Os meus olhos são um rio ressequido,
Em cada Verão de mangas curtas,
Que se enche em cada Inverno de tristeza.
Os meus olhos são um grito,
Aflito,
Que entoa em cada casebre
Carcomido
De Pobreza.
Os meus olhos são um rio de muitos barcos
Que navegam como revoltas e enganos,
Rectas e curvas feitas gráficos
De dias,
De meses
E de anos.
Os meus olhos são um rio de margens
Desenhadas pelas sombras das saudades,
Feitas memórias de viagens,
Umas realizadas,
Outras sonhadas.
Os meus olhos são um rio de desilusão,
Sofrida,
Dorida,
Mas sempre com uma esperança
- Quimera perdida -
Igual à de uma criança
Que ainda desconhece a mentira.
Os meus olhos são um rio de cansaços,
Repleto de fastio e alguns embaraços.
Sós como os choupos do esquecimento,
Sós como os vinhedos em Dezembro.
Os meus olhos são um rio de pensamentos
Diferentes,
Contraditórios,
Violentos,
Mas suaves como na Primavera os rebentos.
Os meus olhos são um rio alteroso,
Conhecedor do seu nascer,
Certo do seu morrer,
Pejado de rochedos
E de medos;
Batido pelo sol ( de quando em vez ),
Um sol de bafo e de carinho,
Tão leve como a minha Mãe fez
Quando me abriu as portas do mundo
E disse: «Meu Menino...»
Com uma voz bem lá do fundo,
Um sorriso de amor e de calma
E um alívio na alma.
- De M. Nogueira Borges*
*Pode ler M. Nogueira Borges neste blogue e no blogue "ForEver PEMBA". Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 5.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Está sepultado em Cambres - Lamego. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Diário (de Lourenço Marques - Página de Cabo Delgado), Notícias (de Lourenço Marques), Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado dia 12 de Março de 2011 na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar. Atualização de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES.Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
João de Araújo Correia é o exemplo acabado do HOMEM
DURIENSE na universalidade da sua encarnação telúrica, tão rijo e tão digno
como os antepassados e os hodiernos que escreveram e escrevem com sangue, suor
e lágrimas a saga heróica duma Raça por estes montes e vales onde florescem os
vinhedos da nossa esperança. Nada lhe foi fácil, nada lhe veio ter às mãos sem
trabalho e muito sacrifício. Fez-se Médico, Escritor e Homem à custa de muita
luta, honra e dimensão moral.
Foi Médico depois de sofrer uma dolorosa interrupção a que
a doença o obrigou. Calcorriou caminhos desconhecidos para atender aflitos do
espírito e do corpo, criou nome e admiração dentro e fora das fronteiras do
País Vinhateiro, viu em muitos lares “a face da fome e da doença desvalidas de
pão e de farmácia” (1). Soube, como ninguém, que “a morte, em meios imbecis, é o
que foi a vida: um quadro baço, quieto, sem frémito de asa, sem gota de água,
sem nada” (2). Não andou de guarda-sol em cima de ginete cansado, em
descrição dionisiana, antes um clínico que tinha de saber de tudo para acudir a
qualquer dor em qualquer lugar, numa observação pronta que tanto usava a fala
pausada e conselheira como o silêncio sem azedume e tolerante. Um doente
era-lhe sempre um ser humano cuja sensibilidade se respeita, e aí, sim, foi
para todos um João Semana de coração aberto que aliou a frieza da ciência ao
afago da alma e à ternura do trato. Consultar João de Araújo Correia não era ir
buscar receita com montes de medicamentos mas ouvi-lo, contemplar a serenidade
daquele rosto, a benevolência daqueles olhos no ali, naquele corpo, havia uma
alma grande, mais do que um profissional, uma personalidade culta que sabia do
que falava e o que fazia e não esquecia o resto.
Como Escritor atingiu a plenitude no género cultivado. Um
conto seu é uma aprendizagem da anatomia espiritual nos mais insondáveis pormenores
da conflitualidade ou da paciência humanas. Um estudo sem fastio da nossa
gramática, do modo correcto e puro de escrever português sem cedências à
vulgaridade. A sua escrita é da textura do solo onde nasceu: fértil e
trabalhosa, numa busca persistente da perfeição, preocupada com as ressonâncias
da sintaxe, num belo exemplo de descrever as situações entusiasmando e educando
os seus leitores. É que ler João de Araújo Correia não é, apenas, o
acompanhamento da narração, mas também o ficar a saber como se escreve.
