros como caixeiro apagado ao fundo de um grande estabelecimento de secos e molhados.

    Por morte dos donos, em desastre de viação, viu-se repentinamente guindado a gerente daquela grande nau comercial. Os filhos dos patrões, uns médicos, outros engenheiros, avessos ao comércio, cedo lhe venderam a firma, nas melhores condições, por muito acreditarem na sua competência e experiência.

    Bem se saíu João Patrício do pesado encargo. Ao fim de quarenta anos, tudo era seu, desde o barril do vinagre à tabuleta do neon. Não ficou por aí. Os tempos de prosperidade pareciam querer vingá-lo dos tempos de mesquinhez. Em cada ano abria um novo estabelecimento. Acabou por ter uma cadeia de supermercados, respeitável nos bancos onde o seu dinheiro se multiplicava e que eram quase todos os do seu Estado.

    Apesar de rico e feliz com sua numerosa família, nunca outra coisa sonhou João Patício que não fosse vir a Portugal, à sua aldeia nas faldas da Serra do Milhafre. Os ruídos, as luzes, os hábitos da grande cidade jamais lhe perturbaram a visão exacta da sua terra. Como que repousava o pensamento naquelas casinhas humildes de pedra nua em redor da única vaidade - a igreja branca e majestosa de Nossa Senhora das Aves. Quantas vezes adormeceu, cansado do balcão, a imaginar-se de opa vermelha rutilante, ao sol de um domingo de Páscoa, na companhia do senhor abade? Nem ele sabia...

    Naquele ano, João Patrício pôde vir a Portugal. Aí por alturas de Março começou a pensar nisso sem nunca esmorecer por mais contrariadades que a vida lhe trouxesse.

    Como a chegada calhasse em pleno Dezembro, concebeu um sonho maravilhoso e tratou de lhe dar realidade. Comprou lembranças que chegassem para toda a gente, um manto novo para Nossa
    Senhora das Aves e mil e um enfeites para engalanar a aldeia no dia de Natal. Duas bandas de música seriam rogadas na devida altura.

    Porém, uma grande tristeza o invadiu quando, ainda de longe, avistou a sua terra. Pareceu-lhe uma grande tela de pintor louco perdida na montanha. As casas iam do rôxo ao verde salsa sem passar pelo branco. A própria igreja perdera majestade apesar de continuar branca e digna no meio daqueles estilhaços de arco-íris.

    Entrou na aldeia cabisbaixo. De longe em longe levantava os olhos à procura dos alpendres onde deixara velhinhas a fiar. Nem um. Tinham sido substituídos por varandas de cimento armado, compridas e ventrudas. Por toda a parte onde houvesse um palmo quadrado de superfície lisa cartazes pôdres e ameaças de morte, escritas a pincel nervoso.

    Sem família a quem se dirigir, procurou o abade. Encontrou um velho desiludido numa casa desiludida. Rápidamente lhe descreveu a sua vida e lhe contou a sua intenção de oferecer à sua terra um Natal farto e alegre.

    - Sabe, reitor, a gente lá morre de saudades. Só pensa mesmo na sua terra...

    - Muito me custa desiludi-lo, senhor João Patrício... mas, esta gente não compreenderia a sua boa fé e as suas saudades. O senhor já não é, sequer, um brasileiro a querer botar figura na sua terra. Passaria por um ricaço a julgar toda a gente pobrezinha. Duvido mesmo que arranjasse quem lhe deitasse os foguetes...

    - Não diga mais, reitor. Compreendi e muito lhe agradeço ter-me salvo da última desilusão. Hoje mesmo regresso a Lisboa.

    - Isso é que não vai! Desde já o convido para passar o Natal comigo. Anda por aí uma velhota, meia tonta, mas com grande dedo para a cozinha. Quem vai dar as ordens é o senhor. Tenho um vinho de estalo e a conversa nunca falta. O senhor o que precisa é de conversa e de um vinho desta terra que cá o chamou.

    - Nunca aceitei um convite com lágrimas nos olhos, reitor. Não repare nelas, mas acredite nelas, reitor.

    Naquela noite de consoada os dois velhos, depois de muito conversarem, ficaram a dormir no preguiceiro.

    A fogueira com os seus cinzéis de luz foi esculpindo na pedra da noite um baixo relevo para o museu da Eternidade.

