M. NOGUEIRA BORGES
João
de Araújo Correia é, definitivamente, um vulto saliente do neo-realismo
português que faz, quanto a mim, a perfeita justaposição entre o naturalismo
concreto e um superior regionalismo que ultrapassa os limites do espaço onde a
sua obra se realiza. É visível a ligação ficcionista do meio rural ao urbano
através da sua actividade de cronista e palestrante nos ambientes citadinos e
também (ou acima de tudo), nos seus contos, onde a aristocracia em decadência
de regime e a ascendente burguesia se degladiam, surdamente, na expectativa dos
melhores bocados, saltitando entre a terra produtiva e a urbe gastadora em azáfama
de fim de ciclo.
É
na sua matriz regionalista que, todavia, João de Araújo Correia atinge a
pujança determinante do seu carisma. António José Saraiva e Óscar Lopes, na sua “História da Literatura Portuguesa”,
distinguem-no: “(…) assimila à mais correntia
e elegante prosa a fala oral dos seus aldeãos, e tornou-se capaz como poucos de
organizar a narrativa de modo a dispensar a mínima nota judicativa extrínseca à
acção, convertendo muitas vezes o próprio narrador rural da primeira pessoa em personagem
bem caracterizada e que se mexe à nossa vista.”
A
sua obra contém uma marca que sempre me impressionou: um elevado sentido ético,
um enorme respeito para consigo e para com os outros; a preocupação de não
inventar o verbalismo normalmente associado à incapacidade de (re) criar o
enredo; o esforço pelo apuro linguístico e pela verdade da tradição do seu
povo. A sua obra é o espelho da simbiose por muitos tentada e não conseguida: a
identificação entre o Escritor e o Homem da (con) textura literária e da
insígnia cívica. Não há fingimento ou disfarce entre a escrita e o ser que a
expressa, aquela dualidade que, muitas vezes, acontece entre a áurea literária
e a pequenez humana, entre as tiradas de fraternidade e a frieza e o egoísmo do
nome que titula os livros.
Há
quem, ao debruçar-se sobre a obra de um Autor (na globalidade da sua
estrutura), se preocupe em decifrar ao milésimo os fonemas das palavras, os
pormenores da pontuação, a concordância gramatical, a originalidade de coisas
novas ou a novidade perante coisas velhas, o ritmo da composição, o estilo que
é o cunho do escritor, a intimidade psicológica da sua definição, a distinção
entre a forma e o fundo, a beleza estética entre a moldura e o conteúdo que
naquela se delimita. João de Araújo Correia não foge a nenhuma exigência,
suporta todas as equivalências e dimensiona-se em todas as características críticas.
Aqueles
que o apelidam de escritor exclusivamente ruralista pecam por imprudência e
precipitam-se na apreciação redutora. O ruralismo não é - bem se sabe- qualidade
que calhe a todos. Dir-se-ia, até, raridade que só a pente fino se apanha. Numa
sociedade enlatada, plastificada, computorizada e robotizada, escrever-se com e
pelo povo é literatura que muitos depreciam por inabitualidade cultural ou
presunção elitista. Mas não só hoje. Ontem, um ontem onde muitos românticos se
excepcionam, a ficção rural surgiu como uma tipocromia que a muitos pareceu uma
revelação pitoresca de uma criação restrita a uma determinada extensão
geográfica.
João
Araújo Correia rompeu essa esfera local, transportando, para além dos Montes, a
saga duriense num eco de genética universalidade. Foi porta-voz e protagonista
dos sacrifícios de uma raça que ergueu com sangue, suor e lágrimas a mais bela
arquitectura geodésica; ilustrou para o mundo que sabe pensar e amar as
grandezas ou as misérias (que também as há em qualquer nobreza) de gentes heróicas
ou velhacas, joviais ou taciturnas, francas ou mangadoras, decadentes ou
evolutivas, directas ou evasivas, supersticiosas ou desembaraçadas – retrato de
qualquer povo em qualquer atlas actual ou passado.
João
Araújo Correia escreveu não para ter nome, mas para o dar aos outros, para dar
voz a quem não a tinha. Esticou as horas num desinteressado esforço para que as
cinzas nos nossos lares nunca se apagassem; para que, em nenhuma parte do
mundo, ninguém roubasse a gesta da nossa experiência e as gerações soubessem
(saibam) que o sofrimento aqui não é diferente do de qualquer sítio onde não
morre o lume da esperança que nos ilumina.
João
de Araújo Correia recusou, por feitio e formação, a propaganda das ideologias
culturais que alcandoram os apaniguados a símbolos da consciência nacional;
afastou-se, por visceral repulsa, de todas as franjas onde se misturam o
sofisma da (in) dependência com a mistificação da (im) parcialidade; não foi
atracção de luxo em palcos de concentrações de massas, nem deixou que a sua
palavra servisse de bandeira para fins diferentes do da Arte: a comunhão entre
os homens no respeito pela diversidade.
Nasceu
e morreu no chão que o modelou, resistiu à tentação das entronizações, ficou no
seu canto sabedor de que, depois da passagem física do ser, é sempre a
eternidade da sua memória criativa que resta. Voou longe como uma ave sem
gaiola; pousou nas árvores da sua paixão e revoltou-se contra quem as cortou;
conheceu os beirais da sua terra porque peregrinou pelos miradouros do sonho;
ouviu, nos catres da doença, os gemidos anunciadores da morte e por isso
exaltou a vida sem deslealdades.
Nota: Este excelente texto de análise sobre o carácter humano e a obra “universal” do escritor reguense escrito por M. Nogueira Borges, foi publicado no jornal "O Arrais", do Peso da Régua, em 13 de Julho de 1995.
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de texto e imagem feita pelo Dr. José Alfredo Almeida (Jasa). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 em homenagem de saudade ao Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Permitida a copia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue só com a citação da origem/autores/créditos.
1 comentário:
Os seus livros estão muito bem cotados nos alfarrabistas. Um deles, Passos Perdidos, tenho-o procurado, para já em vão.
Estou a ler Horas Mortas. Uma delícia.
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