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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Um dia, nome de rua

Clique na imagam para ampliar- "A fotografia regista no Salão Nobre do Quartel Delfim Ferreira o acontecimento: no dia 28 de Novembro de 1999, durante as cerimônias do 119º aniversário da Associação, a Liga dos Bombeiros Portugueses reconhecia o exemplo de vida do Comandante Cardoso com a última condecoração que lhe faltava receber, o Crachá de Ouro."

Camilo de Araújo Correia

A notícia da atribuição do Crachá de Ouro ao comandante Carlos Cardoso dos Santos, por parte do Conselho Executivo da Liga dos Bombeiros Portugueses, não me surpreendeu. Teve sim, o condão de me comover, ao ponto de cerrar os olhos por uns instantes. Instantes que chegaram para recordar 45 anos de amistosa relação com o senhor Carlos Cardoso Santos.

Há 45 anos era eu um jovem médico e ele um jovem funcionário do Hospital da Régua, ainda instalado no velho Solar dos Lemos e ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia. Não precisei de muito tempo para dar conta de que o Senhor Cardoso, assim conhecido por toda a gente, era a encruzilhada de tudo o que acontecia no Hospital. Mesários, médicos, irmãs de caridade, doentes e pessoal de serventia, acabavam por ter de falar com o senhor Cardoso, por isto ou por aquilo… Isto ou aquilo, podia ser arranjar um remédio com urgência, redigir ofícios, prestar contas, dar uma explicação sobre os mais variados assuntos, resolver um diferendo, ler uma carta a um analfabeto, mudar uma lâmpada, ou tratar dos fusíveis…

Mas não e julgue que o inegável préstimo do senhor Cardoso lhe serviu para se engrandecer aos olhos de alguém. Tudo fazia natural e discretamente, como se receasse poder vir a receber qualquer das mais diversas expressões de gratidão. Ainda sem farda, tinha já alma de voluntário e no peito espaço para as medalhas que aí vinham. E vieram.

Tempos aqueles de vidas tão modestas que ainda hoje me aquece o bolso o primeiro ordenado. Foram trezentos escudos que o senhor Cardoso, como funcionário da secretaria, passou das mãos pobres da Misericórdia para as minhas, ainda a conhecer muito mal a cor do dinheiro.

Quando o Hospital de D. Luiz I se mudou para modernas e amplas instalações, julguei que o senhor Cardoso se iria reduzir às suas funções mais específicas. Muito me enganei. De uma vez, desabafou, assim, comigo o grande Provedor que foi Joaquim Augusto da Trindade Rodrigues:

- Não sei o que seria desta casa sem Cardoso…só é pena não ter mais um bocadinho de assento…

- Mas, senhor Trindade, que assenta pode ter uma pessoa sempre metida num enxame de exigências?

- Pois é… pois é… - concordou o senhor Trindade.

Não admira que o senhor Carlos Cardoso dos Santos, com tanta e tão aturada experiência de Misericórdia, viesse a ser um grande Provedor. Rodeado de um grupo de mesários, tão diligentes como devotados, deixou obra feita, nela avultando os modernos e carinhosos lares das nossas crianças e dos nossos velhos mais desprotegidos.

Não conheci tão de perto o mérito do senhor Carlos Cardoso dos Santos, como devotado Comandante dos Voluntários da Régua. Mas como reguense, atento e orgulhoso dos seus Bombeiros, posso testemunhar que nunca a nossa Corporação conheceu tão áureo período de eficiência, disciplina, diplomacia e expressão humanitária.


A Liga dos Bombeiros Portugueses deixa na honrosa farda do senhor Carlos Cardoso dos Santos um crachá de ouro. Cada reguense, ao abraçá-lo, lhe deixa no peito um crachá de fraternidade e gratidão.


Nota: Publicada no Jornal de Matosinhos, na edição de 17 de Março de 2000, esta magnífica crónica, além de ser um tributo à uma velha relação de amizade, é fiel  testemunho de quem melhor  conheceu as qualidades humanas  e os talentos do homem que, durante 31 anos da sua vida, serviu “com eficiência, disciplina e expressão humanitária”, a Corporação de Bombeiros e a comunidade reguense. A fotografia regista no Salão Nobre do Quartel Delfim Ferreira o acontecimento: no dia 28 de Novembro de 1999, durante as cerimônias do 119º aniversário da Associação, a Liga dos Bombeiros Portugueses reconhecia o exemplo de vida do Comandante Cardoso com a última condecoração que lhe faltava receber, o Crachá de Ouro.

Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de JASA (Dr. José Alfredo Almeida) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em  Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

sábado, 24 de setembro de 2011

Meu Douro, meu país…


Camilo de Araújo Correia

Terra brava, convulsiva
Rio de paz e luta
perto e longe os horizontes…

Andou um Deus por aqui
A medir forças
Com o próprio chão.

Madrugadas de cristal
Dias fulvos, irisados
Noites negras de mistério…

Andou um Deus por aqui
A estudar a luz
Com o próprio  sol.

Invernos de purgatório
Primaveras de aguarela
E Outonos de Van Gogh…

Andou um Deus por aqui
A trocar as cores
Com o arco-íris.

Imagem de autoria de Miguel Guedes. Imagem e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão. Camilo de Araújo Correia (Dr.) no Google. Camilo de Araújo Correia (Dr.) neste blogue. Clique na imagem acima para ampliar. J. Luis Gabão no GOOGLE BUZZ

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Elogio da Palmatória

Camilo de Araújo Correia

A minha escola primária era na Rua das Vareiras, num prédio que veio a ser quartel da Guarda Republicana e hoje se encontra em franca degradação.

As salas tinham pouca luz, os corredores e as escadas eram escuras de meter medo aos menos afoitos. O recreio era na rua até à Meia Laranja sobranceira ao rio. Ainda hoje a algazarra que fazíamos, quando nos soltavam do velho casarão. Se o intervalo era maior, descíamos a rampa até ao cais, onde a faina do rio nos enchia de curiosidade. Chegavam carros de bois e camionetas com as pipas de vinho fino que os rabelos haviam de levar até ao Porto. Havia barqueiros a cozinhar e barqueiros a correr como levandiscas, no embarque e arrumo das pipas. Na veemência das ordens, cruzavam-se no ar tremendos palavrões. Aprendi-os antes da tabuada.

