Em tempo do III Fórum João de Araújo Correia que se realiza a 20 de Outubro no Museu do Douro:
Por: M. Nogueira Borges*
João de Araújo Correia é o exemplo acabado do HOMEM
DURIENSE na universalidade da sua encarnação telúrica, tão rijo e tão digno
como os antepassados e os hodiernos que escreveram e escrevem com sangue, suor
e lágrimas a saga heróica duma Raça por estes montes e vales onde florescem os
vinhedos da nossa esperança. Nada lhe foi fácil, nada lhe veio ter às mãos sem
trabalho e muito sacrifício. Fez-se Médico, Escritor e Homem à custa de muita
luta, honra e dimensão moral.
Foi Médico depois de sofrer uma dolorosa interrupção a que
a doença o obrigou. Calcorriou caminhos desconhecidos para atender aflitos do
espírito e do corpo, criou nome e admiração dentro e fora das fronteiras do
País Vinhateiro, viu em muitos lares “a face da fome e da doença desvalidas de
pão e de farmácia” (1). Soube, como ninguém, que “a morte, em meios imbecis, é o
que foi a vida: um quadro baço, quieto, sem frémito de asa, sem gota de água,
sem nada” (2). Não andou de guarda-sol em cima de ginete cansado, em
descrição dionisiana, antes um clínico que tinha de saber de tudo para acudir a
qualquer dor em qualquer lugar, numa observação pronta que tanto usava a fala
pausada e conselheira como o silêncio sem azedume e tolerante. Um doente
era-lhe sempre um ser humano cuja sensibilidade se respeita, e aí, sim, foi
para todos um João Semana de coração aberto que aliou a frieza da ciência ao
afago da alma e à ternura do trato. Consultar João de Araújo Correia não era ir
buscar receita com montes de medicamentos mas ouvi-lo, contemplar a serenidade
daquele rosto, a benevolência daqueles olhos no ali, naquele corpo, havia uma
alma grande, mais do que um profissional, uma personalidade culta que sabia do
que falava e o que fazia e não esquecia o resto.
Como Escritor atingiu a plenitude no género cultivado. Um
conto seu é uma aprendizagem da anatomia espiritual nos mais insondáveis pormenores
da conflitualidade ou da paciência humanas. Um estudo sem fastio da nossa
gramática, do modo correcto e puro de escrever português sem cedências à
vulgaridade. A sua escrita é da textura do solo onde nasceu: fértil e
trabalhosa, numa busca persistente da perfeição, preocupada com as ressonâncias
da sintaxe, num belo exemplo de descrever as situações entusiasmando e educando
os seus leitores. É que ler João de Araújo Correia não é, apenas, o
acompanhamento da narração, mas também o ficar a saber como se escreve.
O nosso Escritor é um clássico onde se congregam anamneses românticas e sublimidades
realistas numa constante preocupação ontológica.
Como cronista e conferencista cativou leitores de Diários
prestigiados e plateias admiradas de salões alcatifados ou de soalho tosco.
Todos aprenderam a experimentar a vida de quem dela falava com a sabedoria de a
ter observado, tranquilo e perspicaz, na solidão do seu miradouro ou no
convívio de algumas tertúlias esparsas e muito nos catres da miséria ou nos berços
doirados onde a doença indistantemente o reclamava. As suas conferências são
lições de literatura e de mundo. Usa as citações dos seus confrades sem
presunções culturais e fala-nos deles com a naturalidade de quem conhece as
suas vidas. A sua elevação linguística é tão bela e quente, simultaneamente
calma e firme, que surpreende como é possível, numa frase, transmitir-se a
ironia dum olhar ou a temática dum cronista supremo que pegando no mais singelo
pretexto consegue a totalidade do desenvolvimento, carreando minúcias e
aduzindo razões que ao comum dos mortais não lembravam.
João de Araújo Correia foi um HOMEM que não escapou ao
desígnio histórico. Lidou com a morte desde que se conheceu, a ponto de “conversar com ela de mão em mão” (3) por
reflexo no seu próprio sofrimento e no alheio. Não foi rico de bens materiais
antes um rico homem que se guindou pelo seu pulso e adquiriu uma enorme fortuna
que todos devíamos procurar: uma postura ética e moral acima das conjunturas
dos tempos e dos procedimentos sociais. Deixou uma inesgotável herança: um
exemplo irrepreensível de honra e de dignidade que nem todos somos capazes até
de plagiar.
Ajudou quem merecia e não merecia, mas sempre quem e quando
precisava. Sabia que há um tempo para tudo: para o carinho e para o ralho, para
a negativa e para o assentimento, para o estímulo e para a supressão. Não
cultivou a demagogia nem a excentricidade, não bajulou poderosos nem fingiu
perante os humildes. Soube ser solidário para com os sulcos do seu suor.
Nesta hora, de Festas em honra de Nossa Senhora do Socorro,
aqui fica a minha contribuição para o seu livro-programa que a respectica
Comissão generosamente me solicitou e a que, probo e agradecido, correspondo.
Tamanha prerrogativa tinha que ser paga com seriedade e
sinceridade.
Como João de Araújo Correia dizia: “O ESPELHO DE UM HOMEM
FOI (É) SEMPRE O SEU CORAÇÃO.”
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