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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Colectânea literária e musical de ALTINO MOREIRA CARDOSO

Altino Moreira Cardoso nasceu em 8.12.1941, na freguesia de Loureiro, concelho de Peso da Régua. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Coimbra, em 1969.
A sua tese de licenciatura versou a obra de um poeta da PRESENÇA: Afonso Duarte.
Frequentou, ao mesmo tempo, como elemento da Tuna Académica e do Conjunto de Câmara Carlos Seixas, o Conservatório de Música de Coimbra, na especialidade de Violino. (...) Concluído o Curso de Ciências Pedagógicas (também na Fac. de Letras da U.C.), seguiu o Ensino Secundário, com Estágio e Exame de Estado no Liceu Normal de D. João III, em Coimbra (1972). Trabalhou em algumas escolas secundárias, entre as quais: Colégio de Porto de Mós, Liceu de Vila Real, Liceu da Amadora, Liceu de Queluz (efectivo 1973-2002).
Em complemento da actividade pedagógica tem elaborado e editado diversos trabalhos, de que se cita uma obra sobre estratégia de preparação de EXAMES (Amadora-Sintra,1996), adoptada no ensino universitário (Univ. Internacional). (...)

Outras obras:
A - Edição da Didáctica Editora:
FRANCE- CENTRES D'INTÉRÊT, 1973);
É autor de centenas de canções (algumas registadas na SPA), entre as quais músicas para: a Infância, os poetas portugueses, a História de Portugal, os Contos Populares, a MENSAGEM de Fernando Pessoa...
Alguns conjuntos (populares, corais e instrumentais), têm utilizado e gravado canções suas, nomeadamente o Regional Duriense, os Rabelos do Douro, a Tuna da Escola Sup. Agrária de Santarém, o Orfeão de Leiria. (...)
Como jornalista, colaborou na revista Música & Som (1976-1979) e, com funções directivas, na Tribuna de Queluz, no Jornal da Amadora e no Jornal de Queluz.
Fundou e dirigiu o Jornal AMADORA-SINTRA (1991-2003). Mantém as Edições AMADORA-SINTRA. (...)
- In DICIONÁRIO DOS MAIS ILUSTRES TRANSMONTANOS (adapt.) - J. Barroso da Fonte. In Folclore de Portugal. As Edições AMADORA-SINTRA têm publicado as suas obras mais recentes. Transcrito do portal da ASSOCIAÇÃO DOS ANTIGOS ALUNOS DO SEMINÁRIO DE VILA REAL.
Para contacto e aquisição das obras de Altino M. Cardoso:

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Este artigo tem a autorização de Altino M. Cardoso e pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges - A última crónica...

A última crónica escrita por Manuel Coutinho Nogueira Borges também publicada no semanário "Arrais" em Peso da Régua:



- M. Nogueira Borges, 23 de Maio de 2012
Clique  nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia de José Alfredo Almeida. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Tributo ao poeta reguense João de Lemos


A LUA DE LONDRES
É noite. O astro saudoso
rompe a custo um plúmbeo céu,
tolda-lhe o rosto formoso
alvacento, húmido véu,
traz perdida a cor de prata,
nas águas não se retrata,
não beija no campo a flor,
não traz cortejo de estrelas,
não fala de amor às belas,
não fala aos homens de amor.

Meiga Lua! Os teus segredos
onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
das praias de além do mar?
Foi na terra tua amada,
nessa terra tão banhada
por teu límpido clarão?
Foi na terra dos verdores,
na pátria dos meus amores,
pátria do meu coração!

Oh! que foi!... Deixaste o brilho
nos montes de Portugal,
lá onde nasce o tomilho,
onde há fontes de cristal;
lá onde viceja a rosa,
onde a leve mariposa
se espaneja à luz do Sol;
lá onde Deus concedera
que em noite de Primavera
se escutasse o rouxinol.

Tu vens, ó Lua, tu deixas
talvez há pouco o país
onde do bosque as madeixas
já têm um flóreo matiz;
amaste do ar a doçura,
do azul e formosura,
das águas o suspirar.
Como hás-de agora entre gelos
dardejar teus raios belos,
fumo e névoa aqui amar?