    - Por Camilo de Araújo Correia (Atualização daqui)
    Título: Histórias do Fim do Ano
    Autoria: Camilo de Araújo Correia
    Ediçao: Brasília Editora - Porto
    Primeira edição: Dezembro 2001
    Execução gráfica: Martins & Irmão - Porto

    Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Também publicado neste blogue em 19 de Junho de 2008. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

    quinta-feira, 15 de novembro de 2012

    Crónica - o Douro de anteontem

    O nosso rio era caudaloso no Inverno e sereno do findar da Primavera ao findar do Outono. Sempre alegre e corredio, o Douro era um potro à solta entre as margens. Vieram depois as barragens meter-lhe o freio e o bridão. Fizeram dele um amestrado e pachorrento cavalo de circo.

    Muito lucramos com esta sucessão de enormes espelhos de água, permitindo um desporto e um turismo impensáveis no lombo de um potro irrequieto. Mas também muito perdemos...

    O estrujão, o sável e a lampreia, de tanto marrarem contra o cimento das barragens, acabaram por desistir de procurar para a desova os rios ainda abertos às suas imperiosas condições de procriação.

    Entre nós conhecido por solho, o estrujão foi-se extinguindo. Dele ficou apenas um dito, de que muita gente já não saberá a origem. Dormir como um solho quer dizer dormir profunda e serenamente. A imagem vem do tempo em que esses grandes peixes do nosso rio se deixavam levar pela corrente, muito quietos, como se dormissem à flor da água.

    As lampreias também deixaram de se vender pelas ruas da Régua, oferecidas em regadores, ainda vivas, num desespero de pouca água e pouco espaço. Meu pai, médico de muitas caridades, recebia em abundância os mimos de cada época do ano. As lampreias eram, por vezes, tantas que era preciso largá-las no tanque do quintal, para lhes dar vazão. Agarrá-las era depois um alvoroço de gritinhos e fugas precipitadas.

    O sável era ainda mais abundante que a lampreia. Por toda a Régua passavam homens e mulheres a apregoá-lo com dois ou três enfiados num vime. O saboroso peixe chegava a todas as casas, à boca do rico e do pobre, frito ou de escabeche.
    O Dr. Júlio Vilela falava, a lamber o beiço, de um sável na telha arranjado pelos homens do rio. E descrevia:

    - O sável, bem temperado com azeite, alho, pimenta e loureiro, entala-se entre duas telhas. Depois, é só ir virando sobre uma fogueirinha de lenha. Além de ficar delicioso, a espinha desembainha-se como uma espada.

    O Dr. Júlio e os seus petiscos...

    Um ano, o sável foi tão abundante que chegou a exaltar o homem mais sereno da Régua - José Afonso de Oliveira Soares.
    Pintor e poeta de grande mérito, veio a merecer um busto no jardinzinho bem perto da casa onde morou.

    Diz, assim, o pedestal:

    Talento e bondade
    Flor de simpatia
    Que nos merecia
    Esta saudade.

    Também mereceu da Câmara Municipal uma segunda edição da sua História da Vila e Concelho do Peso da Régua.

    Pois, um dia, o nosso sereníssimo Afonso Soares, cheio de sável até ao simpático bigode, largou de casa a esbracejar, ao ver que a esposa se preparava para lhe servir ao almoço, mais uma vez, umas postas de sável frito.

    Foi do Cruzeiro para os lados da estação a remoer vinganças num grande nuvem de tabaco. Entrou na Pensão Borges e foi sentar-se à mesa mais recolhida. Logo se aproximou, todo mesureiro, o Adelino Gomes.

    - Que temos para o almoço, Adelino?

    - Para o senhor Soares arranjam-se umas postinhas de sável...

    Ao virar do segundo para o terceiro milénio o Douro de anteontem acordou estremunhado do sono telúrico. Tomou o freio nos dentes, soltou-se da corrente e largou à desfilada pelas margens, galgando-as até onde lhe chegou o fôlego. Por quatro vezes, casas e vinhedos lhe sofreram a fúria. A Princesa do Douro ficou irreconhecível por uns dias. Mas, ao sol de Março pôde mirar-se ao espelho do seu rio, outra vez vaidosa e conformada.