O nosso Escritor é um clássico onde se congregam anamneses românticas e sublimidades
realistas numa constante preocupação ontológica.
Como cronista e conferencista cativou leitores de Diários
prestigiados e plateias admiradas de salões alcatifados ou de soalho tosco.
Todos aprenderam a experimentar a vida de quem dela falava com a sabedoria de a
ter observado, tranquilo e perspicaz, na solidão do seu miradouro ou no
convívio de algumas tertúlias esparsas e muito nos catres da miséria ou nos berços
doirados onde a doença indistantemente o reclamava. As suas conferências são
lições de literatura e de mundo. Usa as citações dos seus confrades sem
presunções culturais e fala-nos deles com a naturalidade de quem conhece as
suas vidas. A sua elevação linguística é tão bela e quente, simultaneamente
calma e firme, que surpreende como é possível, numa frase, transmitir-se a
ironia dum olhar ou a temática dum cronista supremo que pegando no mais singelo
pretexto consegue a totalidade do desenvolvimento, carreando minúcias e
aduzindo razões que ao comum dos mortais não lembravam.
João de Araújo Correia foi um HOMEM que não escapou ao
desígnio histórico. Lidou com a morte desde que se conheceu, a ponto de “conversar com ela de mão em mão” (3) por
reflexo no seu próprio sofrimento e no alheio. Não foi rico de bens materiais
antes um rico homem que se guindou pelo seu pulso e adquiriu uma enorme fortuna
que todos devíamos procurar: uma postura ética e moral acima das conjunturas
dos tempos e dos procedimentos sociais. Deixou uma inesgotável herança: um
exemplo irrepreensível de honra e de dignidade que nem todos somos capazes até
de plagiar.
Ajudou quem merecia e não merecia, mas sempre quem e quando
precisava. Sabia que há um tempo para tudo: para o carinho e para o ralho, para
a negativa e para o assentimento, para o estímulo e para a supressão. Não
cultivou a demagogia nem a excentricidade, não bajulou poderosos nem fingiu
perante os humildes. Soube ser solidário para com os sulcos do seu suor.
Nesta hora, de Festas em honra de Nossa Senhora do Socorro,
aqui fica a minha contribuição para o seu livro-programa que a respectica
Comissão generosamente me solicitou e a que, probo e agradecido, correspondo.
Tamanha prerrogativa tinha que ser paga com seriedade e
sinceridade.
Como João de Araújo Correia dizia: “O ESPELHO DE UM HOMEM
FOI (É) SEMPRE O SEU CORAÇÃO.”
(1)(2) (3) – in palavras fora da
boca. - *Manuel Coutinho Nogueira Borges, escritor e poeta do Douro-Portugal, nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943 e faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte.
Clique nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012 em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES e assinalando o III Fórum sobre o escritor e médico João de Araújo Correia. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia do Dr. José Alfredo Almeida. Duas imagens fotográficas sobre monumento a João de Araújo Correia na cidade de Peso da Régua de autoria do Dr. José Alfredo Almeida. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
Naquele tempo podia-se sonhar. O sonho era a
ingenuidade de criança, poesia de um quotidiano que não se esgotava nem se
rejeitava nele. Os limites eram imprecisos por desconhecidos ou não sentidos.
Os sorrisos das pessoas “pareciam” sinceros e honestos. Não via neles nem
ambição, nem inveja, nem ódio. Até os que zaragateavam nas tardes de domingo
não se me antipatizavam como se tudo fizesse parte da naturalidade da vida. Aqueles
de quem um dia me separava não os
inimizava nem disso necessitava. O que hoje se apresenta como sentimentalismo
fácil, daquele tempo nascia sem segundas intenções e espontâneo.