Guardo memória de quatro professores, arrumados dois a dois. De um lado, a D. Silvina, franzina, bonitinha e bondosa e o senhor Viseu, alto, magro e distraidíssimo. Também por ele não vinha mal ao mundo. Do outro, faziam parte o senhor Maduro Roxo e o Senhor Morais, pouco dado ao sorriso e muito ligeiro no uso da palmatória.

Fui aluno algum tempo da D. Silvina. Mudei depois para o senhor Morais. Foi uma mudança do céu para o inferno… D. Silvina raramente usava a palmatória e, quando lhe pegava, parecia sofrer mais que o aluno. Santa senhora!

Já o senhor Morais pegava na vara e na palmatória por dá cá aquela palha. Pois sim, mas saímos das suas mãos, prolongadas na vara e na palmatória, a saber tudo o que, naquele tempo, se exigia no exame da 4ª classe. Caligrafia, ortografia, aritmética, gramática, redacção, história, geografia, tudo na ponta da língua. Não que… a cada erro ou ignorância, correspondia uma palmatoada que tanto podia ser dada pelo professor como pelo companheiro que nos tivesse emendado.

Apesar de tão férrea disciplina nenhum aluno andava aterrorizado. Todos gostávamos muito do senhor Morais. Ele era tão bom professor que os castigos se aceitavam como naturais. Muitas vezes o íamos esperar pelo caminho da beira do rio, até à sua casinha onde morava no Olival Basto. A casinha lá está a lembrá-lo como se não tivesse passado tempo algum. Às vezes a lição começava no caminho. A lição e os cascudos…

Hoje, a palmatória, a vara e os cascudos estão proibidos por lei. Ai do professor que dê o mais leve tabefe no aluno mais indisciplinado e cabulão. Os pais aparecem logo na escola a protestar e a participar. Não há nada que salve o professor que apenas quis educar e ensinar por um método que vem do princípio do mundo a dar resultado.

Nota: Esta crónica foi publicada inicialmente no boletim “Alto Douro Cultural” e mais tarde no  jornal “O Arrais”. O prédio citado "em degradação" pelo saudoso Dr. Camilo, está atualmente recuperado, como se nota na fotografia recente e acima de Miguel Guedes.

- Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida, Miguel Guedes e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique na imagem acima para ampliar.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O meu brinde

Por Camilo de Araújo Correia

Estivesse onde estivesse, a fazer fosse o que fosse, eu viria a esta homenagem ao senhor Carlos Cardoso dos Santos, pelos seus 31 anos de brilhante e abnegado comando dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

E viria, vencendo distâncias e afazeres, porque não sou apenas um reguense devoto dos seus bombeiros e grato a quem, ao longo de tantos anos os disciplinou e dirigiu nos difíceis caminhos da protecção e salvação do próximo. E nós sabemos que essa dificuldade pode ir do sacrifício familiar ao sacrifício da própria vida. Viria porque sou também um velho amigo e um inabalável admirador do forte temperamento altruísta do senhor Carlos Cardoso dos Santos.

Se admitirmos que uma pessoa volta a nascer, quando começa a trabalhar, exercendo a profissão que escolheu, pode-se dizer que sou natural do Hospital de D. Luiz I e, amigo do senhor Carlos Cardoso, dos Santos desde que nasci...

Quando, há, cerca de 35 anos, fui trabalhar para o nosso Hospital já o encontrei funcionário da secretaria. Julgava eu. Mas cedo pude constatar que era funcionário do hospital todo. Parecia que tudo passava pelas suas mãos, desde a feitura dos ofícios à mudança das lâmpadas fundidas. E foram essas mãos, cansadas de todos os pequenos lemes do hospital, mas cheias de energia para todos os préstimos, que me 'entregaram o primeiro ordenado da minha carreira - trezentos escudos. 
Não é fácil esquecer esse ordenado. Ele foi também uma espécie de chave do inferno… Um inferno cheio de humanidade e simpatia, mas onde o trabalho era um diabo que parecia apostado em quebrar todos os relógios e rasgar todos os calendários. E foi nesse simpático e querido inferno, que é o Hospital de D. Luiz I, que eu e o senhor Carlos Cardoso dos Santos fomos envelhecendo sem nos queixarmos de nada e, muito menos, um do outro.

Os hospitais eram, por essa altura, e foram-no ainda por muito tempo, verdadeiras escolas de altruísmo, amadorismo e convívio fraterno.

E foi com todo esse altruísmo, amadorismo e capacidade de relação, largamente, exercidos no Hospital de D. Luiz I, que o senhor Carlos Cardoso dos Santos apareceu nos Bombeiros Voluntários da Régua. Não admira, pois, que os 31 anos do seu comando tenham sido de inegável eficiência e brilhantismo. E é por isso que aqui estamos com o ruído dos nossos aplausos e o silêncio da nossa gratidão.

O calor do meu brinde não ficaria completamente explicado se não lhes dissesse que passei pela Direcção dos Bombeiros da Régua, ao que julgo, por influência ou, pelo menos, franca concordância do senhor Carlos Cardoso dos Santos. Mal chegado de uma penosa mobilização em Moçambique, pode dizer-se que foi uma partidinha dos meus amigos. Uma simpática e honrosa partidinha, devo confessar. 
Peço licença para que o meu brinde seja extensivo à esposa do senhor Carlos Cardoso dos Santos e às esposas de todos os bombeiros. No peito de todas a sirene só deixa de tocar, quando o marido regressa a casa molhado, cansado... mas feliz.

Notas:
  1. Esta crónica foi publicada no jornal O Arrais, na edição de 13 de Março de 1990. 
  2. As fotografias de Baía Reis documentam momentos da posse, em 3 de Outubro de 1959, do Comandante Carlos Cardoso dos Santos.
  3. Uma cópia do convite que foi enviado aos amigos do Comandante Carlos Cardoso dos Santos para a homenagem pelo brilhante e abnegado desempenho de 31 anos de serviço nos Bombeiros da Régua, que se realizou, no dia 3 de Março de 1990, no Quartel Delfim Ferreira, onde o Dr. Camilo de Araújo Correia, como “devoto”  dos bombeiros da Régua,  esteve presente e leu este seu brilhante  “brinde”… de  generosidade ao seu grande amigo.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Março de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.
O meu brinde por Camilo de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 3 de Março de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
O meu brinde - Camilo de Araújo Correia

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

UMA VOLTA CÁ POR DENTRO


Por Camilo de Araújo Correia

Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos seus primeiros raciocínios.

Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem. Não ia longe o entusiasmo que me tinha arrancado ao que estava a fazer. Logo o meu espírito começava a intrigar -se com a rigidez daquelas fileiras, a limpeza daquelas fardas e a refulgência daqueles machados. Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas... como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? Depois, parecia-me impossível ficarem sempre como a prata as machadas, sendo a de partir a lenha em nossa casa uma vergonha de bocas e negrume, além de lhe estar sempre a sair o cabo... O que mais me intrigava ainda era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer urnas surras da minha mãe.

Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo inteirinho...

Foi numa tarde de calor e de tourada. O Cimo da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um figurante de corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas mãos enormes de meu pai e de meu avô. De vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo. Houve até um certo pânico, quando um cavalo de grande pluma vermelha subiu o passeio. A certa altura que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão!

Os meus olhos nunca mais se despegaram daquele capacete de oiro e da-quela machadinha de prata... Quando a inveja me deixou falar, perguntei a meu pai:

- Aquele menino é bombeiro?

- Não... é a mascote!

- É o filho do Zé Pinto – disse, depois, voltando para o meu avô.

Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber, dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os bombeiros grandes.

É bem certo que neste mundo é que elas se pagam. Deus, na sua infinita ironia, acabou por me fazer bombeiro, cerca de trinta anos depois do meu ataque de inveja.

Vim a ser Presidente da Direcção por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos. Não pensaram na minha desesperada falta de tempo...

Tive de abandonar com o dedo imperioso da profissão espetado nas costas. Tudo acabaria muito bem, se ficasse por aqui. Mas é que eu viria a ter anos depois, a sobrinha mais travessa que Deus ao Mundo deitou!...

Um dia, num chá de certa cerimónia e sem vir a propósito, saiu-se com esta:

- O meu tio já foi bombeiro, mas teve que sair porque não apagava nada. Os risinhos das senhoras, mal disfarçados, atravessaram-me como alfinetes...

De cada vez que me pregava esta partida, tentava fazê-la compreender que o meu papel de Director não era ir aos incêndios, nem apagar fosse o que fosse, por mais que as coisas ardessem à minha volta.

Em vão procurei convencê-la de que os bombeiros também têm escritório com secretárias cheias de papéis...

De cara fechada e olhos trocistas dizia sempre:

- Sim... Sim...

Paguei bem paga a inveja que me fez o capacete e a machadinha daquele bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão, numa tarde de calor e de tourada.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Janeiro de 2011. Clique na imagem acima para ampliar. Imagem da "posse do Dr. Camilo de Araújo Correia" pertence aos arquivos dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Rio velho, rio novo

por Camilo de Araújo Correia

Teria os meus quinze anos, quando fui da Régua ao Porto de barco rabelo, metido num grupo de familiares e amigos, em passeio sonhado por meu pai, sabe Deus há quantos anos...

Era verão e manhãzinha, quando partimos do cais da Régua por entre rabelos ancorados que me pareceram elefantes a chapinhar. O nosso barco era pequeno e logo nos deu a sensação de grande fragilidade, ao ser apanhado no meio do rio pela forçada corrente. O arrais chamava-se Passarada. Era um homem pequeno e magro, cor de castanho gretado, de idade indefinida como a da camisa aberta até ao atilho das calças, arregaçadas um palmo acima dos pés descalços. Recordo a importância que lhe dei, ao vê-lo passarinhar à popa, de mãos firmes na espadela e olhar atento no rio, até ganhar a linha de água que mais convinha à sua navegação.

Não tirámos os olhos da Régua, enquanto a pudemos ver. E quem os poderia tirar daquela terra linda, aconchegada a um chão de vinhedos sem fim, diante de um rio ainda sem bridão? Ninguém adivinhava nas entranhas da sua beleza a convulsão que viria a manifestar-se nos esgares de cimento que igualam todas as fealdades urbanas.
Foi uma viagem de encantos e de medos. Encantos e medos que da estrada ou do comboio ninguém podia suspeitar.

Até Entre-os-Rios, onde pernoitámos, a viagem decorreu ao ritmo do coração invisível de um gigante adormecido. O rio ora se estreitava entre despenhadeiros que quase se tocavam, ora se alargava em águas tão mansas que pareciam resolvidas a não continuar a correria. A sístole e a diástole em pleno peito de urna região forte, bela e poderosa.

Nos rápidos, que na linguagem ribeirinha chamam pontos, o barco gemia de humildade na fúria do cachão. As margens passavam como vertigens paralelas. E, quando a água lambia a borda do rabelo, os gritinhos das senhoras pareciam salpicar o silêncio pesado dos homens. Em certos pontos, por ventura com história de naufrágio, apareciam na face de um rochedo recolhido pinturas ingénuas de figuração religiosa. Os barqueiros tiravam as boinas surradas para uns segundos de prece. Lá no alto, frágil como um pardalito, Passarada manobrava a espadela com precisão e coragem. Ainda me soam na memória, como um eco repetitivo, as suas ordens aos remadores:

- Amó-lá-pá!  amó-lá-pá!.. amó-lá-pá! ...

De um e outro lado, depois das faixas mordidas pelo rio, as margens erguiam-se mais suaves ou mais escarpadas. Vinhedos desde o rio às matas da cumeada, pomares nos rechãos mais convidativos, povoados ribeirinhos e distantes, palácios arruinados e melancólicos, armazéns tristes e silenciosos na orla dos mortórios. Tudo se via do barco nessa paisagem rústica e humana marcada por crises e abundâncias ditadas pelo fatalismo.

Depois de Entre-os-rios o Douro não voltou a ser um rio de mau génio.

Entre margens aprazíveis, as águas corriam largas e quintas como sangue de animal arrependido foi preciso remar sempre para não perder o fio da corrente e forte para chegar ao fim da viagem antes de anoitecer.

Mais de quarenta anos passaram sobre a minha primeira viagem da Régua ao Porto pelo rio. Entretanto, a competição rodoviária e ferroviária foi, de ano para ano, reduzindo a zero o tráfego fluvial de pequenas e grandes distâncias. Pode dizer-se que ficaram apenas os barcos necessários à serventia das terras ribeirinhas que se miram de uma e outra margem.

Passarada, o arrais do rio velho, deve ter acabado ao canto da lareira a queimar, pedaço a pedaço, o barco que lhe deu o pão, as rugas e as brancas. Devem ter morrido assim os últimos arrais e os últimos rabelos.

