À noite, a minha avó, leva-me ao colo pelo caminho principal da quinta para fechar o portão e diz-me: Não olhes para trás que vês o Diabo.
Escondo-me ao pescoço. As sombras das árvores fazem-me figuras, fecho os olhos, espreito quando se movem na aragem. Tenho medo, ela não. Mas também não lhe digo. Continuo ao colo e continuo a ter cinco anos.
Maria Emília Queiroz Marinho Bernardo, avó alta e magra de pernas secas, tinha na voz o comando de quem vivia a dar ordens e a organizar a vida, sozinha. Viúva e filha mais velha de 6 irmãos. Nasceu, viveu e casou na quinta da Vacaria.
O verão da minha infância foi passado no Douro, com a avó, numa quinta onde nasci e que há muito foi cortada por uma estrada, no meio de trovoadas sufocantes, mais as histórias sem fim que pairam reais no meu imaginário infantil. Desde a capela com os santos milagrosos, os frades enterrados nela, até ao corredor de glicínias que perfumava todo o jardim, onde o rio Corgo circundava a terra e deixava ilhas para os piqueniques. Lembro-me dos lagares, do calor das uvas quando colhidas, do cheiro do vinho quando fermentado, do frio das adegas quando cerradas, do terror das sardoniscas quando passeavam o tecto caiado ao dormir a sesta. Lembro-me, do comboio de cortinas que fechava para não ver o escuro dos túneis, do abismo do rio, terra acima em direcção a um lugar mágico mas difuso, com os olhos de não voltar, do calor desses verões, dos insectos que bailavam junto às videiras, do revisor que cumprimentava a avó, do comboio que esperava por ela, do cheiro do carvão, do vapor nos meus olhos, das viagens infinitas e das nuvens a ameaçarem sempre trovoada.
Do Douro aprendi, desde pequena, a olhar para dois sítios: para o rio e para o céu.
- Armanda Passos - In catálogo da exposição "Obra Gráfica".
Armanda Passos nasceu em 1944, no Peso da Régua. Licenciou-se em Artes Plásticas na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Expõe desde 1976. Armanda Passos neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagem "quadro" cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.
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