Quem viu as margens do Lima,
do Mondego os salgueirais;
quem andou por Tejo acima,
por cima dos seus cristais;
quem foi ao meu pátrio Douro
sobre fina areia de ouro
raios de prata esparzir
não pode amar outra terra
nem sob o céu de Inglaterra
doces sorrisos sorrir.

Das cidades a princesa
tens aqui; mas Deus igual
não quis dar-lhe essa lindeza
do teu e meu Portugal.
Aqui, a indústria e as artes;
além, de todas as partes,
a natureza sem véu;
aqui, ouro e pedrarias,
ruas mil, mil arcarias;
além, a terra e o céu!

Vastas serras de tijolo,
estátuas, praças sem fim
retalham, cobrem o solo,
mas não me encantam a mim.
Na minha pátria, uma aldeia,
por noites de lua cheia,
é tão bela e tão feliz!...
Amo as casinhas da serra
coa Lua da minha terra,
nas terras do meu país.

Eu e tu, casta deidade,
padecemos igual dor;
temos a mesma saudade,
sentimos o mesmo amor.
Em Portugal, o teu rosto
de riso e luz é composto;
aqui, triste e sem clarão.
Eu, lá, sinto-me contente;
aqui, lembrança pungente
faz-me negro o coração.

Eia, pois, ó astro amigo,
voltemos aos puros céus.
Leva-me, ó Lua, contigo,
preso num raio dos teus.
Voltemos ambos, voltemos,
que nem eu nem tu podemos
aqui ser quais Deus nos fez;
terás brilho, eu terei vida,
eu já livre e tu despida
das nuvens do céu inglês.

NÃO TE ENTENDO CORAÇÃO
Mas se não amo, nem posso,
Que pode então isto ser?
Coração, se já morreste,
Porque te sinto bater?
Ai, desconfio que vives
Sem tu nem eu o saber.



Porque a olho quando a vejo?
Porque a vejo sem a olhar?
Porque longe dos meus olhos
Me andam os seus a lembrar?



Porque levo tantas horas
Nela somente a pensar?


Porque tímido lhe falo,
E dantes não era assim?
Porque mal a voz lhe escuto
Não sei o que sinto em mim?
Porque nunca um não  me acode
Em tudo que ela diz sim?



Porque estremeço contente
Quando ela me estende a mão,
E se aos outros faz o mesmo
Porque é que não gosto então?
Deveras que não me entendo,
Nem te entendo, coração.



Ou me enganas, ou te engano;
Se isto amor não pode ser,
Não atino, não conheço
Que outro nome possa ter;
Ai, coração, que vivemos
Sem tu nem eu o saber.

AS ROSAS DE SANTA ISABEL
Onde ides, correndo asinha,
Onde ides, bela Rainha,
Onde ides, correndo assim?
Porque andais fora dos Paços?
Que peso levais nos braços?
Oh! Dizei-mo agora a mim?...

A Santa, regalos novos,
Frutas, pão, e carne, e ovos,
No regaço e braços seus,
Sem cuidar ser surpreendida,
Ia levar farta vida
Aos pobrezinhos de Deus.

Coram-lhe as faces formosas,
E responde:- "Levo rosas..."
Dom Dinis deitou-lhe a mão,
Ao regaço, de repente;
Mas de rubra cor vivente
Só rosas lá viu então!...

Como o tempo era passado,
Nos jardins, no monte e prado,
De rosas e toda a flor,
El-rei, cheio de piedade,
Nas rosas da caridade
Viu a bênção do Senhor!

E daquele rosal dela
Tirando uma rosa bela,
Que guardou no peito seu,
Disse-lhe:- "Em paz ide agora,
Que eu me encomendo, Senhora,
À Santa, ao Anjo do Céu."


João de Lemos de Seixas Castelo Branco Nascimento: Nasceu em 6-5-1819 no Peso da Régua e  faleceu em 16-1-1890 em Maiorca, na Figueira da Foz. Poeta ultra-romântico, nascido a 6 de Maio de 1819, no Peso da Régua, e falecido a 16 de Janeiro de 1890, em Maiorca, na Figueira da Foz, foi adepto da causa absolutista.

Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, desempenha várias missões diplomáticas ao serviço de D. Miguel e dirige desde 1848 o jornal A Nação, órgão dos miguelistas. Depois da vitória dos liberais, exila-se em Inglaterra, onde compõe o poema que o notabilizou, “A lua de Londres”. ~
Colaborou na revista coimbrã O Trovador, de que foi um dos fundadores, bem como em outros periódicos, tais como a Revista Universal Lisbonense (1841-1859), a Revista Académica de Coimbra (1845-1854), o Prisma (1842-1843), a Ilustração (1845-1846) e o Cristianismo (1843).

O seu lirismo é imbuído de um sentimentalismo exagerado, com evocações nostálgicas da terra natal e da pátria, e marcado por um certo convencionalismo.

Bibliografia:
Obras poéticas:
- O funeral e a pomba: poema em 5 cantos
- Cancioneiro (1858-1867-  I volume: Flores e Amores, II  volume: Religião e Pátria e III volume: Impressões e Recordações)
- O livro de Elisa: fragmentos (1869)
- Canções da tarde (1875)
- Serões de Aldeia (1876)
- O tio Damião: poema lírico (1886)
- O Monge Pintor (1889)
Obras de Teatro:
- Maria Pais Ribeira: drama em 4 actos
- Um susto feliz: comédia
Artigos jornalísticos compilados:
- Os Frades
- Ele e Ela
- A Inquisição de 1850

Sobre o poeta reguense:

Sobre a sua obra:
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O CEGUINHO E O DEMÓNIO

Por João de Araújo Correia


Tal ceguinho era religioso por vocação e por necessidade. Gostava de assistir às missas, rezar pelos benfeitores, ouvir a palavra de Deus orada do púlpito pelos melhores jesuítas e de adormecer à noite com as camândulas presas entre os dedos magros – de tísico... A religião dava-lhe prazer e rendia-lhe coroas. Vendo-o tão pio, as beatas ricas fartavam-no de esmolas e até lhe inventaram o vício de fumar para ele se entreter – as santas criaturas.

Morava numa casa térrea ao rés do adro e tinha por costume sentar-se nos degraus de um cruzeiro levantado diante da igreja. Ali vivia – preso àquelas pedras com mais amor do que ao buraco da casa. Dali espreitava tudo – se é que os cegos espreitam. Não espreitava, mas ouvia. Dava relação de quantos passos feriam a testada do templo. Passos apressados de homens que não tiram o chapéu a ninguém – menos a uma cruz. Passos frívolos de senhorinhas que fazem vénia, mas ligeira, a Nossa Senhora. Passos doentios de senhoras de
idade, cuja reverência ao Santíssimo é meiga e prolongada. Passinhos de criança sobre o saibro, tic, tic, davam ao ceguinho a impressão do primeiro granizo que pinga na areia.

Afeito àqueles ruídos, conhecia-os todos, identificava-os, sabia o nome aos pés que os produziam. Tinha que fazer, contando-os e nomeando-os, porque o adro era aberto e muita gente o atravessava para ir mais depressa à sua vida.

O cego não pedia esmola. Cumprimentava e recebia. Quando, no meio daquele perpassar de pés e pernas, reconhecia amigo ou devota, dizia:

– Senhor E, o dia está bonito.

Ou

– Minha Senhora! A missinha amanhã é mais cedo. A Senhora sabe... Disse o Senhor Abade...

Estas frases eram a salva estendida à mão caritativa. Caíam nela moedas de prata e de cobre, que o cego apartava em saquitéis. Era muito metódico.

O trato devoto com senhoras e senhores finos dera ao ceguinho modos adamados.

– Por este não vem mal ao mundo, dizia um fidalgote pálido que tomava o Senhor todos os dias.

Tinha o ceguinho voz monocórdica e não fazia gestos violentos como pessoa ordinária. Era comedido, quase amputado no que representasse força, ousadia, sinal de vida.

– Por este não vem mal ao mundo, anuíam baixinho, dando topetadas, as beatas velhas.

Não, pelo ceguinho não vinha mal ao mundo. Todavia, ele não era insensível à aproximação da carne feminina, principalmente a carne perfumada. Distinguia as senhoras, não só pelo passo leve e curto, mas também pelo cheiro. Havia uma, cujo aroma o inebriava. Mal vinha à esquina do templo, já a sentia como perdigueiro que dá tento de caça. Dilatava as narinas, mas... imediatamente as coçava, disfarçando, e dispunha-se a falar à aparecida com unção.

– Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.

– Já sei, Fernando. Pega lá, olha, para rebuçados.

A senhora afastava-se, e ele seguia-lhe o rasto com a ponta do nariz afilada para o aroma.

Dentro da igreja, identificava os perfumes com as vozes.

– Aquela, a que canta alto, é a que cheira a cravo.

– A de voz rouca espalha um cheiro grosso que me enjoa.

– Esta, sim, tem voz de pintainho, mas é desenjoada. Cheira às ervas do monte.

Os pecados do ceguinho, como se vê, eram latentes, ocultos.

No entanto, mordia às vezes os lábios para os não revelar.

– Ah! Minha Senhora, que lin... Sim, minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.

– Obrigado a Vossa Excelência. O ceguinho nunca se esquece de pedir a Nosso Senhor pela saudinha de Vossa Excelência. Que lin...

Seguia-a com o nariz como de costume. Olfacto terrível!

Mas, não só o olfacto. O ouvido também... Era de um apuro! Cativava-se de todo o som, próximo ou longínquo, e guardava de memória para sempre o som harmonioso.

– Muito bem cantou o Veni aquela que cheira à erva do monte! Parece impossível!

Dizia isto no degrau do cruzeiro quando recordava passos de festividade. Mas, dizia-o sem falar. Mexendo os beiços, mal articulava as sílabas. Não descobria o peito.

Um dia, sem mais nem menos, pediu a um irmão, com quem vivia, que lhe comprasse uma guitarra até cem mil réis.

– Pago-ta às migalhinhas... Vê se ma compras. Se ma comprares, és bom irmão. Se ma não comprares, mereces ser ajudado de Deus, mas é à moda... Oxalá que todos os cegos do mundo te amaldiçoem entre a Hóstia e o Cálice.

– Carago! És mau como as cobras...

 –Agora sou! Sou ceguinho.

Dias depois, tinha a guitarra. Não se sabe como o irmão se houve para a conseguir. Era pobre como Job. Comprou-a por milagre para evitar a praga rogada entre a Hóstia e o Cálice.

Com a guitarra nas unhas, o cego desforrou-se da tristeza e humilhação a que votara corpo e alma durante uns poucos de anos. Rompeu a capa que o cobria – capa feita do aniquilamento de todas as vontades. Pôs-se a tocar pedaços de amor musical, notas quentes trazidas pelo vento desde a cidade ruidosa até o adro silencioso.

–Não deves tocar isso, dizia-lhe uma senhora.

Ele porém não a ouvia. Erguia-se do sopé da cruz, metia-se no cardenho e iluminava-o todo com um zangarrear feito de sol.

– A guitarra deu cabo do ceguinho. Oxalá não seja a sua perdição, temia outra senhora.

Como de facto. A guitarra deu cabo do ceguinho. Deu-lhe cabo da compostura, do arranjo com que se sentava nas escadas da cruz, e até lhe deu cabo da voz monocórdica. Era com altos e baixos que proferia:

– Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo. Disse o Senhor Abade.

– Está bem, está bem.

As senhoras, estranhando-lhe o modo novo de pronunciar a frase, fugiam dele. Davam à fuga, endireitando o busto, o tom particular da ira amordaçada. Só elas sabem como se faz isto.

A escarcela do cego, outrora pingue de coroas, começava a ressentir-se da metamorfose do dono. Passava dias sem se estrear com um tostão.

– Paciência. Não matei a cabra. Mato-a amanhã.

O homenzinho, que tinha sido anjo no âmbito da igreja, passara a falar calão de motorista. Adquirira desenvoltura feia em cego. Parecia maluco. Tinha febre e tosse.

Muito magrinho, cada vez mais magrinho, começou a ficar pela cama dias seguidos. Para se entreter, pedia à cunhada o favor de lhe chegar a guitarra e tocava. E até cantava!

– Bossemecê está doido de todo. Rais me parta se lhe torno a chegar às unhas esse diabo dessa biola.

O cego ria-se como perdido. Fazia-lhe cócegas a zanga pitoresca de Tomásia – sua cunhada.

