por Camilo de Araújo Correia
Teria os meus quinze anos, quando fui da Régua ao Porto de barco rabelo, metido num grupo de familiares e amigos, em passeio sonhado por meu pai, sabe Deus há quantos anos...
Era verão e manhãzinha, quando partimos do cais da Régua por entre rabelos ancorados que me pareceram elefantes a chapinhar. O nosso barco era pequeno e logo nos deu a sensação de grande fragilidade, ao ser apanhado no meio do rio pela forçada corrente. O arrais chamava-se Passarada. Era um homem pequeno e magro, cor de castanho gretado, de idade indefinida como a da camisa aberta até ao atilho das calças, arregaçadas um palmo acima dos pés descalços. Recordo a importância que lhe dei, ao vê-lo passarinhar à popa, de mãos firmes na espadela e olhar atento no rio, até ganhar a linha de água que mais convinha à sua navegação.
Não tirámos os olhos da Régua, enquanto a pudemos ver. E quem os poderia tirar daquela terra linda, aconchegada a um chão de vinhedos sem fim, diante de um rio ainda sem bridão? Ninguém adivinhava nas entranhas da sua beleza a convulsão que viria a manifestar-se nos esgares de cimento que igualam todas as fealdades urbanas.
Foi uma viagem de encantos e de medos. Encantos e medos que da estrada ou do comboio ninguém podia suspeitar.
Até Entre-os-Rios, onde pernoitámos, a viagem decorreu ao ritmo do coração invisível de um gigante adormecido. O rio ora se estreitava entre despenhadeiros que quase se tocavam, ora se alargava em águas tão mansas que pareciam resolvidas a não continuar a correria. A sístole e a diástole em pleno peito de urna região forte, bela e poderosa.
Nos rápidos, que na linguagem ribeirinha chamam pontos, o barco gemia de humildade na fúria do cachão. As margens passavam como vertigens paralelas. E, quando a água lambia a borda do rabelo, os gritinhos das senhoras pareciam salpicar o silêncio pesado dos homens. Em certos pontos, por ventura com história de naufrágio, apareciam na face de um rochedo recolhido pinturas ingénuas de figuração religiosa. Os barqueiros tiravam as boinas surradas para uns segundos de prece. Lá no alto, frágil como um pardalito, Passarada manobrava a espadela com precisão e coragem. Ainda me soam na memória, como um eco repetitivo, as suas ordens aos remadores:
- Amó-lá-pá! amó-lá-pá!.. amó-lá-pá! ...
De um e outro lado, depois das faixas mordidas pelo rio, as margens erguiam-se mais suaves ou mais escarpadas. Vinhedos desde o rio às matas da cumeada, pomares nos rechãos mais convidativos, povoados ribeirinhos e distantes, palácios arruinados e melancólicos, armazéns tristes e silenciosos na orla dos mortórios. Tudo se via do barco nessa paisagem rústica e humana marcada por crises e abundâncias ditadas pelo fatalismo.
Depois de Entre-os-rios o Douro não voltou a ser um rio de mau génio.
Entre margens aprazíveis, as águas corriam largas e quintas como sangue de animal arrependido foi preciso remar sempre para não perder o fio da corrente e forte para chegar ao fim da viagem antes de anoitecer.
Mais de quarenta anos passaram sobre a minha primeira viagem da Régua ao Porto pelo rio. Entretanto, a competição rodoviária e ferroviária foi, de ano para ano, reduzindo a zero o tráfego fluvial de pequenas e grandes distâncias. Pode dizer-se que ficaram apenas os barcos necessários à serventia das terras ribeirinhas que se miram de uma e outra margem.
Passarada, o arrais do rio velho, deve ter acabado ao canto da lareira a queimar, pedaço a pedaço, o barco que lhe deu o pão, as rugas e as brancas. Devem ter morrido assim os últimos arrais e os últimos rabelos.
Não sei se por raciocínio espontâneo, se por chuçadela de Neptuno, os homens andam ultimamente, muito voltados para as águas, como fonte de soluções até agora insuspeitadas. Se houve interferência de Neptuno, bem merece do homem embriagado de progresso galopante um tridente de ouro no dia das suas eternidades.
Alguém reparou e fez reparar, com olhos de futuro, no complexo potencial que o rio Douro e a sua região representam. Vieram primeiro uma a uma, as barragens satisfazer boa parte das necessidades energéticas do país. Depois, ganharia entusiasmo persistente a ideia da navegabilidade, aberta aos barcos de calado próprio do tráfego dos grandes rios. Pensou-se, e pensa-se, que só a navegabilidade do Douro poderá rasgar os mais vastos horizontes da agricultura, da indústria, do comércio e do turismo na região mais rica e mais bela do nosso país.
