Por Camilo de Araújo Correia
Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos seus primeiros raciocínios.
Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem. Não ia longe o entusiasmo que me tinha arrancado ao que estava a fazer. Logo o meu espírito começava a intrigar -se com a rigidez daquelas fileiras, a limpeza daquelas fardas e a refulgência daqueles machados. Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas... como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? Depois, parecia-me impossível ficarem sempre como a prata as machadas, sendo a de partir a lenha em nossa casa uma vergonha de bocas e negrume, além de lhe estar sempre a sair o cabo... O que mais me intrigava ainda era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer urnas surras da minha mãe.
Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo inteirinho...
Foi numa tarde de calor e de tourada. O Cimo da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um figurante de corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas mãos enormes de meu pai e de meu avô. De vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo. Houve até um certo pânico, quando um cavalo de grande pluma vermelha subiu o passeio. A certa altura que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão!
Os meus olhos nunca mais se despegaram daquele capacete de oiro e da-quela machadinha de prata... Quando a inveja me deixou falar, perguntei a meu pai:
- Aquele menino é bombeiro?
- Não... é a mascote!
- É o filho do Zé Pinto – disse, depois, voltando para o meu avô.
Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber, dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os bombeiros grandes.
É bem certo que neste mundo é que elas se pagam. Deus, na sua infinita ironia, acabou por me fazer bombeiro, cerca de trinta anos depois do meu ataque de inveja.
Vim a ser Presidente da Direcção por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos. Não pensaram na minha desesperada falta de tempo...
Tive de abandonar com o dedo imperioso da profissão espetado nas costas. Tudo acabaria muito bem, se ficasse por aqui. Mas é que eu viria a ter anos depois, a sobrinha mais travessa que Deus ao Mundo deitou!...
Um dia, num chá de certa cerimónia e sem vir a propósito, saiu-se com esta:
- O meu tio já foi bombeiro, mas teve que sair porque não apagava nada. Os risinhos das senhoras, mal disfarçados, atravessaram-me como alfinetes...
De cada vez que me pregava esta partida, tentava fazê-la compreender que o meu papel de Director não era ir aos incêndios, nem apagar fosse o que fosse, por mais que as coisas ardessem à minha volta.
Em vão procurei convencê-la de que os bombeiros também têm escritório com secretárias cheias de papéis...
De cara fechada e olhos trocistas dizia sempre:
- Sim... Sim...
Paguei bem paga a inveja que me fez o capacete e a machadinha daquele bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão, numa tarde de calor e de tourada.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Janeiro de 2011. Clique na imagem acima para ampliar. Imagem da "posse do Dr. Camilo de Araújo Correia" pertence aos arquivos dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.
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