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domingo, 6 de setembro de 2009

Encontros com Amália

(Imagem original daqui)

Texto do Dr. Camilo de Araújo Correia, intitulado "Encontros com Amália", publicado no livro "Crónicas do meu Vagar", da Garça Editores - Régua:

O meu fado é o de Coimbra. Lá o ouvi noites sem conta e muitas vezes, em momentos de nostalgia, o vou buscar a uma caixa negra, a troco de uma "bolacha”. Mas vindo de uma caixa negra, com toda a sua pureza electrónica, não é bem fado. Falta-lhe o negrume das capas, o recorte dos beirais no céu estreito, os passos abafados ao fundo da ruela, as janelas a iluminarem-se como corações agradecidos... Falta-lhe a noite. E não há noite que saia de uma caixa negra a troco de uma “bolacha”.

É rica a galeria de cantores do meu tempo de Coim­bra. Alguns nomes se apagaram já. Outros me acompanharão até ao fim da memória. Augusto Camacho, Luís Gois, Alexandre Herculano, Anarolino Fernan­des, Florêncio, Branquinho...

O fado de Coimbra só canta o amor e a saudade, na sua expressão mais pura. E só os homens o podem can­tar. Só eles conhecem bem o cristal da noite.

Nunca o fado de Lisboa me atraiu apaixonadamente. Os dramas de faca e alguidar, as infídelidades e outras airrelias sentimentais, cantadas por homens e mulheres em ambientes fechados, raramente me pareceram sin­ceros. E digo raramente, porque houve sempre duas excepções: Alfredo Marceneiro e Amália Rodrigues.

A voz rude, quase murmurada, de Alfredo Marceneiro sempre me pareceu a própria noite a arrastar-se pelas vielas. Transmitia-nos o doloroso fatalismo dos boémios.

A voz de Amália Rodrigues tinha lonjuras de infinito. Ia longe buscar sentimentos que pareciam de vibração perdida. Chegava a provocar em nós um estranho desejo de sofrer, na feliz expressão de Cesário Verde.

Tive com Amália três encontros. Apesar de fortuítos, ainda hoje os recordo como três baptismos de fado.

Nunca o S. João do Largo do Castelo foi tão animado como em 1947. Amália, a filmar em Coimbra as Capas Negras, apareceu por lá e meteu-se na roda. Quando um calmeirão do alto do palanque, armado no centro, comandou todos ao meio de mãos dadas, a minha mão direita encontrou-se com a mão esquerda de Amália. Ainda a Amália não era a Amália que deveria ser, mas aquele minuto, de mão na sua mão, ainda hoje o sinto como página marcada no meu álbum de vaidades.

A República do Rás Teparta era logo ali, na Rua dos Estudos. Amália, com o seu grupo das filmagens e nós, os mais chegados da república, fomos lá acabar a noite. O riso, o fado e o vinho jorraram de mãos dadas e nunca uma rainha foi tão rainha.

O segundo encontro foi nas festas de Santa Eulália em 1951. Era eu oficial em Elvas, no Batalhão de Caçadores 8. Nós, os nossos camaradas de Lanceiros 1 e meio Alentejo em redor acorremos às festas para ouvir Amália, de nome já a cantar nos cartazes, há muitos dias. Talvez por sobressaírem mais os nossos aplausos e apartes, Amália veio no fim da actuação à nossa mesa passar uns minutos. Como não se usava o beijinho, houve mãozadas e frases de circunstância.

O último encontro com Amália foi no Hospital da Régua, não sei precisar há quantos anos. Cerca de trinta... Mal soube do acidente do marido na estrada do Pinhão, Amália apareceu num pé-de-vento. Com mil perguntas nos olhos me interpelou num corredor. A sua mão nervosa mal se demorou na minha.