Não sei se por raciocínio espontâneo, se por chuçadela de Neptuno, os homens andam ultimamente, muito voltados para as águas, como fonte de soluções até agora insuspeitadas. Se houve interferência de Neptuno, bem merece do homem embriagado de progresso galopante um tridente de ouro no dia das suas eternidades.
Alguém reparou e fez reparar, com olhos de futuro, no complexo potencial que o rio Douro e a sua região representam. Vieram primeiro uma a uma, as barragens satisfazer boa parte das necessidades energéticas do país. Depois, ganharia entusiasmo persistente a ideia da navegabilidade, aberta aos barcos de calado próprio do tráfego dos grandes rios. Pensou-se, e pensa-se, que só a navegabilidade do Douro poderá rasgar os mais vastos horizontes da agricultura, da indústria, do comércio e do turismo na região mais rica e mais bela do nosso país.

Com a navegabilidade conseguida até à Régua, um novo turismo pode começar entre nós. E já começou.

Municípios e Turismos, do Peso da Régua e de Lamego, atentos aos recursos de um rio que lhes é comum, deram as mãos, de uma e outra margem, e patrocinaram a primeira viagem de turismo fluvial, entre a Régua e o Porto.

Sábado 25 de Outubro de 1986 - uma data escrita na água, até entrar na História que aí vem do nosso rio e da nossa região.

O Ribadouro esperava no cais da Régua, embandeirado e feliz com a gente que chegava ao seu convés e com a gente que ficava para dizer adeus. O tamanho, a cor e o riso largo das suas janelas fez-me recordar o Santo António, o simpático barquinho que me levou de Sorrento à ilha de Capri.

Entre palmas e apitadelas o barco ganhou o meio do rio para logo começar a descer como diamante que risca um espelho imaculado. Outros tempos, outros barcos, outras águas.

Até à Ermida, tudo era bem conhecido de todos. As pessoas corriam de uma janela para a outra apontando, sorrindo e dizendo adeus a quem das margens nos acenava.

A diferença que logo se nota nas margens do rio novo é a falta daquela borda, lodosa ou ressequida, marcada pelo constante movimento do rio velho. As águas subiram, pararam e ficaram a beijar os vinhedos, as hortas, os pomares e até as casas mais ribeirinhas. Por tudo se passa à mesma velocidade. Já não há o medo e a hipnose das vertigens paralelas. Rápido e caudaloso era o Rogério Reis a ciceronar pelo microfone. Pena foi que o ronronar do motor nos tivesse roubado tanto da sua valiosa cultura regionalista.

Há mais casario e mais cultivo pelas encostas, mas, desgraçadamente, o mau gosto parece comum às vivendas e casa de lavoura. E faz pena ver tanta casa senhorial abandonada. Mas, não sei que me diz que todas elas voltarão um dia a recuperar a dignidade. Vem aí muita gente ver o que somos e o que temos.

Num trecho silencioso do rio ancorámos para almoçar no Convento de Alpendurada. Do ancoradoiro ao Convento é um salto, mas ninguém dispensou a serventia dos autocarros. Não é à hora física do almoço que se deve ver o Convento de Alpendurada. Sentir o que foi e adivinhar o que pode vir a ser. No enorme e belo edifício, até há bem poucos anos abandonado, já foi gasto muito dinheiro e muita coragem. Espera-se e deseja-se que nem uma coisa nem outra venham a faltar, agora que está bem perto de ser, ao que julgo, a maior pousada do país. Não tive tempo, nem teria olhos, para apontar inexactidões que porventura, se andem a cometer nas obras de restauro. No entanto, uma figura me pareceu despropositada no jardim fronteiro ao edifício. Uma elegantíssima mulher de bronze, em tamanho natural, oferece, em gesto donairoso, os mimos da sua nudez diante do olhar pisco das celas. Parece-me uma provocação aos fantasmas de quem tanto combateu os pecados da carne. Além disso, ninguém sabe do que é capaz um fantasma restaurado... A bela estátua ficaria bem melhor num rochedo, como que saída do rio para ensinar o caminho do paraíso, lá no alto, no Convento.

A Pala, vista do lago em que ali o rio se transforma, é de uma beleza e de uma ternura indiscutíveis. Parece um daqueles presépios gigantescos onde o construtor resolveu meter tudo e onde tudo se mexe por força de mola oculta em qualquer parte: Pontes, estradas, via férrea, vinhedos, pomares, casario, barcos, carros e comboio a passar...

Não vale a pena negar que havia uma certa preocupação com a passagem das eclusas... Não há razão para ter medo. Razão há, isso sim, para viver ali, bem no centro, a luta titânica da ciência e da natureza. Carrapatelo assombra sem amedrontar. Em Crestuma chega a comover o abrir, de par em par, daquelas portas colossais, E tão solene que até se estranha que, do outro lado apenas o rio continue. Só faltou um pouco de música de Wagner...
É impossível trazer para o papel todas as luzes, todas as sombras, todas as cores, todos os sons e todos os silêncios desta viagem pelo rio Douro. Até o atraso que sofremos, acabou por nos dar novo encantamento. As luzes reais e reflectidas são tantas, de uma e outra margem, que nos pareceu chegar, não à Ribeira, mas ao firmamento, em noite de festa.

Quando as barragens vieram partir o Douro pela espinha, imobilizando-lhe as águas, João de Araújo Correia exprimiu o seu luto chamando-lhe Rio Morto. Eu próprio lhe chamei Rio Perdido. Não. O Douro está vivo e achado.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Dezembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Cartas de longe: Memórias a preto e branco

Entre cidades irmãs (Ovar e Régua) fala-se do construtor de Porto Amélia - Pemba - Afonso Henrique Andrade Paes.
- Transcrição - Jornal João Semana - Ovar - 1 de Junho de 2004.

Achámos curiosa e digna de registo esta referência do Dr. Camilo de Araújo Correia, filho do grande escritor João de Araújo Correia, a um Vareiro que conheceu bem em Porto Amélia, Moçambique, publicada no jornal "O Arrais", da Régua.

“(...) No meu tempo, o grande construtor civil de Porto Amélia era o arquitecto Afonso Henriques de Andrade Paes. Os seus camiões amarelos com grandes letras da cada lado (A.H.A.P.) estavam sempre a passar e repassar.