– Ai, Tomasinha, a menina é um anjo. Fazia lá essa desfeita a um cego!

– Um cego que não tem juízo... Sabe que está um chato? Bom tempo, em que as coroas luziam nesta casa.

– Hão-de tornar a luzir, Tomasinha!

– Quando?

– Sabe o que me lembrou, Tomasinha? Arranjar um rapaz que cante e ir ver mundo, tocar por aí fora.

– Habia de fazê-las frescas, tísico de todo...

O cego amuou, mas, daí a pouco, em voz meio sumida, confusa, como se estivesse a sonhar, ia dizendo:

– A Tomasinha é um anjo. Parece a senhora que canta mal e cheira às ervinhas do monte.

– Doido assim!, exclamou a cunhada.

O cego estava a morrer ou fingia que estava a morrer. Não tocava guitarra, nem pegava em comida. Mas, lembrando-lhe a cunhada o dever de se reconciliar com Deus, disse que era cedo.

– Quando for altura, concluiu.

– Quando for altura, está bossemecê a contas. Lembre-se que já daí se não alebanta.

O cego respondeu como se a não ouvisse:

– A menina é um anjo...

Passaram-se dias sem que o cego pegasse em comida ou pedisse a guitarra para zangarrear. Até que uma tarde, quando o sol lhe varria a cama com um rebotalho de luz amarela, o cego implorou:

Deixe-ma ver agora. Quero despedir-me dela para sempre.

A cunhada aproximou-se do leito condoída.

– Está aqui, tataranha! Aqui!

Neste momento, o cego subjugou os pulsos da mulher e beijou-lhe à pressa as mãos, a face e os cabelos.

– De vossemecê foi que eu me quis despedir. A guitarra? Que a leve o Diabo!

– Seu porco, seu ladrão! O Quim há-de sabê-lo!

No dia seguinte, o Quim, a escumar pelos cantos da boca, intimou o ceguinho a sair de casa.

– Perdoa-me, Quim. Foi o Demónio que me atentou.

– Bai-te embora. Cego seja eu como tu se te não mato. Ou te mato ou te amaldiçoo entre a Hóstia e o Cálice. A ti e a todos os cegos do mundo. Oubiste, alicréu?

– Mata-me, que eu não saio daqui. Chama o Senhor Abade. Quero-me confessar. Por alma da nossa mãe, perdoa-me. Foi o Demónio que me atentou.

– O Demónio dou-to eu. Confessa-te na igreja, bíbora! Aqui tens as calças. Ou as enfias ou te corto o pescoço.

Daí a menos de um ai, o ceguinho estava na rua com a guitarra suspensa do pescoço.

Não se soube mais dele. Ou anda de terra em terra, tocando e cantando novos desesperos, ou, tísico no fim, o vento lhe deu no peito e o levou até um valo como faz às folhas mortas.

- In Terra Ingrata, Editorial Estampa
Clique na imagem para ampliar. Matéria transcrita e editada. Sugestão de JASA. Edição de J. L. Gabão - "Escritos do Douro" em  Janeiro de 2012.

Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

UM CONTO ALDEÃO

Alcandorada sobre o rio Douro, dele recebendo as neblinas matinais ou vespertinas, de casas em maioria ao correr do chão, uma ou outra senhorial, quelhos estreitos e lages lambidas pelo decorrer dos séculos, fica a povoação de São Gonçalo, assim chamada em devoção ao seu padroeiro.

Quem a conheceu no remoto, e a vê agora, não a imagina na década de cinquenta, anos poucos depois do fim da segunda grande guerra. Era uma aldeia de invernos enlameados e verões poieirentos. As crianças andavam descalças e vestiam calções rasgados no sítio do cu ou da “pilinha“, dividiam as sardinhas por várias bocas e a fome enegrecia-lhes os olhos. Um tempo de miséria; ainda havia quem morresse de tuberculose ou sífilis, e toda a gente se calava porque o medo lhes tolhia a vontade. Estava na sede concelhia quem recebesse os informes que ditavam o futuro de qualquer nascido, e os poucos chamados de ricos, por possuirem terras, não tinham outro remédio senão seguir-lhes os ditames se queriam vindimar, em cada Outubro, as uvas do remedeio. Um “senhor invísivel“ mandava em tudo, sabia de tudo, era como um Deus de carne e osso, que vivia em Lisboa, num palácio guardado; na escola estava com Cristo ao lado, e tinha em cada terra quem o representava. O regedor era o poder civil, o pároco o espiritual.