Quando Amália nos deixou, voltei a sentir a capa, a farda e a bata para lhe dizer adeus.
- Camilo de Araújo Correia, 23Mar2000 - Cedido gentilmente por J A Almeida, Set2009.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Na Régua: Amália Rodrigues não esqueceu os bombeiros

(Clique na imagem para ampliar)

Sábado, 23 de Julho de 1966, 23.30 horas: Amália Rodrigues (1920-1999), no auge da sua carreira, esteve no palco do Cine-Teatro Avenida, no Peso da Régua, a actuar num espectáculo de beneficência a favor da Santa Casa da Misericórdia e da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários, numa sala repleta de pessoas, fãs da grande artista, para quem interpretou os seus grandes fados e cantigas do folclore português, como o "Vou dar de beber à dor" e o "Barco negro", recebendo longos aplausos.

A grande rainha do fado veio cantar à Régua para mostrar o seu agradecimento aos bombeiros que, tempos antes, haviam prestado socorro ao seu marido, ferido num grave acidente de viação. O convite à fadista partiu da direcção dos bombeiros, na pessoa do Sr. Noel de Magalhães, a um amigo íntimo da artista, Francisco dos Santos Lopes (padrinho do casamento), que residia numa quinta no Douro, em S. João da Pesqueira, o qual estabeleceu os contactos e tratou da sua viagem e estadia.

A primeira parte deste inédito espectáculo, apresentado pelo locutor Carlos Ruela, da desaparecida Rádio Alto-Douro (1952), com estúdios na Régua, teve a magnifica participação do conjunto reguense “Revelações”, orientado pelo prof. José Armindo, que estava na berlinda e fazia grande sucesso no público.

Podemos ainda recordar, segundo a notícia do jornal “Vida por Vida”, que Amália “foi recebida com grandes honras e finalmente obsequiada com uma ceia volante no Salão Nobre da Corporação, em todos os momentos irradiou simpatia”, o que se testemunha pelas fotografias inéditas que divulgamos. Por essa notícia, ficamos mais a saber que “pela palavra fluente do Sr. Joaquim Augusto Rodrigues, Amália Rodrigues ouviu um justo e sincero agradecimento das duas instituições contempladas, que possibilitou a arrecadação de mais de doze mil escudos”.
A realização desses eventos musicais e outros de natureza artística era uma boa maneira de os bombeiros da Régua angariarem fundos que escasseavam para gastos de funcionamento. Havia até já uma tradição de promoverem espectáculos musicais, de teatro e de organizarem um elegante “Baile das Vindimas”, que em 1961 foi preparado por uma comissão de pessoas ilustres, como as conhecidas Dra. Raquel Janeiro e Dra. Margarida Quinas Guerra.

Nas décadas dos anos 50 a 70 anos, em especial, os bombeiros da Régua conseguiram envolver a sociedade reguense na participação de actividades de carácter recreativo e cultural. Com este dinamismo, a Associação manteve-se sempre ligada às pessoas, a quem procurava não só assegurar a nobre missão de socorro, mas possibilitar outras de carácter social. Desde o inicio da fundação, que o quartel dos bombeiros da Régua serviu como um lugar de convívio social e de animação colectiva. Nele, sabemos hoje, que muitas pessoas viram, pela primeira vez, televisão, o cinema, leram livros de grandes escritores, jogaram diversos jogos das épocas, assistiram a peças de teatro e, noutras ocasiões, fizeram as bodas dos seus casamentos e se divertiram nos famosos bailes de gala. O salão nobre, a biblioteca e o museu serviram para dinamizarem entre os associados a produção de actividades recreativas culturais que não se encontravam em mais colectividades.

Nos momentos de dificuldades, a população reguense acorria para ajudar os bombeiros nas suas cíclicas crises. Em tempos mais recuados, foram os próprios bombeiros da Régua, a organizaram no seu Corpo Activo, um grupo cénico para com a realização alguns espectáculos angariarem dinheiro que faltava para pagar as mais elementares despesas. Esse momento de fragilidade, esta revelado nas memórias do Chefe António Guedes, publicadas no jornal “O Arrais”, de 20 de Junho de 1978, onde nos evoca essas suas preciosas recordações:“No decorrer dos anos 1910-1920, a AHBVPR debatia-se com a maior crise financeira de que havia memória, a ponto de haver alguém, pertencente ao Corpo Activo, que teve a infeliz lembrança de alvitrar que a Corporação fechasse as portas do seu quartel e entregasse à Câmara todo o material nela existente, para que esta tratasse de organizar, se assim o entendesse, um Corpo de Bombeiros Municipais.