O encarregado das obras de Andrade Paes era um homem simpático, eficiente e surdo. Para ir ouvindo alguma coisa, usava um aparelho.Um aparelho auditivo de quarenta anos... Constava de uma grande pilha metida no bolso do lado esquerdo do peito e de um fio que, partindo daí, terminava numa oliva introduzida no ouvido. Foi este fio que veio a caracterizar o homem de confiança de Andrade Paes. Entre negros era conhecido por mucunha narame (senhor arame).

Porto Amélia... Porto Amélia...”
- Camilo de Araújo Correia ("O Arrais")

O Arquitecto Afonso Henriques Andrade Paes, natural de Válega (da família Soares Paes, comerciantes em Ovar), formado na Escola de Belas Artes do Porto, casado com a escritora Glória de Sant’Ana, nossa ilustre colaboradora, partiu, aos 25 anos, para Moçambique, onde fez trabalhos da sua especialidade em Nampula, cidade onde viveu 2 anos e onde fez o seu 1° projecto de construção civil, e em Porto Amélia, para onde partiu, a pedido do Governador, que lhe encomendou um projecto de casas sociais, ali constituindo a sua empresa (A.H.A.P) de Arquitectura, Engenharia e Construção.

Obs.: As cidades de Ovar e Peso da Régua são consideradas "Irmãs"... Existe em Ovar a "rua da Régua" e na Régua a "rua das Vareiras".
*Vareiros(as) são designados os naturais de Ovar.

E é bom lembrar e repetir que as ruas e recantos de Pemba sempre irão "falar" deste seu incansável obreiro...
Muitos durienses viveram e visitaram, quando Moçambique era colónia portuguesa, essa bela cidade, capital da província de Cabo Delgado ao norte de Moçambique. E visitam ainda hoje. Por lá também andou e viveu o saudoso jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão... e de lá escrevia as inesquecíveis "Cartas de Longe" para semanário duriense Notícias do Douro. Tudo isso antes de 1975... Tentando preservar algumas imagens dessa época que já é história, aqui deixamos o endereço do ForEver PEMBA (blogue)  que tenta retratar a Porto Amélia de muitos de nós, portugueses e durienses que a conhecemos com encanto e ajudamos a construir.
- J. L. Gabão

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve)

domingo, 6 de setembro de 2009

Encontros com Amália

(Imagem original daqui)

Texto do Dr. Camilo de Araújo Correia, intitulado "Encontros com Amália", publicado no livro "Crónicas do meu Vagar", da Garça Editores - Régua:

O meu fado é o de Coimbra. Lá o ouvi noites sem conta e muitas vezes, em momentos de nostalgia, o vou buscar a uma caixa negra, a troco de uma "bolacha”. Mas vindo de uma caixa negra, com toda a sua pureza electrónica, não é bem fado. Falta-lhe o negrume das capas, o recorte dos beirais no céu estreito, os passos abafados ao fundo da ruela, as janelas a iluminarem-se como corações agradecidos... Falta-lhe a noite. E não há noite que saia de uma caixa negra a troco de uma “bolacha”.

É rica a galeria de cantores do meu tempo de Coim­bra. Alguns nomes se apagaram já. Outros me acompanharão até ao fim da memória. Augusto Camacho, Luís Gois, Alexandre Herculano, Anarolino Fernan­des, Florêncio, Branquinho...

O fado de Coimbra só canta o amor e a saudade, na sua expressão mais pura. E só os homens o podem can­tar. Só eles conhecem bem o cristal da noite.

Nunca o fado de Lisboa me atraiu apaixonadamente. Os dramas de faca e alguidar, as infídelidades e outras airrelias sentimentais, cantadas por homens e mulheres em ambientes fechados, raramente me pareceram sin­ceros. E digo raramente, porque houve sempre duas excepções: Alfredo Marceneiro e Amália Rodrigues.

A voz rude, quase murmurada, de Alfredo Marceneiro sempre me pareceu a própria noite a arrastar-se pelas vielas. Transmitia-nos o doloroso fatalismo dos boémios.

A voz de Amália Rodrigues tinha lonjuras de infinito. Ia longe buscar sentimentos que pareciam de vibração perdida. Chegava a provocar em nós um estranho desejo de sofrer, na feliz expressão de Cesário Verde.

Tive com Amália três encontros. Apesar de fortuítos, ainda hoje os recordo como três baptismos de fado.

Nunca o S. João do Largo do Castelo foi tão animado como em 1947. Amália, a filmar em Coimbra as Capas Negras, apareceu por lá e meteu-se na roda. Quando um calmeirão do alto do palanque, armado no centro, comandou todos ao meio de mãos dadas, a minha mão direita encontrou-se com a mão esquerda de Amália. Ainda a Amália não era a Amália que deveria ser, mas aquele minuto, de mão na sua mão, ainda hoje o sinto como página marcada no meu álbum de vaidades.

A República do Rás Teparta era logo ali, na Rua dos Estudos. Amália, com o seu grupo das filmagens e nós, os mais chegados da república, fomos lá acabar a noite. O riso, o fado e o vinho jorraram de mãos dadas e nunca uma rainha foi tão rainha.

O segundo encontro foi nas festas de Santa Eulália em 1951. Era eu oficial em Elvas, no Batalhão de Caçadores 8. Nós, os nossos camaradas de Lanceiros 1 e meio Alentejo em redor acorremos às festas para ouvir Amália, de nome já a cantar nos cartazes, há muitos dias. Talvez por sobressaírem mais os nossos aplausos e apartes, Amália veio no fim da actuação à nossa mesa passar uns minutos. Como não se usava o beijinho, houve mãozadas e frases de circunstância.

O último encontro com Amália foi no Hospital da Régua, não sei precisar há quantos anos. Cerca de trinta... Mal soube do acidente do marido na estrada do Pinhão, Amália apareceu num pé-de-vento. Com mil perguntas nos olhos me interpelou num corredor. A sua mão nervosa mal se demorou na minha.

Quando Amália nos deixou, voltei a sentir a capa, a farda e a bata para lhe dizer adeus.
- Camilo de Araújo Correia, 23Mar2000 - Cedido gentilmente por J A Almeida, Set2009.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Crónica - O Cimo da Régua.

Hoje em dia, já não se usa muito entre nós a designação toponímica de Cimo da Régua.

Como foi com ela que me criei, ainda hoje me sabe bem ouvi-la ou vê-la escrita.

