*M. Nogueira Borges
Chegavam,
de manhã cedo, a apregoar, “Sardinha fresca!... É de Ovar!...”
-
De Ovar?... – perguntava-me intrigado.
-
Então a sardinha não chega do Porto?... – continuava eu na minha estranheza.
Vinham
em barricas, sem cabeça e sem vísceras, dispostas simetricamente, acamadinhas
entre sal. Comiam-se, assadas nas brasas da lareira ou fritas na sertã, com
batatas cozidas e nacos de broa, regadas com azeite poupado que, antigamente, as
pessoas não besuntavam os queixos e uma almotolia tinha que dar para muitas e
muitas refeições. Havia, até, quem as comesse cruas acompanhadas com uma cebola
cortadinha aos bocados e enfeitadas com sal. Quando ia à Régua, lá estavam
elas, bem à mostra, ali para a beira-rio, na Rua das Vareiras (há quem lhe
chame Custódio José Vieira), a serem regateados com o dinheiro escondido num nó
do lenço.
Lembrei-me
desta memória ao ler, recentemente,
um opúsculo do nosso escritor Camilo de Araújo Correia, intitulado NA ROTA DO
SAL, escrito para a primeira sessão oficial do processo de geminação das
cidades do Peso da Régua e de Ovar, ocorrida nos Paços do Concelho desta
cidade, em 25 de Julho de 1991.
Nestas
histórias de geminações são sempre mais abundantes as tradições orais do que a
documentação de arquivo (dispersa e muitas vezes omissa) a justificarem,
ancestralmente, a irmandade hodierna.
Camilo
de Araújo Correia perguntou, procurou, e fez contas: “Há cerca de duzentos anos que a Régua e Ovar andam de mãos dadas pois
se admite como cerca a fixação das primeiras colónias vareiras na Régua, logo a
seguir à construção dos armazéns da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas
do Alto Douro, em 1790”.
A
partir de então o futuro parece ter nascido com o plantio da vinha e o
disciplinar do comércio vinícola. À nossa terra, afluíram gentes de muitos
lugares, em demanda da melhoria económica, como se um eldorado de prosperidade
resplandecesse na margem direita do Rio defendia pelos contrafortes do Peso com
as suas casas senhoriais. Vieram muitos, mas, principalmente, vareiros e
galegos que saibraram montes abandonados aquando da filoxera, plantaram
americano, abriram lojas e tabernas, e transformaram a Régua num grande BALCÃO
onde se fizeram e desfizeram fortunas pesando os comestíveis e medindo o tinto.
Os
vareiros abandonaram as terras da beira-mar, trazendo, rio acima ou pelas estradas do Porto, o peixe e o sal que
não tínhamos. Chegaram para governar a vida e não lhes recusaremos a façanha da
aventura. Eram solidários, não se invejando nas vestimentas ou nos sorrisos de
satisfação pelos negócios bem conseguimos. A montes e vales (mais a montes do
que a vales), as quintas e casebres, as aldeias próximas ou remotas, levaram o
sal ou a sardinha, à cabeça ou aos ombros, em carros de bois ruminando
distâncias ou em jumentos resvalando nos pedregulhos. Alimentaram pobres e
ricos quando a carne era luxo e as jornas mal davam para a sonhar. Misturaram o
sangue com os autóctones e com os de além-Minho, criaram filhos e netos nesta
fogueira de Verão quando acaba a Primavera e neste Inverno de gelo quando os
vinhedos amarelecem e por cá andam nos nomes e nas caras com quem nos cruzamos
no dia-a-dia.
Nesta
hora de Festa, de amor e devoção à nossa Padroeira, é acto religioso lembrarmo-nos de quem nos ajudou a (re) criar o
chão, a fermentar o sangue e a moldar as consciências.
Sem
pretender adornar ou moralizar a saga duriense, lembremos, aos de hoje, os de
ontem, e recordemos que o IMORTAL Escritor do Douro - João de Araújo Correia - foi o único que
soube retratar e elevar à verdadeira dimensão do seu esforço a gesta heróica
deste povo: os de cá e os de fora que aqui se criaram e morreram libertando as
almas por estes MONTES PINTADOS.
Quem
desejar a abundância dos pormenores históricos que lhe leia O SEM MÉTODO e
PALAVRAS FORA DA BOCA. Lá estão os vareiros e os galegos (lá estamos nós todos)
na genuinidade rácica e na miscigenação sem adulterações.
- M. Nogueira Borges, Abril
1993, in Boletim da Festas de Nossa Senhora do Socorro.
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
- Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.