O Verão era a época desejada do ciclo” estacional”. Os
vinhedos tinham a cor da alegria e da esperança; ornamentados de verde e os
bagos “pintavam-se” prenhes e fecundos. A minha terra tinha a beleza duma
gestação sem dor. O céu assemelhava-se a uma gigantesca “ clarabóia” sob a qual
se poderia dormir iluminado pelas estrelas e acordar, ao outro dia, com o sol
acariciando-nos. Mas os homens da minha aldeia também arrastavam as grilhetas
da angústia e traziam nos olhos a perturbação dum fatalismo irremediável. Eles
viviam uns para os outros. Tivessem, ou não, terra esta era o fruto de que se
alimentavam. Uns com mais, outros com menos ou com nada, eu dizia várias vezes
que tinham de ser mais iguais e havia quem se espantasse. Os homens não eram
maus, a realidade do ser levava-os, porventura, à repulsa do visionado.
Naquele tempo o viver não se projectava no cálculo
geométrico dos gestos e a saudade era o desejo de estar onde não se estava… As
palavras proibidas haviam-se fixado nos tempos de escola com os dois “retratos”
lá no fundo a ladearem a grande lousa preta, onde os algarismos se escreviam
debaixo da “vigilância” daqueles quatro olhos que nos infundiam o respeito das
coisas intocáveis. Eles eram os “chefes”, os todo poderosos, perante quem o
mais ligeiro altear da voz se tornava criminoso. E, no fim da tabuada e da
redacção, a merenda, das uvas com broa, tinha um dobrado sabor. Então, estrada
fora, sacola às costas, em juvenil algazarra, nos libertávamos sem sabermos de
quê, jogando ao “ agarra”, pontapeando a bola ou correndo com o arco. E o sino
da Igreja, sinalizando as Avés-Marias, quedava-nos por instantes, olhando os
adultos que se “descobriram”.
Naquele tempo eu ia ao monte da minha terra, sentindo
prazer no suor que a íngreme subida provocava, picando-me, aqui e além, nas
tapagens de silvas, tentando descobrir ninhos no alto das oliveiras,
estimulando com uma palha a saída dos grilos das suas loras, imitando com a
ajuda das mãos o cantar das perdizes como via fazer aos caçadores...E lá no
alto, bem no cimo das fragas, entretinha-me a escutar o eco dos meus brados –
notas de satisfação duma forte impressão de liberdade. Sentado, via o Douro lá
no fundo, superfície silenciosa de toda uma façanha de barqueiros,
descobridores do caminho fluvial para a foz. Porque haveria homens assim? Fazendo
trabalho tão duro com simplicidade quase complacente? E porque eram “eles” e
não outros? O que determinava, afinal, a condição das pessoas? Seria a “sorte”
uma aquisição irrevogável do nascer? Ou uma imagem de cada ser humano um modelo
único sem hipótese de alteração? Homens havia que davam tudo e acabavam no
esquecimento, que entregavam as energias da sua vitalidade à construção dum amanhã
de crescimento e se viam de repente, com a brutalidade dum imprevisto estúpido
transformados em anátemas. Mas as perguntas passavam, como a brisa por entre
eucaliptos, para um posterior regresso interrogativo que nada conseguia evitar.
Naquele tempo, ainda muitos dormiam a sesta breve dum
Verão encalorado que antecedia as vindimas, íamos de passo apressado para o
adro da Capela romper os sapatos (os que os tinham) em jogos de futebol de
mudar aos seis e acabar aos doze…Eram tardes de pó e suor, de ralhos e de
“juras”, de nos “esfarrapar” para vencer aqueles Portos-Benficas da rapaziada
da minha aldeia. Eram tardes de sol a pino e de correrias sem doseamento com
ligeiras tréguas para deixarmos passar as mulheres que, de bacias à cabeça,
regressavam do rio com a roupa lavada ou para ouvir as advertências do “guardador”, não fosse o entusiasmo dum pontapé mais forte levar a bola à vinha
e esborrachar um cacho…
Era já com o sol a morrer e as mães em casa preparando
as “contas”, que voltávamos, molhados e satisfeitos, discutindo os golos
perdidos e combinando a desforra. A noite iria ser o interlúdio dum amanhã
novo.
- *M. Nogueira Borges in Noticias do Douro de 21 de Junho de 1975
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição e imagem de Manuel Coutinho Nogueira Borges de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro.É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
Chegavam,
de manhã cedo, a apregoar, “Sardinha fresca!... É de Ovar!...”