S. Gonçalo não fugia a essa tradição, cultivada por uma paciência popular aliada a influências pequeninas, disputadas nos concluios de taberna ou de mesas de cozinha, enquanto se fazia a folha do pessoal. Mas tinha, também, quem se não conformasse com a situação imposta.

Chamava-se Joaquim Faria da Silva, Quinzinho na oralidade do lugar. Era filho da união de Joaquim da Silva e Berta Faria, acolhida sob o mesmo tecto, mas não legalizada no altar da freguesia. Naquele tempo, essas mancebias – como lhes chamavam as devotas, quase sempre disfarçando com os padres-nossos as invejas de tal relação – eram muito contestadas pela gente das saias negras e opas brancas. A pilhéria feminina ou a gravidade masculina disso faziam proveito, adaptando, com versos chocarreiros, cantigas em moda, entoadas às escâncaras ou às escondidas, conforme eram carentes ou abastados os destinatários, na velho hábito da cobardia humana.

Quinzinho crescera nesse meio escuro e doentio. Fizera a quarta classe e começara a trabalhar com o pai nas vinhas para um dia ser Feitor. Não estudara mais porque ler e escrever, nesse tempo, já era um curso. Nunca tivera rédea solta, o pai, distante, julgava, assim, impôr-lhe o respeito; só a mãe lhe acariciava o cabelo e lhe satisfazia a boca, e, entre as escassas largas conquistadas, ia brincamdo com os amigos à patela ou às escondidinhas, aos pinhões ou ao rapa nas datas festivas, pontapeavam a bola, no adro da capela, em jogos a mudar aos seis e acabar aos doze, subia os montes à procura de ninhos. Às vezes, sentia-se deslocado, com a sensação de ter nascido em lugar errado. Comprava sempre o jornal que a Mariazinha trazia da vila, e sentia que lhe faltava mais qualquer coisa. Sob o temor paterno e a suavidade materna lá se fez homem para usar sacho e, a ele amparado, comandar os poucos trabalhadores permanentes e os variados eventuais. O mando pragmatizava-lhe a vida, distraía-lhe os anseios e encurtava-lhe os horizontes. Ao chegar a idade de ir à sorte pagou a licença militar, continuando no tirocínio de lavrador. Em certas alturas parecia-lhe ver olhares de soslaio, ignorando se eram de inveja ou de desdém. Ele sabia que o povo era mau, o falatório um eco surdo de alterados silêncios. Ele trabalhava na vinha, andava com os homens pelos socalcos, mas ia ficar com a fortuna que o pai ajuntara. Fora feito no meio dos bardos, consequência de uma paixão carnal entre o senhor rico e a jornaleira pobre. O padre Saraiva desaprovava aquela casa, arredada do santo sacramento do matrimónio. Joaquim da Silva perfilhara-o e a mais não se achava obrigado; desdenhava do carimbo sacerdotal, continuando as compras das bulas, o pagamento da côngrua e fartas ajudas de sacristia. Já vira muito na sua naturalidade e nas aldeias vizinhas. Só falava quem tinha que se lhe dissesse. Julgando aplacar a ira da autoridade eclesial, a mãe e o filho seguiam todos os preceitos da Santa Madre Igreja.

Tornara-se, ainda jovem e cobiçado pelo mulherio, um mestre no amanho da terra. Acabada a vindima deixava descansar as videiras, mas, em Janeiro, podava-as com carinho, nunca seguindo aqueles que esperavam por Março; o pai sempre lhe dizia «Quem poda em Março é madraço», e neste mês era a primeira cava. Às vezes, em primaveras chuvosas, fazia uma segunda, lá para Agosto, a fazer jus ao ditado «Cava em Agosto enche o tonel de mosto». Não havia trato que lhe escapasse. Era esmerado e um moiro de trabalho. Seguia os vários trâmites agrícolas com a sabedoria de um antigo. Nem a erguida ou a desfolha, a redra ou o sulfato lhe escapavam ao seu rigor. Então, neste último, era piquinhas, preocupava-o o desavinho, o pai falava-lhe algumas vezes dos tempos da filoxera, não se podia descansar do míldio e da maromba que atacavam tanto o moscatel com o malvasia e, até, o alvarelhão. Esquisitava-se na calda boldalesa e usava os pulverizadores as vezes que fossem precisas: olhava para as cepas e radiografava-lhes as necessidades.