    - Camilo de Araújo Correia, Villa Regula de Março de 2001
    Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens da atualização cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

    sexta-feira, 2 de novembro de 2012

    Outro rio, outros barcos

    O rio Douro fez parte da minha instrução primária, como a geografia e aritmética. A escola ficava na Rua das Vareiras, ali a dois passos. Não tínhamos recreio coberto, nem descoberto. Nos intervalos pequenos corríamos em grande algazarra para a Meia Laranja, varandim sobranceiro ao rio. Nós maiores descíamos a rampa até ao cais. Ali, ao mesmo tempo que brincávamos, esquecidos da palmatória do Senhor Morais, íamos assistindo ao tráfego do rio.

    Chegavam carros de bois, em grande chiadeira, com a sua pipa de vinho fino debaixo de um molho de canas de milho. Pelo cansaço dos bois e as pragas dos carreiros se adivinhava o Inferno dos caminhos. Outros partiam, aliviados da pipa, de moço à frente a dizer iete… iete… e carreiro atrás, de mãos nas chedas, para não cair. Aquele copinho a mais… uma ou outra camioneta aparecia já, a destoar com as suas estridências no costumado arruido do cais.

    Os barcos rabelos, em linha ou lado a lado, conforme o espaço acostável disponível, esperavam as pipas, balouçando-se pesadamente ao som do chap, chap das ondas miudinhas que vinham morrer entre eles.

    Os mareantes eram homens silenciosos. Andavam por ali a preguiçar ou a fazer comida em pequenos potes de ferro. Mas, começando o embarque das pipas alinhadas no cais, desatavam a praguejar e a dar ordens que só eles entendiam. Causava uma certa ansiedade ver aqueles homens descalços e de calças arregaçadas até ao meio das pernas, muito lépidos, a rebolar sobre duas pranchas frágeis, acima das águas do rio, as pipas que o barco ia engolindo. Mais uma… mais uma… Os homens subiam as pranchas com esforço e lentidão e desciam-nas rápidos como lavandiscas. Do alto da apegada o arrais dava indicações no arrumo da preciosa carga.

    Para nós, a partida dos barcos rio abaixo, não tinha grande encanto. A chegada sim. Por mais distraídos que andássemos, havia sempre um que os descobria, mal despontavam as velas na curva do Salgueiral.

    - Lá vem um!...

    - São dois!...

    - Olha aquele… que grande!

    Os rabelos chegavam em frente da Régua como imponentes majestades de um reino fabuloso. A vela caía como um suspiro de gigante cansado.

    Aqueles homens encardidos pelo sol e pelo vento atracavam o barco em pouco minutos. Ainda hoje me impressiona a sua destreza.

    Pressentindo instintivamente o fim do intervalo, partíamos como revoada de pardais. Chegávamos aos bancos da escola muito suados, de coração a bater e olhos cheios de rio. De um rio que não é este, de barcos de ferros, ventrudos como dinossauros.

    - Camilo de Araújo Correia
    In revista Tribuna do Douro, Maio de 2005.

    Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida e editado para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

    sexta-feira, 21 de setembro de 2012

    Vindimas da Minha Saudade

    Chegam-me de muito rapazinho as primeiras recordações do tempo das vindimas.

    Ainda vinham longe, aparecia por casa do meu avô de Canelas um homem rogado para remendar  toda a cestaria rebentada da última vindima. Trabalhava debaixo de um alpendre, montado num banco comprido que tinha um artefacto de ferro como que o cesteiro, com os pés, largava e prendia a tira de madeira de castanho que ia desvastando com uma faca arqueada de dois cabos. Preparadas as ripas, o cesteiro cerzia cestas e cestos vindimos com uma arte que me encantava.

    Também me prendiam ao alpendre as histórias rústicas daquele homem da serra que descia ao Douro como um prenúncio de vindimas.

    Mais perto da azáfama das vindimas, lavavam-se os lagares, preparavam-se as pipas e os tonéis. Também se varria com grandes vassouras de giesta todo aquele chão à espera de uvas.

    Na véspera  de começar o corte aparecia o Tio João Lucas a combinar com o meu avô as mudanças da dorna. Naquele tempo, as dornas serviam para trazer ao lagar as uvas das vinhas mais distantes. A multidão de figuras que conheci por toda a parte, a vida inteira, não apagou o mínimo traço da do Tio João Lucas, muito feliz com seus lindos bois e a dorna babada de mosto.