-
De Ovar?... – perguntava-me intrigado.
-
Então a sardinha não chega do Porto?... – continuava eu na minha estranheza.
Vinham
em barricas, sem cabeça e sem vísceras, dispostas simetricamente, acamadinhas
entre sal. Comiam-se, assadas nas brasas da lareira ou fritas na sertã, com
batatas cozidas e nacos de broa, regadas com azeite poupado que, antigamente, as
pessoas não besuntavam os queixos e uma almotolia tinha que dar para muitas e
muitas refeições. Havia, até, quem as comesse cruas acompanhadas com uma cebola
cortadinha aos bocados e enfeitadas com sal. Quando ia à Régua, lá estavam
elas, bem à mostra, ali para a beira-rio, na Rua das Vareiras (há quem lhe
chame Custódio José Vieira), a serem regateados com o dinheiro escondido num nó
do lenço.
Lembrei-me
desta memória ao ler, recentemente,
um opúsculo do nosso escritor Camilo de Araújo Correia, intitulado NA ROTA DO
SAL, escrito para a primeira sessão oficial do processo de geminação das
cidades do Peso da Régua e de Ovar, ocorrida nos Paços do Concelho desta
cidade, em 25 de Julho de 1991.
Nestas
histórias de geminações são sempre mais abundantes as tradições orais do que a
documentação de arquivo (dispersa e muitas vezes omissa) a justificarem,
ancestralmente, a irmandade hodierna.
Camilo
de Araújo Correia perguntou, procurou, e fez contas: “Há cerca de duzentos anos que a Régua e Ovar andam de mãos dadas pois
se admite como cerca a fixação das primeiras colónias vareiras na Régua, logo a
seguir à construção dos armazéns da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas
do Alto Douro, em 1790”.
A
partir de então o futuro parece ter nascido com o plantio da vinha e o
disciplinar do comércio vinícola. À nossa terra, afluíram gentes de muitos
lugares, em demanda da melhoria económica, como se um eldorado de prosperidade
resplandecesse na margem direita do Rio defendia pelos contrafortes do Peso com
as suas casas senhoriais. Vieram muitos, mas, principalmente, vareiros e
galegos que saibraram montes abandonados aquando da filoxera, plantaram
americano, abriram lojas e tabernas, e transformaram a Régua num grande BALCÃO
onde se fizeram e desfizeram fortunas pesando os comestíveis e medindo o tinto.
Os
vareiros abandonaram as terras da beira-mar, trazendo, rio acima ou pelas estradas do Porto, o peixe e o sal que
não tínhamos. Chegaram para governar a vida e não lhes recusaremos a façanha da
aventura. Eram solidários, não se invejando nas vestimentas ou nos sorrisos de
satisfação pelos negócios bem conseguimos. A montes e vales (mais a montes do
que a vales), as quintas e casebres, as aldeias próximas ou remotas, levaram o
sal ou a sardinha, à cabeça ou aos ombros, em carros de bois ruminando
distâncias ou em jumentos resvalando nos pedregulhos. Alimentaram pobres e
ricos quando a carne era luxo e as jornas mal davam para a sonhar. Misturaram o
sangue com os autóctones e com os de além-Minho, criaram filhos e netos nesta
fogueira de Verão quando acaba a Primavera e neste Inverno de gelo quando os
vinhedos amarelecem e por cá andam nos nomes e nas caras com quem nos cruzamos
no dia-a-dia.
Nesta
hora de Festa, de amor e devoção à nossa Padroeira, é acto religioso lembrarmo-nos de quem nos ajudou a (re) criar o
chão, a fermentar o sangue e a moldar as consciências.
Sem
pretender adornar ou moralizar a saga duriense, lembremos, aos de hoje, os de
ontem, e recordemos que o IMORTAL Escritor do Douro - João de Araújo Correia - foi o único que
soube retratar e elevar à verdadeira dimensão do seu esforço a gesta heróica
deste povo: os de cá e os de fora que aqui se criaram e morreram libertando as
almas por estes MONTES PINTADOS.