Com a navegabilidade conseguida até à Régua, um novo turismo pode começar entre nós. E já começou.
Municípios e Turismos, do Peso da Régua e de Lamego, atentos aos recursos de um rio que lhes é comum, deram as mãos, de uma e outra margem, e patrocinaram a primeira viagem de turismo fluvial, entre a Régua e o Porto.
Sábado 25 de Outubro de 1986 - uma data escrita na água, até entrar na História que aí vem do nosso rio e da nossa região.
O Ribadouro esperava no cais da Régua, embandeirado e feliz com a gente que chegava ao seu convés e com a gente que ficava para dizer adeus. O tamanho, a cor e o riso largo das suas janelas fez-me recordar o Santo António, o simpático barquinho que me levou de Sorrento à ilha de Capri.
Entre palmas e apitadelas o barco ganhou o meio do rio para logo começar a descer como diamante que risca um espelho imaculado. Outros tempos, outros barcos, outras águas.
Até à Ermida, tudo era bem conhecido de todos. As pessoas corriam de uma janela para a outra apontando, sorrindo e dizendo adeus a quem das margens nos acenava.
A diferença que logo se nota nas margens do rio novo é a falta daquela borda, lodosa ou ressequida, marcada pelo constante movimento do rio velho. As águas subiram, pararam e ficaram a beijar os vinhedos, as hortas, os pomares e até as casas mais ribeirinhas. Por tudo se passa à mesma velocidade. Já não há o medo e a hipnose das vertigens paralelas. Rápido e caudaloso era o Rogério Reis a ciceronar pelo microfone. Pena foi que o ronronar do motor nos tivesse roubado tanto da sua valiosa cultura regionalista.
Há mais casario e mais cultivo pelas encostas, mas, desgraçadamente, o mau gosto parece comum às vivendas e casa de lavoura. E faz pena ver tanta casa senhorial abandonada. Mas, não sei que me diz que todas elas voltarão um dia a recuperar a dignidade. Vem aí muita gente ver o que somos e o que temos.
Num trecho silencioso do rio ancorámos para almoçar no Convento de Alpendurada. Do ancoradoiro ao Convento é um salto, mas ninguém dispensou a serventia dos autocarros. Não é à hora física do almoço que se deve ver o Convento de Alpendurada. Sentir o que foi e adivinhar o que pode vir a ser. No enorme e belo edifício, até há bem poucos anos abandonado, já foi gasto muito dinheiro e muita coragem. Espera-se e deseja-se que nem uma coisa nem outra venham a faltar, agora que está bem perto de ser, ao que julgo, a maior pousada do país. Não tive tempo, nem teria olhos, para apontar inexactidões que porventura, se andem a cometer nas obras de restauro. No entanto, uma figura me pareceu despropositada no jardim fronteiro ao edifício. Uma elegantíssima mulher de bronze, em tamanho natural, oferece, em gesto donairoso, os mimos da sua nudez diante do olhar pisco das celas. Parece-me uma provocação aos fantasmas de quem tanto combateu os pecados da carne. Além disso, ninguém sabe do que é capaz um fantasma restaurado... A bela estátua ficaria bem melhor num rochedo, como que saída do rio para ensinar o caminho do paraíso, lá no alto, no Convento.
A Pala, vista do lago em que ali o rio se transforma, é de uma beleza e de uma ternura indiscutíveis. Parece um daqueles presépios gigantescos onde o construtor resolveu meter tudo e onde tudo se mexe por força de mola oculta em qualquer parte: Pontes, estradas, via férrea, vinhedos, pomares, casario, barcos, carros e comboio a passar...
Não vale a pena negar que havia uma certa preocupação com a passagem das eclusas... Não há razão para ter medo. Razão há, isso sim, para viver ali, bem no centro, a luta titânica da ciência e da natureza. Carrapatelo assombra sem amedrontar. Em Crestuma chega a comover o abrir, de par em par, daquelas portas colossais, E tão solene que até se estranha que, do outro lado apenas o rio continue. Só faltou um pouco de música de Wagner...
É impossível trazer para o papel todas as luzes, todas as sombras, todas as cores, todos os sons e todos os silêncios desta viagem pelo rio Douro. Até o atraso que sofremos, acabou por nos dar novo encantamento. As luzes reais e reflectidas são tantas, de uma e outra margem, que nos pareceu chegar, não à Ribeira, mas ao firmamento, em noite de festa.
Quando as barragens vieram partir o Douro pela espinha, imobilizando-lhe as águas, João de Araújo Correia exprimiu o seu luto chamando-lhe Rio Morto. Eu próprio lhe chamei Rio Perdido. Não. O Douro está vivo e achado.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Dezembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.