O Cimo da Régua ia, mais ou menos, do Valente Novo à Casa da Fortuna, de um lado. Do outro, estendia-se da Valente Velho às lojas de ferragens do João Guerra e Domingos Figueiredo. Perpendicularmente, na Rua Serpa Pinto, chegava à loja do Antão, frente a frente com a Associação Comercial.

Pelo seu intenso e variado comércio, o Cimo da Régua era, pode dizer-se, a nossa "Baixa". Toda a gente se via, toda a gente comprava isto e aquilo no Cimo da Régua.

O ponto nevrálgico desta nossa "Baixa" era a loja do Zé Pinto, onde se podia comprar do melhor arroz ao melhor café, do melhor papel de carta à melhor escova. Também se podiam engraixar os sapatos em cadeirão episcopal montado num pequeno estrado.

O "Vintecinco", mesmo com um grãozinho na asa, engraixava a preceito, dava as novidades e vendia as cautelas delicadamente.

Era na loja do Zé Pinto que se encontravam os figurões da Régua para longas cigarradas e longas conversas, a que não faltava uma pontinha de má língua local e nacional. O Zé Pinto, dentro do balcão, saía da conversa para atender os fregueses. Mesmo aos que apertava a mão com efusiva fraternidade, não deixava de apertar os preços do que viessem comprar. Implacável até ao tostão!

Fora da loja o Zé Pinto era a pessoa mais magnânima do mundo. Num passeio de amigos gostava de pagar tudo a toda a gente.

Muito perto do Zé Pinto, ficava o Quartel dos Bombeiros. Aí se reuniam estudantes, empregados e artífices. Além de mesas de jogo, havia um bilhar e uma grande estante de bons livros. As instalações eram de tal maneira exíguas que os carros se viam e desejavam para sair e entrar. Quando tocava o fogo, toda a gente que andasse por ali se juntava para assistir às manobras. O globo de entrada era tão baixo que o Justino Nogueira, garboso porta-estandarte, o partiu algumas vezes com a ponta do mastro.

-Ó Justino! Ó Justino... agacha-te! - avisavam os companheiros.

Junto dos Bombeiros ficava a oficina do João Latas. A oficina era de latoaria, mas tinha uns prateleirões até ao teto, onde adormeciam os mais variados artigos de ferragem. Pelo seu temperamento e pela sua longa história de estranhas atitudes, o João Latas era, como então se dizia, um maduro. Foi das primeiras pessoas da Régua a lidar com automóveis, dando pelas escabrosas estradas de então grandes passeios com as pessoas gradas da terra. Chegavam a ir à Galiza o que, na altura, era longe e arriscado como ir ao fim do mundo. São muitas e pitorescas as aventuras que se contavam do Joâo Latas ao volante.

De tão maduro que era, tanto podia responder como não corresponder aos cumprimentos de quem lhe entrasse na oficina. Também podia ter toda ou nenhuma paciência com os fregueses:

-Boa tarde, senhor João !

- ... ... ...

-Tem desandadores assim, assim...?

-Tenho... tenho... Faltam-me ele desandadores desses! Olhe, estão lá em cima a ouvi-lo... - E apontava uma prateleira lá do alto.

-Faça o favor de me dar um...

-Disso está você bem livre! Tenho o escadote lá para trás... não estou para o ir buscar - respondia, continuando o tam-tam na lata que estava a afeiçoar.

E o freguês lá ia embora a resmungar, lamentando não ter ido ao João Latas em melhores dias...

-Bom dia, senhor João!

-Bom dia, ora viva o meu amigo! Que o traz por cá?

-Ando, desde o Porto, à procura de uma navalha espanhola, de duas lâminas e...

-Tenho ainda umas ou duas... - cortava o João Latas.

-Quero uma.

-Se tiver dinheiro para a levar!

- Ó senhor João... então não hei-de ter!?

-Pode não ter... pode não ter... eu lhe digo... estas navalhas são de antes da guerra... feitas as contas ao preço actual...

O João Latas caía, então, numa folha de costaneira, a fazer contas sobre contas, até afirmar, peremptório:

-A navalha está-lhe em 200$00 e pico.

-Ó senhor João... mas isso é uma fortuna!

-É pegar ou largar!

0 freguês largava, com o fogo no rabo, sem a desejada navalha e sem compreender tamanho desconchavo.

O João Latas era também um caso único a mandar as contas aos seus fregueses. Tanto as mandava logo, com a solda ainda quente, como depois de muita insistência de quem lhas pedia.

Uma vez, mandou à Senhora D. Branca Martinho, por quem, como toda a gente, tinha o maior respeito, a seguinte conta:

-Um fundo novo numa cafeteira de litro - grátis.
-Um pingo numa panela - grátis.
-Soldar a asa de um funil - grátis.
-Mão nova num regador velho - grátis.
-Total: 4 serviços grátis a 2$50 - 10$00.

...Aquele Cimo da Régua... ... ...
- Camilo de Araújo Correia - In Villa Regula de Março de 1999.
- Transcrito do site "Régua - Página 2"

segunda-feira, 16 de março de 2009

Um discurso do Dr. Camilo de Araújo Correia.

(Clique na imagem para ampliar)

Esta foto diz tudo: Camilo de Araújo Correia num discurso de um aniversário da Associação como seu Presidente da Direcção. As suas palavras têm o seu sorriso que sempre nos habitou e, certamente, tem um sentido de humor contagiante. Basta, ver olhar atento como alguns dos presentes o ouvem, como é o caso do Chefe Armindo.
Camilo de Araújo Correia é um dos nossos. Vestiu também a nossa farda azul. Mas foi um grande médico e um grande escritor nas “horas vagas”, como ele gostava de dizer a sorrir, seguindo de perto os passos literários de seu pai João de Araújo Correia. Foi nosso amigo, sempre, até a data da sua morte, ocorrida, em finais do ano 2007. Ele, sabe que tem um lugar, um cantinho especial na história dos bombeiros de Peso da Régua. Ele, não só exerceu funções directivas, como ainda foi médico dos bombeiros e, muitos anos, o director do jornal mensário da Associação “Vida por Vida”.

Escreveu muitas e belas histórias na sua vida que foi de uma paixão pelo nosso Douro e suas gentes, pelo seu rio e seus belos barcos rabelos, a navegarem põe entre este imenso teatro de vinhas, que foi o palco da vida de muitas das suas personagens, para todos nós mais reais do que as vezes ele nos fazia crer.