Quem
desejar a abundância dos pormenores históricos que lhe leia O SEM MÉTODO e
PALAVRAS FORA DA BOCA. Lá estão os vareiros e os galegos (lá estamos nós todos)
na genuinidade rácica e na miscigenação sem adulterações.
- M. Nogueira Borges, Abril
1993, in Boletim da Festas de Nossa Senhora do Socorro.
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro.É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
Crónica sobre duas pessoas que marcaram nossas vidas. Lembrando-os sentimos que estão (e estarão) sempre presentes!
Em Memória de Jaime Ferraz Gabão -Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.(Atualização)
Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.
Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.
O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.
O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.
Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.
África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.
Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.
Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.
Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.
O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).
* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
RECORDANDO... Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro
Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.
Clique nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem a meu saudoso Pai JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO e ao estimado Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia do Dr. José Alfredo Almeida, também Amigo prezado destas personalidades da Régua e do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
Era em Agosto com as águas deslizando para as hortas, os vinhedos repletos de verde e de doçura, os homens de coletes a tiracolo e sacholas pelos ombros, as mulheres mastigando broa e encolhendo ciúmes, as crianças a jogarem às escondidinhas no adro da capela e nas curvas dos quelhos, os cães e os gatos a barafustarem nos terreiros do casario perseguindo galinhas e garnizés, o bêbedo de sempre arrancado à taberna pelo filho desgostoso ou pela mulher já habituada.
A tarde acabava assim, com o sol a morrer devagarinho por detrás das montanhas, uma fresca macia alegrando as almas, os velhinhos do Asilo a derreterem minutos para a ceia e o médico a abandonar a Casa do Povo.
A menina senta-se ao piano e os seus dedos brancos deslizavam suavemente pelo teclado.
As Rosas da Despida desfolhavam-se em emoções e os sons espalhavam-se pelos corredores e escapuliam-se, serenamente, pelas janelas abertas, flutuando no silêncio da noite como fantasias de crianças. Ecoavam além, nos contrafortes dos montes ou no fundo do vale a quem os antigos chamavam poço do vinho.
Era Agosto e as festas do Socorro anunciavam-se. As ornamentações engalanavam as ruas, os carrinhos e os carrocéis enchiam a Alameda e as iluminações não deixavam sombras para namorar. Quando as lâmpadas desenhavam o campanário da Igreja do Peso muitos olhos se desviavam lá para cima a ver se os Remédios já cintilavam.
Era um tempo em que a perseverança não se excepcionava e a terra cavada com suor dum esforço ancestral tinha uma história feita de lendas e as gentes sonhos sem fim onde se recriavam a habitualidade, se espevitavam futuros, se diversificavam motivações e se engrandeciam espaços.
As Festas do Socorro eram um compasso de espera na roda do tempo e do trabalho, estreias de fatos e vestidos, arranjos de cabelo nos salões da Vila que a Régua ainda não era cidade de nome.
Era a romaria dos desenraizados do litoral em retorno aos almoços de cabrito assado e arroz de forno nas mesas familiares. As estradas enchiam-se de carros e de excursões, os comboios fumegavam na Estação, um mar de gente inundava a princesa do Douro e todos eram conhecidos.
Havia crianças ao carrachol e idosos amparados a bengalas, cantadores de chulas, tocadores de realejos, bombos, ferrinhos e concertinas. Dançava-se no meio das ruas e em todos os cantos onde o pó escondia feições.
Os rapazes sopravam em cornetas de barro, mercavam-se panos, mantas e potes para a vindima, voavam ilusões sobre o murmúrio humano, as gargalhadas estrondeavam, avinhadas, nos tascos e cafés, à mistura com o tilintar dos copos, e as tristezas estavam trancadas nas casas vazias das aldeias em redor.
Era em Agosto e, quando a Senhora do Socorro se passava, no andor florido, por entre alas de bombeiros e anjinhos, a multidão esquecia a profanidade e ajoelhava-se em silêncio de Fé encomendando promessas, gemendo aflições e cantando alegrias. A Senhora a todos sorria numa magnanimidade de ternura e perdão que marejava os olhares dum povo cheio de memórias de sacrifício glosadas por poetas e prosadores.
Era Agosto e as uvas amadureciam à espera dos cestos…
- In Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro.
