Camilo de Araújo Correia
A minha escola primária era na Rua das Vareiras, num prédio que veio a ser quartel da Guarda Republicana e hoje se encontra em franca degradação.
As salas tinham pouca luz, os corredores e as escadas eram escuras de meter medo aos menos afoitos. O recreio era na rua até à Meia Laranja sobranceira ao rio. Ainda hoje a algazarra que fazíamos, quando nos soltavam do velho casarão. Se o intervalo era maior, descíamos a rampa até ao cais, onde a faina do rio nos enchia de curiosidade. Chegavam carros de bois e camionetas com as pipas de vinho fino que os rabelos haviam de levar até ao Porto. Havia barqueiros a cozinhar e barqueiros a correr como levandiscas, no embarque e arrumo das pipas. Na veemência das ordens, cruzavam-se no ar tremendos palavrões. Aprendi-os antes da tabuada.
Guardo memória de quatro professores, arrumados dois a dois. De um lado, a D. Silvina, franzina, bonitinha e bondosa e o senhor Viseu, alto, magro e distraidíssimo. Também por ele não vinha mal ao mundo. Do outro, faziam parte o senhor Maduro Roxo e o Senhor Morais, pouco dado ao sorriso e muito ligeiro no uso da palmatória.
Fui aluno algum tempo da D. Silvina. Mudei depois para o senhor Morais. Foi uma mudança do céu para o inferno… D. Silvina raramente usava a palmatória e, quando lhe pegava, parecia sofrer mais que o aluno. Santa senhora!
Já o senhor Morais pegava na vara e na palmatória por dá cá aquela palha. Pois sim, mas saímos das suas mãos, prolongadas na vara e na palmatória, a saber tudo o que, naquele tempo, se exigia no exame da 4ª classe. Caligrafia, ortografia, aritmética, gramática, redacção, história, geografia, tudo na ponta da língua. Não que… a cada erro ou ignorância, correspondia uma palmatoada que tanto podia ser dada pelo professor como pelo companheiro que nos tivesse emendado.
Apesar de tão férrea disciplina nenhum aluno andava aterrorizado. Todos gostávamos muito do senhor Morais. Ele era tão bom professor que os castigos se aceitavam como naturais. Muitas vezes o íamos esperar pelo caminho da beira do rio, até à sua casinha onde morava no Olival Basto. A casinha lá está a lembrá-lo como se não tivesse passado tempo algum. Às vezes a lição começava no caminho. A lição e os cascudos…
Hoje, a palmatória, a vara e os cascudos estão proibidos por lei. Ai do professor que dê o mais leve tabefe no aluno mais indisciplinado e cabulão. Os pais aparecem logo na escola a protestar e a participar. Não há nada que salve o professor que apenas quis educar e ensinar por um método que vem do princípio do mundo a dar resultado.
Nota: Esta crónica foi publicada inicialmente no boletim “Alto Douro Cultural” e mais tarde no jornal “O Arrais”. O prédio citado "em degradação" pelo saudoso Dr. Camilo, está atualmente recuperado, como se nota na fotografia recente e acima de Miguel Guedes.
Sem comentários:
Enviar um comentário