Sobre os bombeiros de Peso da Régua escreveu algumas histórias das suas figuras mais simples, mas cheias de alma e sonhos, os heróis que o tempo e as memórias do fogo nunca apagaram e, sobretudo, da sua grande admiração pelos homens da paz. Duas crónicas, brilhantes, carregadas de sentido de humor e fina ironia, adocicada de um carinho pelos bombeiros, como por essa personagem do Justino podem ler-se nosso livro “125 Anos da Nossa História”.

Foi Presidente da Direcção da Associação nos anos de 1964-1965. Do acto da sua posse em 12 de Agosto de 1964, o jornal “Vida por Vida” refere que Camilo de Araújo Correia “usou da palavra de uma maneira que lhe é tão peculiar, historiou a maneira porque aceitou o convite que lhe foi dirigido ainda quando se encontrava em serviço militar em terras africanas e disse dos propósitos que o nortearão no desempenho do cargo, que se resumia em lealdade para como todos, amizade e humanidade no geral”.

Não poderiam ser outras as suas palavras. Sem margem para dúvidas, elas retratam a verdadeira condição de um homem humanista.

Assim, temos todo o gosto em revelar as suas palavras, manuscritas numa caligrafia impecável, num cartão timbrado que, em 7 de Dezembro de 2000, dirigiu ao Presidente da Direcção e ao Comandante dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua:

“Exmos Senhores:
Venho por este meio agradecer-lhes muito honrado a simpatia da oferta da medalha comemorativa dos 120 anos da nossa prestigiada Associação. As minhas sinceras felicitações a quem a concebeu. De um lado, a fachada do quartel, a beleza e a originalidade. Do outro, um minuto de silêncio por quem perdeu a vida no cumprimento do seu abnegado dever. Conheci muito bem o João e o Afonso. O luto da Régua foi o meu luto.
Creiam na muita estima do muito grato,”

Creia Dr. Camilo que nós lhe estamos também muito gratos e saiba que os bombeiros da Régua nunca o esquecerão.

Camilo de Araújo Correia tinha sempre as palavras certas de agradecimento, de ironia e de ternura que nos afogavam de emoções ou nos faziam sorrir. E, na sua memória, estava guardado o respeito por aqueles dois bombeiros que deram o seu melhor à Régua, em missões de serviço onde deram a sua vida por nós.
- Peso da Régua, Março de 2009,
José Alfredo Almeida.
  • Complemento que este post refere o Dr. Camilo, médico e escritor da Régua e do Douro, filho do também consagrado médico e escritor João de Araújo Correia.
    O Dr. Camilo é igulamente figura inesquecível (pelo menos para os mais antigos naturais e residentes daquela cidade do norte de Moçambique) em Porto Amélia, hoje Pemba onde residiu durante alguns anos da época da "guerra colonial" prestando serviço como diretor do hospital militar anexo ao hospital civil.
    Cuidou e salvou vidas assim como bastantes Amigos ali fez e deixou, envolvido nas horas vagas na produção amadora de peças teatrais onde, o saudoso e também colega militar Dr. Simões Coelho, entre outros, o coadjuvava para júbilo da população local carente desse tipo de cultura e lazer.
    Companheiro de infância e colega dos bancos escolares de meu saudoso Pai - Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, bastantes de seus finais de semana e tardes africanos, que recorda com nostalgia e estilo sem igual em obras escritas, foram passados na varanda frondosa de minha casa em Porto Amélia, entre alguns cordiais cálices de vinho do Porto, pitéus à moda do Douro e Trás-os-Montes primorosamente preparados pela afável e transmontana D. Nair - minha Querida Mãe e conversas que se alargavam até noite alta, quase sempre sobre gentes, costumes e lugares do Douro que jamais esqueciamos daquele lado do mar. Aqui ficam também, em poucas palavras e aproveitando a deixa, minha homenagem e minha saudade por essa personagem de porte da nossa Peso da Régua.
    - Jaime Luis Gabão, 17 de Março de 2009.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Há quinze anos para sempre...

Tanta grandeza de alma
Em cada sublime acção
Conta-nos a pequenez
Leva-nos a dar a mão
Pois pode haver outra vez...
(Manuel Igreja)
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Por Camilo de Araújo Correia.
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Os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua fizeram cento e dez anos (2005). É um numero bonito. Não pode ser redondo, mas por traduzir muitos, muitos milhares de horas de trabalho e sacrifício de quem dirige, de quem comanda e de quem obedece a regulamentos e sentimentos em benefício do mais anónimo dos anónimos - o próximo.
O programa de festas cumpriu-se no dia 2 de Dezembro e com ele a tradição de visitar bombeiros, directores, comandantes, sócios e benfeitores falecidos, sepultados nos cemitérios da Régua e de Godim; de assistir à missa na Igreja Matriz; de percorrer em formatura as principais ruas da cidade; de apresentar cumprimentos à Câmara Municipal.
Antes do almoço tradicional, sempre animado, houve imposição de medalhas, cerimónias de tocante significado, em que os silêncios e os aplausos sublinham os méritos distinguidos.
A Direcção e o Comando mantiveram também a tradição de convidar autoridades, afinidades e simpatias mais evidentes, o que sempre corresponde a uma boa apresentação de toda a Régua. E, assim, nos aniversários a cidade fica ainda mais perto dos seus bombeiros.
Quem já fez uma dezena de anos, ao assistir a estas festas centradas nas magníficas instalações dos nossos bombeiros, não pode deixar de recordar o velho e minúsculo quartel do Cimo da Régua. Velho, modesto e pequeno, mas muito querido dos seus frequentadores e visitantes fortuitos, sem falar do rapazio, incapaz de passar adiante sem se deslumbrar com o pronto-socorro de cadeirinhas e com a ambulância, uma caranguejola esquinuda, de um branco muito duvidoso e um conforto ainda mais duvidoso... Os carros entravam à justa na porta estreita, sempre com grande vozearia de indicações e avisos.
O quarto do Zé Pinto, o quarteleiro, era também minúsculo e abria para o "parque automóvel". Deste se passava à sala de jogos, por dois degraus. O quartel acabava aqui, se não contarmos uma pequena cozinha lá no fundo. Cozinhava ali a senhora Antoninha, esposa do Zé Pinto, ainda hoje inconformada viúva, e ele próprio preparava os petiscos que os jogadores da noite lhe pediam.
Jogava-se um bilhar muito gozado, um dominó muito batido e umas cartas muito lambidas.
Havia, ainda, uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe, por esporádico leitor.
As formaturas só se desfaziam no quartel, à medida que iam entrando. De maneira que a porta estreita oferecia grandes dificuldades para manter o aprumo. As maiores dificuldades ainda eram as do Justino, garboso porta-bandeira de muitos anos. Garboso, mas desastrado... De rígida marcialidade, esquecia muitas vezes o globo de entrada; aquele globo de luz melancólica marcada por uma cruzinha vermelha. A rigidez do corpo e do gesto não lhe permitia baixar suficientemente a bandeira. Zás!... mais um globo. De nada valiam os avisos dos colegas mais próximos, feitos, ,disfarçadamente, pelo canto da boca: -Ó Justino... Ó Justino... olha o globo! Bumba!... mais um.
Até que um dia o Justino, muito infeliz, propôs que se arranjasse um globo de lata.
Coitado do Justino. Já lá está, nem sei há quantos anos.
Não pôde levar a sua querida bandeira dos Bombeiros da Régua. Ainda bem... Eu sei lá, se com o vagar da Eternidade, nos andaria a quebrar as estrelas, uma a uma.
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Livro - "Bombeiros Voluntários do Peso da Régua-125 anos da sua História";
Propriedade - Bombeiros Voluntários do Peso da Régua;
Autor - Manuel Igreja;
Fotografia - B. V. do Peso da Régua, Foto Baía, Manuel Igreja;
Paginação, fotolitos e impressão - Imprensa do Douro;
Depósito Legal n. 234957/05;
Tiragem - 2.000 exemplares.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O Natal do Brasileiro.