*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidas pelo Dr. José Alfredo Almeida. Fotos de Miguel Guedes. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro.É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
João
de Araújo Correia é, definitivamente, um vulto saliente do neo-realismo
português que faz, quanto a mim, a perfeita justaposição entre o naturalismo
concreto e um superior regionalismo que ultrapassa os limites do espaço onde a
sua obra se realiza. É visível a ligação ficcionista do meio rural ao urbano
através da sua actividade de cronista e palestrante nos ambientes citadinos e
também (ou acima de tudo), nos seus contos, onde a aristocracia em decadência
de regime e a ascendente burguesia se degladiam, surdamente, na expectativa dos
melhores bocados, saltitando entre a terra produtiva e a urbe gastadora em azáfama
de fim de ciclo.
É
na sua matriz regionalista que, todavia, João de Araújo Correia atinge a
pujança determinante do seu carisma. António José Saraiva e Óscar Lopes, na sua “História da Literatura Portuguesa”,
distinguem-no: “(…) assimila à mais correntia
e elegante prosa a fala oral dos seus aldeãos, e tornou-se capaz como poucos de
organizar a narrativa de modo a dispensar a mínima nota judicativa extrínseca à
acção, convertendo muitas vezes o próprio narrador rural da primeira pessoa em personagem
bem caracterizada e que se mexe à nossa vista.”
A
sua obra contém uma marca que sempre me impressionou: um elevado sentido ético,
um enorme respeito para consigo e para com os outros; a preocupação de não
inventar o verbalismo normalmente associado à incapacidade de (re) criar o
enredo; o esforço pelo apuro linguístico e pela verdade da tradição do seu
povo. A sua obra é o espelho da simbiose por muitos tentada e não conseguida: a
identificação entre o Escritor e o Homem da (con) textura literária e da
insígnia cívica. Não há fingimento ou disfarce entre a escrita e o ser que a
expressa, aquela dualidade que, muitas vezes, acontece entre a áurea literária
e a pequenez humana, entre as tiradas de fraternidade e a frieza e o egoísmo do
nome que titula os livros.
Há
quem, ao debruçar-se sobre a obra de um Autor (na globalidade da sua
estrutura), se preocupe em decifrar ao milésimo os fonemas das palavras, os
pormenores da pontuação, a concordância gramatical, a originalidade de coisas
novas ou a novidade perante coisas velhas, o ritmo da composição, o estilo que
é o cunho do escritor, a intimidade psicológica da sua definição, a distinção
entre a forma e o fundo, a beleza estética entre a moldura e o conteúdo que
naquela se delimita. João de Araújo Correia não foge a nenhuma exigência,
suporta todas as equivalências e dimensiona-se em todas as características críticas.
Aqueles
que o apelidam de escritor exclusivamente ruralista pecam por imprudência e
precipitam-se na apreciação redutora. O ruralismo não é - bem se sabe- qualidade
que calhe a todos. Dir-se-ia, até, raridade que só a pente fino se apanha. Numa
sociedade enlatada, plastificada, computorizada e robotizada, escrever-se com e
pelo povo é literatura que muitos depreciam por inabitualidade cultural ou
presunção elitista. Mas não só hoje. Ontem, um ontem onde muitos românticos se
excepcionam, a ficção rural surgiu como uma tipocromia que a muitos pareceu uma
revelação pitoresca de uma criação restrita a uma determinada extensão
geográfica.
João
Araújo Correia rompeu essa esfera local, transportando, para além dos Montes, a
saga duriense num eco de genética universalidade. Foi porta-voz e protagonista
dos sacrifícios de uma raça que ergueu com sangue, suor e lágrimas a mais bela
arquitectura geodésica; ilustrou para o mundo que sabe pensar e amar as
grandezas ou as misérias (que também as há em qualquer nobreza) de gentes heróicas
ou velhacas, joviais ou taciturnas, francas ou mangadoras, decadentes ou
evolutivas, directas ou evasivas, supersticiosas ou desembaraçadas – retrato de
qualquer povo em qualquer atlas actual ou passado.
