Hoje em dia, já não se usa muito entre nós a designação toponímica de Cimo da Régua.
Como foi com ela que me criei, ainda hoje me sabe bem ouvi-la ou vê-la escrita.
O Cimo da Régua ia, mais ou menos, do Valente Novo à Casa da Fortuna, de um lado. Do outro, estendia-se da Valente Velho às lojas de ferragens do João Guerra e Domingos Figueiredo. Perpendicularmente, na Rua Serpa Pinto, chegava à loja do Antão, frente a frente com a Associação Comercial.
Pelo seu intenso e variado comércio, o Cimo da Régua era, pode dizer-se, a nossa "Baixa". Toda a gente se via, toda a gente comprava isto e aquilo no Cimo da Régua.
O ponto nevrálgico desta nossa "Baixa" era a loja do Zé Pinto, onde se podia comprar do melhor arroz ao melhor café, do melhor papel de carta à melhor escova. Também se podiam engraixar os sapatos em cadeirão episcopal montado num pequeno estrado.
O "Vintecinco", mesmo com um grãozinho na asa, engraixava a preceito, dava as novidades e vendia as cautelas delicadamente.
Era na loja do Zé Pinto que se encontravam os figurões da Régua para longas cigarradas e longas conversas, a que não faltava uma pontinha de má língua local e nacional. O Zé Pinto, dentro do balcão, saía da conversa para atender os fregueses. Mesmo aos que apertava a mão com efusiva fraternidade, não deixava de apertar os preços do que viessem comprar. Implacável até ao tostão!
Fora da loja o Zé Pinto era a pessoa mais magnânima do mundo. Num passeio de amigos gostava de pagar tudo a toda a gente.
Muito perto do Zé Pinto, ficava o Quartel dos Bombeiros. Aí se reuniam estudantes, empregados e artífices. Além de mesas de jogo, havia um bilhar e uma grande estante de bons livros. As instalações eram de tal maneira exíguas que os carros se viam e desejavam para sair e entrar. Quando tocava o fogo, toda a gente que andasse por ali se juntava para assistir às manobras. O globo de entrada era tão baixo que o Justino Nogueira, garboso porta-estandarte, o partiu algumas vezes com a ponta do mastro.
-Ó Justino! Ó Justino... agacha-te! - avisavam os companheiros.
Junto dos Bombeiros ficava a oficina do João Latas. A oficina era de latoaria, mas tinha uns prateleirões até ao teto, onde adormeciam os mais variados artigos de ferragem. Pelo seu temperamento e pela sua longa história de estranhas atitudes, o João Latas era, como então se dizia, um maduro. Foi das primeiras pessoas da Régua a lidar com automóveis, dando pelas escabrosas estradas de então grandes passeios com as pessoas gradas da terra. Chegavam a ir à Galiza o que, na altura, era longe e arriscado como ir ao fim do mundo. São muitas e pitorescas as aventuras que se contavam do Joâo Latas ao volante.
De tão maduro que era, tanto podia responder como não corresponder aos cumprimentos de quem lhe entrasse na oficina. Também podia ter toda ou nenhuma paciência com os fregueses:
-Boa tarde, senhor João !
- ... ... ...
-Tem desandadores assim, assim...?
-Tenho... tenho... Faltam-me ele desandadores desses! Olhe, estão lá em cima a ouvi-lo... - E apontava uma prateleira lá do alto.
-Faça o favor de me dar um...
-Disso está você bem livre! Tenho o escadote lá para trás... não estou para o ir buscar - respondia, continuando o tam-tam na lata que estava a afeiçoar.
E o freguês lá ia embora a resmungar, lamentando não ter ido ao João Latas em melhores dias...
-Bom dia, senhor João!
-Bom dia, ora viva o meu amigo! Que o traz por cá?
-Ando, desde o Porto, à procura de uma navalha espanhola, de duas lâminas e...
-Tenho ainda umas ou duas... - cortava o João Latas.
-Quero uma.
-Se tiver dinheiro para a levar!
- Ó senhor João... então não hei-de ter!?
-Pode não ter... pode não ter... eu lhe digo... estas navalhas são de antes da guerra... feitas as contas ao preço actual...
O João Latas caía, então, numa folha de costaneira, a fazer contas sobre contas, até afirmar, peremptório:
-A navalha está-lhe em 200$00 e pico.
-Ó senhor João... mas isso é uma fortuna!
-É pegar ou largar!
0 freguês largava, com o fogo no rabo, sem a desejada navalha e sem compreender tamanho desconchavo.
O João Latas era também um caso único a mandar as contas aos seus fregueses. Tanto as mandava logo, com a solda ainda quente, como depois de muita insistência de quem lhas pedia.
Uma vez, mandou à Senhora D. Branca Martinho, por quem, como toda a gente, tinha o maior respeito, a seguinte conta:
-Um fundo novo numa cafeteira de litro - grátis.
-Um pingo numa panela - grátis.
-Soldar a asa de um funil - grátis.
-Mão nova num regador velho - grátis.
-Total: 4 serviços grátis a 2$50 - 10$00.
...Aquele Cimo da Régua... ... ...
- Camilo de Araújo Correia - In Villa Regula de Março de 1999.
- Transcrito do site "Régua - Página 2"
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