Contra esta idéia todos nós, bombeiros, nos insurgimos, tendo o Chefe Camilo Guedes Castelo Branco afirmado que este assunto erámos nós que o havíamos de resolver se queríamos salvar a Corporação do fim inglório que a esperava. No fim de cada mês havia que se pagar a renda de casa, a água, a luz, o ordenado do quarteleiro e as despesas de conservação do material. Com o produto das contas dos sócios contribuintes não se podia contar, pois estes em pouco excediam o número de quarenta, motivo porque José Afonso Oliveira Soares, Joaquim Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, José Guedes Leites, Luís Maria da Cunha Iharco, João da Silva Bonifácio, José Maria de Almeida e o autor destas linhas nos cotizávamos e, das nossas algibeiras, completávamos a importância para a liquidação das despesas mensais.

E o mais interessante é que, esse membro do Corpo Activo que sugeriu que se encerrassem as portas do nosso quartel, ao tempo situado no Largo dos Aviadores, nunca mais contribuiu.
Foi convocado o Corpo Activo e Camilo Guedes Castelo Branco escolheu, dentre os seus componentes, alguns deles, organizando um grupo cénico que foi constituído por ele, por Lourenço Medeiros, José Guedes Leite, João da Silva Bonifácio e eu próprio, com a coadjuvação dos sócios contribuintes José Joaquim Pereira Soares Santos, António da Silva Correia, Júlio Vilela, Luciano Tavares, Jaime Guedes, José Avelino e outros cujos nomes não me ocorrem. Como colaboradora tínhamos a actriz Alda Verdial, do Porto, filha do actor Miguel Verdial.

Começaram os ensaios, por vezes interrompidos para se fazer uma “taininha”, até que chegou o dia do primeiro espectáculo, com o drama ”Jocelim, pescador de baleias”. Casa à cunha e assistência selecta. No final da representação, que decorreu admiravelmente, foi um delírio de palmas e chamadas ao palco.

Em vista disso, ficou resolvido dar-se um espectáculo todos os meses, pois que os resultados obtidos com o primeiro superam todas as nossas previsões. Assim, não seria necessário esportularmo-nos mensalmente, como há muito vinha sucedendo. Foram-se pagando dívidas, e no nosso pobríssimo cofre, onde só existiam teias de aranha, começaram a juntar-se e a acumular-se os escudos (…).

O segundo espectáculo, com a peça “Condessa de Marcé”, constitui um novo sucesso, com a casa igualmente à cunha. O terceiro espectáculo, então com a peça “Coração e Dinheiro”, escrita e musicada pelo ilustre reguense José Joaquim Pereira Soares Santos (…) teve de ser repetido e rendeu-nos imenso dinheiro com o qual se pagaram as restantes dívidas e se adquiriu uma outra bomba braçal, cuja falta se fazia sentir e à qual se deu o nome de “Pátria”.

Este é mais exemplo de audácia dos bombeiros da Régua que, como actores amadores, fizeram que a sociedade reguense os ajudasse a vencer uma crise económica. Eles, nesse tempo, conseguiram com o seu esforço evitar que as portas do quartel se fechassem.

Com homens assim, pode dizer-se que uma associação e um corpo de bombeiros nem tem fim nem pode morrer, nunca. A sua riqueza é as pessoas que a servem de coração e os seus beneméritos que engrossam uma interminável lista de lições de generosidade.

Como o fez, em 1966, a grande Amália Rodrigues. Inesquecível este seu gesto de solidariedade, que merecerá um destaque maior nas páginas da história da Associação, já cheia de passado e sempre… cheia de futuro!
- Peso da Régua, Agosto de 2009, José Alfredo Almeida.

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