(Imagem original daqui.)
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Por Camilo de Araújo Correia
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Em quarenta anos de Brasil, João Patrício nunca tivera possibilidades de vir a Portugal. A príncipio, por falta de dinheiro, depois, por falta de ocasião. Na verdade, os primeiros quinze anos tinham sido duros como caixeiro apagado ao fundo de um grande estabelecimento de secos e molhados.
Por morte dos donos, em desastre de viação, viu-se repentinamente guindado a gerente daquela grande nau comercial. Os filhos dos patrões, uns médicos, outros engenheiros, avessos ao comércio, cedo lhe venderam a firma, nas melhores condições, por muito acreditarem na sua competência e experiência.
Bem se saíu João Patrício do pesado encargo. Ao fim de quarenta anos, tudo era seu, desde o barril do vinagre à tabuleta do neon. Não ficou por aí. Os tempos de prosperidade pareciam querer vingá-lo dos tempos de mesquinhez. Em cada ano abria um novo estabelecimento. Acabou por ter uma cadeia de supermercados, respeitável nos bancos onde o seu dinheiro se multiplicava e que eram quase todos os do seu Estado.
Apesar de rico e feliz com sua numerosa família, nunca outra coisa sonhou João Patício que não fosse vir a Portugal, à sua aldeia nas faldas da Serra do Milhafre. Os ruídos, as luzes, os hábitos da grande cidade jamais lhe perturbaram a visão exacta da sua terra. Como que repousava o pensamento naquelas casinhas humildes de pedra nua em redor da única vaidade - a igreja branca e majestosa de Nossa Senhora das Aves. Quantas vezes adormeceu, cansado do balcão, a imaginar-se de opa vermelha rutilante, ao sol de um domingo de Páscoa, na companhia do senhor abade? Nem ele sabia...
Naquele ano, João Patrício pôde vir a Portugal. Aí por alturas de Março começou a pensar nisso sem nunca esmorecer por mais contrariadades que a vida lhe trouxesse.
Como a chegada calhasse em pleno Dezembro, concebeu um sonho maravilhoso e tratou de lhe dar realidade. Comprou lembranças que chegassem para toda a gente, um manto novo para Nossa Senhora das Aves e mil e um enfeites para engalanar a aldeia no dia de Natal. Duas bandas de música seriam rogadas na devida altura.
Porém, uma grande tristeza o invadiu quando, ainda de longe, avistou a sua terra. Pareceu-lhe uma grande tela de pintor louco perdida na montanha. As casas iam do rôxo ao verde salsa sem passar pelo branco. A própria igreja perdera majestade apesar de continuar branca e digna no meio daqueles estilhaços de arco-íris.
Entrou na aldeia cabisbaixo. De longe em longe levantava os olhos à procura dos alpendres onde deixara velhinhas a fiar. Nem um. Tinham sido substituídos por varandas de cimento armado, compridas e ventrudas. Por toda a parte onde houvesse um palmo quadrado de superfície lisa cartazes pôdres e ameaças de morte, escritas a pincel nervoso.
Sem família a quem se dirigir, procurou o abade. Encontrou um velho desiludido numa casa desiludida. Rápidamente lhe descreveu a sua vida e lhe contou a sua intenção de oferecer à sua terra um Natal farto e alegre.
- Sabe, reitor, a gente lá morre de saudades. Só pensa mesmo na sua terra...
- Muito me custa desiludi-lo, senhor João Patrício... mas, esta gente não compreenderia a sua boa fé e as suas saudades. O senhor já não é, sequer, um brasileiro a querer botar figura na sua terra. Passaria por um ricaço a julgar toda a gente pobrezinha. Duvido mesmo que arranjasse quem lhe deitasse os foguetes...
- Não diga mais, reitor. Compreendi e muito lhe agradeço ter-me salvo da última desilusão. Hoje mesmo regresso a Lisboa.
- Isso é que não vai! Desde já o convido para passar o Natal comigo. Anda por aí uma velhota, meia tonta, mas com grande dedo para a cozinha. Quem vai dar as ordens é o senhor. Tenho um vinho de estalo e a conversa nunca falta. O senhor o que precisa é de conversa e de um vinho desta terra que cá o chamou.
- Nunca aceitei um convite com lágrimas nos olhos, reitor. Não repare nelas, mas acredite nelas, reitor.
Naquela noite de consoada os dois velhos, depois de muito conversarem, ficaram a dormir no preguiceiro. A fogueira com os seus cinzéis de luz foi esculpindo na pedra da noite um baixo relevo para o museu da Eternidade.
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Título: Histórias do Fim do Ano
Autoria; Camilo de Araújo Correia
Ediçao: Brasília Editora - Porto
Primeira edição: Dezembro 2001
Execução gráfica: martins & irmão - Porto