João
Araújo Correia escreveu não para ter nome, mas para o dar aos outros, para dar
voz a quem não a tinha. Esticou as horas num desinteressado esforço para que as
cinzas nos nossos lares nunca se apagassem; para que, em nenhuma parte do
mundo, ninguém roubasse a gesta da nossa experiência e as gerações soubessem
(saibam) que o sofrimento aqui não é diferente do de qualquer sítio onde não
morre o lume da esperança que nos ilumina.
João
de Araújo Correia recusou, por feitio e formação, a propaganda das ideologias
culturais que alcandoram os apaniguados a símbolos da consciência nacional;
afastou-se, por visceral repulsa, de todas as franjas onde se misturam o
sofisma da (in) dependência com a mistificação da (im) parcialidade; não foi
atracção de luxo em palcos de concentrações de massas, nem deixou que a sua
palavra servisse de bandeira para fins diferentes do da Arte: a comunhão entre
os homens no respeito pela diversidade.
Nasceu
e morreu no chão que o modelou, resistiu à tentação das entronizações, ficou no
seu canto sabedor de que, depois da passagem física do ser, é sempre a
eternidade da sua memória criativa que resta. Voou longe como uma ave sem
gaiola; pousou nas árvores da sua paixão e revoltou-se contra quem as cortou;
conheceu os beirais da sua terra porque peregrinou pelos miradouros do sonho;
ouviu, nos catres da doença, os gemidos anunciadores da morte e por isso
exaltou a vida sem deslealdades.
Nota: Este excelente texto de análise sobre o carácter humano e a obra “universal” do escritor reguense escrito por M. Nogueira Borges, foi publicado no jornal "O Arrais", do Peso da Régua, em 13 de Julho de 1995.
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de texto e imagem feita pelo Dr. José Alfredo Almeida (Jasa). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 em homenagem de saudade ao Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES.Permitida a copia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue só com a citação da origem/autores/créditos.
Comunicado: O corpo de MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES será transferido do Cemitério de Mafamude (Concelho de Vila Nova de Gaia) para o de Cambres (Concelho de Lamego) dia 26 de Julho, quinta-feira.
A quem desejar estar presente:
Partida de Mafamude pelas 14h30
Chegada a Cambres pelas 16h00
Trajecto de Mafamude (Concelho de Vila Nova de Gaia) para Cambres (Concelho de Lamego) via Google Mapas
De MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES:
Acreditem-me ou não, o que escrevi SINTO-O. Sabes, a vida é feita por NÓS, "OS SIMPLES", OS QUE ANDAM AQUI COM UMA LUZ NO CORAÇÃO. SÓ TEMOS QUE FAZER UMA "COISA": AGRADECER A QUEM NOS DEU ESSA FELICIDADE!
Escrito por Manuel Coutinho Nogueira Borges em 7 de Fevereiro de 2012
Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012 e em homenagem de saudade ao Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES.
Clique na imagem acima para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é retirado de parte de missiva dirigida a JASA. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
Verde tão verde e as árvores no fundo. No fundo os rápidos que de água se quebravam subindo à sirga em de rabelos barcos. Mas baixas as alturas se reflectem calmas de rochas casas e arvoredo fundo.
Verde tão verde o rio se não corre de lago é preso e um barco noutra margem parado se contempla a esbelta proa arqueada sobre o telhado inverso do solar antigo. Se brisa matinal se encrespa de água e morre.
Verde tão verde era de espuma e rocas polindo-se tranquilas no fiar das águas. Vinham descendo os montes em socalcos que lambidos se inseriam no passar dos barcos. No fundo como nuvens se enverdecem rocas.
Verde tão verde era de rijas águas de espumas e de pedras e de alteadas margens. Tão verde ora de névoa surda em que de gritos não barqueiros remam. Que rio se era escuro e já de verdes águas.
Parado e sempiterno e velho de águas rio não passas repassando as águas de outro tempo, verde tão verde na manhã parada.
- Jorge de Sena, Antologia Poética, 2ª ed., Porto, Ed. Asa, 2001, pág. 187. Jorge Cândido de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978) foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português.
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão do poema de Jorge de Sena feita pelo saudoso Manuel Coutinho Nogueira Borges e Dr. José Alfredo Almeida (Jasa). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2012. Permitida a copia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue só com a citação da origem/autores/créditos.
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