Passou também a fitar as mulheres. Aí, a sua radiografia era inconclusiva. Umas matreiravam o olhar com fosforescências de esganação ou de fantasia, de intrepidez ou embaraço. Ele não era nenhum artista de cinema, mas não se podia deitar fora: de estatura meâ, olhos castanhos numa cara oval, com um ar de madureza precoce, apimentava-o a herança que um dia lhe adornaria o saldo, se a lógica comandava a vida. Nunca se agarrara a nenhuma, cada vez mais convencido de que, o que tivesse de ser, seria.

Uma manhã, andava com os homens na vinha do Gato, a Mercedes chamou-o do alto do valado, com uma voz esganiçada e sacudindo-se como se a estivessem a picar. De um fôlego se lhe juntou e soube que a mãe tido tido um ataque. Tão violento ele fora que nem tempo deu para chegar o tabuleiro em que a queriam levar ao médico.

Quinzinho chorou tanto que os seus gritos de espanto e de dor se ouviram nos fundos do vale. A vida acabava-lhe, tudo o que fizera até aí não era real, nada o ajustava ao mundo, um vazio negro e enorme o sugava para um poço de onde não havia retorno. O pai, a quem se agarrava como num vezo fúnebre, deixava cair umas lágrimas e incitava-o à aceitação. O filho é que piorava o amanhã, pouco recebedor dos afectos paternais, habituado ao deleite da mãe, cúmplices os dois do “segredo“ da sua nascença.

As três mulheres permanentes, que trazia, há anos, ao serviço, é que arranjaram Berta Faria, colheram as flores, desembaraçaram os castiçais com as velas, e trouxeram o Cristo revestido a banho de prata que estava no quarto da falecida. Só depois da chegada do caixão a expuseram na sala de visitas.

No dia seguinte, Joaquim da Silva, chamado de lado pelo seu compadre Manuel, a quem baptizara três filhos, quase ia fazer companhia à sua “companheira”: o padre recusava-se a fazer o funeral, nem permitia os estandartes das Irmandades, eles não estavam casados pela Igreja, impossível a sua presença. Aquele recompôs-se, meteu pés ao caminho, e disse ao padre Saraiva que ou alterava a decisão ou o “amaldiçoaria“ até à sua morte. O clérigo ainda teve um instante íntimo de hesitação, fez repentinamente algumas contas, mas há preceitos que, mesmo sem humanidade, são capazes de servir de alibi a almas pusilânimes. Quinzinho, quando soube, não acreditou. Impossível tal desfeita. Sua mãe não merecia um castigo daqueles; sempre fora temente a Deus e seguidora da sua Fé. O seu choro, desta vez, tinha um travo de revolta e ingratidão insuportável. Nado e criado no temor reverencial civil e canónico, esqueceu intentos que o enublaram.

Só passados uns dias decidiu: nunca mais frequentaria a igreja com aquele padre e dele fugiria assim que a distâncuia lhe desse viso. O pai, que já raramente lá fazia poiso, pediu, a todos os santos, vida para lhe fazer o funeral.

Passados uns meses, estava Quinzinho na bicha do pagamento da décima, sentiu uma mão a bater-lhe no ombro. Era o padre Saraiva. Assopapado, com a vontade dividida em como actuar, deixando prevalecer a educação, disse «Olá, Sr Padre...»; este respondeu: «Não te tenho visto na vinha do Senhor.»; aquele, já com o recibo na mão, e como quem se despede aliviado, retorquiu : «O senhor não a sabe cavar. Voltarei depois de o ensinar na minha vinha da Estrada. Ando lá. Apareça.»

Quinzinho saltou para o Castanho, e partiu em passo travado.
- Por M..Nogueira Borges*, 15/07/10 para ForEver PEMBA/Escritos do Douro.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.