    O Viando era uma propriedade tão distante que a família se instalava lá, do princípio do corte  ao fim da encuba. A casa de xisto, enegrecido pelo tempo, era de uma rusticidade tal que ainda hoje a sua recordação me alivia do tédio que nos dá tanta comodidade e modernismo. Era rústica a casa, rústicos os móveis, simples a comida e primitivo o silêncio imaculado das noites.

    Em todas as serras durienses, havia nas vindimas um frémito de festa, mal disfarçado por tantos cuidados e suores.

    Na grande cozinha dos lavradores as mulheres passavam o dia afogueadas em redor da lareira, onde os potes de muitas tigelas seguravam em três pés uma espécie de negra e  rotunda importância.Com os pais ocupados na vindima,  as crianças brincavam nos quinteiros com redobrada algazarra.

    Os lavradores andavam pelas vinhas a trocar impressões com os caseiros. Falavam do desavinho que houve, da chuva que veio em má altura, dos ataques de míldio e do oídio, daquele sol que andava a chupar as uvas até à grainha…

    Para o lavrador duriense, do rasgar da terra para o plantio, à chegada das uvas ao lagar, o granjeio é um rosário de tragédias.  Mesmo nos melhores anos, com o vasilhame cheio até ao batoque, há sempre quem diga desconfiado:

    - Isto ainda minga muito…

    Entre piadas maliciosas e cantigas repetidas em cada vindima,  as mulheres iam cortando as uvas e berrando pelo rapaz dos cestas, de cada vez que alguma se enchia. E os rapazes, mais ladinos ou mais ronceiros, as iam despejando, sempre que possível, ao longo de um muro, à feição das costas que os haviam de levar ao lagar. E aquela fila de homens possantes, de orgulho nos olhos, subia e descia todas as encostas, ao ritmo de um assobio ou das interjeições dos mais afoitos. De sol a sol, entre a vinha e o lagar, vezes sem conta... 

    Quando a sede apertava, ouvia-se um coro  de ressonância primitiva que parecia ecoar pelo Douro inteiro:

    - Beba-se… beba-se… beba-se… beeebaaa-se!!!

    E o púcaro de alumínio passava de mão em mão, de sede em sede.

    Nas noites de pousa, as mulheres cantavam e dançavam no terreiro   ao som do harmónio e dos ferrinhos que vinha do lagar. Aí, depois do corte, ao ritmo de esquerdo… direito… esquerdo… direito… os homens desabraçavam-se e acabavam a pousa com troças e jogos de sabor antigo.

    Se as noites iam frias, o feitor alargava-se, às vezes, na distribuição da bagaceira. E os homens de vinho mau à saída do lagar, a remoer um remoque mais azedo, cruzavam olhares torvos que, às vezes, prolongavam até à ponta das navalhas.

    As uvas que dantes eram vindimadas por mãos que as levavam aos lábios num sorriso de apetite, acolhidas por uma cestaria que vinha do tempo de Noé e morriam no sacrifício dos lagares, andam hoje de plástico em plástico, de contentor em contentor, até desaparecerem nas fauces de uma adega, sem tempo para se despedir de alguém que as amou e do Outono que as amadureceu… 

    - Camilo de Araújo Correia 
    -  In revista “Villa Regula“, nº3, Setembro de 1999

    Camilo de Araújo Correia no ForEver PEMBA
    Camilo de Araújo Correia no Escritos do Douro
    Clique nas imagens para ampliar. Texto sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 26 de Setembro de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue sómente com a citação da origem/autores/créditos.

    sábado, 30 de junho de 2012

    Em conversa com Nogueira Borges...

    "... palavras sobre o homem amigo e o escritor nascido em S. João de Lobrigos, terra simples e de vinhos, para que sua grandeza humanista continue a brilhar no Douro. Uma vez me disse com um espanto infantil: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!...

    Hoje, ao anoitecer, fiz estas fotos a ele dedicadas, enquadradas no Céu do Douro lembrando-me que só pode está lá em cima a dizer-me: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!"
    - Jasa, Peso da Régua, 29 de Junho de 2012
    A MINHA CIDADE
    A minha cidade
    Tem o visco da saudade
    E o nevoeiro do futuro.
    A minha cidade
    Tem a tristeza do escuro,
    Mas, sobretudo,
    O brilho da verdade.
    - M. Nogueira Borges in "O Lagar da Memória" -

    O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.
    - Vergílio Ferreira

    Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo contém colaboração de José Alfredo Almeida e pertence ao blogue Escritos do DouroÉ proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.