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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Cantar até ao Céu

Uma crónica divertida e cheia de fé do saudoso dr. Camilo de Araújo Correia:

Naquele ano os mordomos das Festas do Socorro começaram tarde a tratar de tudo. E tudo é muito na tradição da grandiosidade a que se habituaram naturais e forasteiros. A Comissão, inteiramente nova, não se lembrou de que o dia 15 de Agosto é dia de muitas Senhoras do Céu, festejadas por muitas terras.

Entre outras dificuldades, viram-se e desejaram-se os mordomos para arranjar fogo que chegasse para os três arraiais e para ir estoirando durante o dia. Tiveram mesmo de mandar vir algum da Espanha, mais caro e mais duvidoso.

- Seja o que Deus quiser… Da Espanha, nem bom vento nem bom casamento! Quanto mais foguetes !- exclamou o mordomo responsável pelo fogo, ao assinar a encomenda.

Por causa das bandas de música houve acesas discussões na sacristia. De uma vez, chegariam a vias de facto se o bom abade não tivesse interrompido uma confissão para os ir meter na ordem.

Das bandas contactadas, apenas três se comprometiam a preencher os arraiais. Por mais dinheiro e comodidades que oferecessem, não arranjavam músicos para a tarde da procissão.

Já desesperavam, quando o mordomo mais novo, um rapaz vesgo e cabeludo, se saiu a dizer:

- Eu sou capaz de resolver o assunto…

- Como?!?- perguntaram todos.

- Numa carrinha, arranjada à maneira, metíamos uma aparelhagem de “compact disc”…

-Isso não! Nossa Senhora do Socorro é uma Senhora de muito respeito! Não é para andar metida nessas fantochadas! opôs-se o mordomo mais velho.

Sem outro remédio, acabaram por aceitar a sugestão do cabeludo, melhorada com a promessa de recamar de flores a carrinha transbordante de meninas vestidas de azul…

O “compact disc” de músicas marciais que mandaram vir agradou a todos…

- Para ser música de banda só lhe faltam as fífias!- disse um que tinha a mania das piadas.

Mal quebrou o sol daquele dia 15 de Agosto, a procissão saiu do Largo da Igreja, a ganhar solenidade a cada passo percorrido na primeira rua. A carrinha, enfeitada de meninas e flores, cumpria o seu papel, inundando tudo em redor de música puríssima. As pessoas gostavam da vibração daqueles sons, poderosos e envolventes, mas achavam que lhe faltava qualquer coisa, como às flores de papel.

A certa altura a carrinha enguiçou. Nem para trás, nem para diante. A procissão seguiu em grande silêncio. Um silêncio que parecia dor a toda a gente. Ir, assim, Nossa Senhora, como num enterro…

Por um longo minuto, só se ouviu o bater de pau ferrado dos homens do andor. Depois, a multidão que seguia atrás do pálio começou a cantar. Primeiro baixinho, como um murmúrio. Mas logo a plenos pulmões e plena alma. O fervor gregário e religioso foi de tal modo contagiante que, à passagem, arrastava as vozes de quem assistia das janelas, das varandas e da beira dos passeios. Muita gente chorava de felicidade.

Nossa Senhora parecia viva. Linda como sempre e mais feliz do que nunca.
- Camilo de Araújo Correia, publicado  no Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1991.
  • Festas de Nossa Senhora do Socorro neste blogue.
1960
2012
Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Sal, o Peixe e o Vinho

*M. Nogueira Borges

Chegavam, de manhã cedo, a apregoar, “Sardinha fresca!... É de Ovar!...”

- De Ovar?... – perguntava-me intrigado.

- Então a sardinha não chega do Porto?... – continuava eu na minha estranheza.

Vinham em barricas, sem cabeça e sem vísceras, dispostas simetricamente, acamadinhas entre sal. Comiam-se, assadas nas brasas da lareira ou fritas na sertã, com batatas cozidas e nacos de broa, regadas com azeite poupado que, antigamente, as pessoas não besuntavam os queixos e uma almotolia tinha que dar para muitas e muitas refeições. Havia, até, quem as comesse cruas acompanhadas com uma cebola cortadinha aos bocados e enfeitadas com sal. Quando ia à Régua, lá estavam elas, bem à mostra, ali para a beira-rio, na Rua das Vareiras (há quem lhe chame Custódio José Vieira), a serem regateados com o dinheiro escondido num nó do lenço.

Lembrei-me desta memória ao ler, recentemente, um opúsculo do nosso escritor Camilo de Araújo Correia, intitulado NA ROTA DO SAL, escrito para a primeira sessão oficial do processo de geminação das cidades do Peso da Régua e de Ovar, ocorrida nos Paços do Concelho desta cidade, em 25 de Julho de 1991.

Nestas histórias de geminações são sempre mais abundantes as tradições orais do que a documentação de arquivo (dispersa e muitas vezes omissa) a justificarem, ancestralmente, a irmandade hodierna.

Camilo de Araújo Correia perguntou, procurou, e fez contas: “Há cerca de duzentos anos que a Régua e Ovar andam de mãos dadas pois se admite como cerca a fixação das primeiras colónias vareiras na Régua, logo a seguir à construção dos armazéns da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1790”.

A partir de então o futuro parece ter nascido com o plantio da vinha e o disciplinar do comércio vinícola. À nossa terra, afluíram gentes de muitos lugares, em demanda da melhoria económica, como se um eldorado de prosperidade resplandecesse na margem direita do Rio defendia pelos contrafortes do Peso com as suas casas senhoriais. Vieram muitos, mas, principalmente, vareiros e galegos que saibraram montes abandonados aquando da filoxera, plantaram americano, abriram lojas e tabernas, e transformaram a Régua num grande BALCÃO onde se fizeram e desfizeram fortunas pesando os comestíveis e medindo o tinto.

Os vareiros abandonaram as terras da beira-mar, trazendo, rio acima ou pelas estradas do Porto, o peixe e o sal que não tínhamos. Chegaram para governar a vida e não lhes recusaremos a façanha da aventura. Eram solidários, não se invejando nas vestimentas ou nos sorrisos de satisfação pelos negócios bem conseguimos. A montes e vales (mais a montes do que a vales), as quintas e casebres, as aldeias próximas ou remotas, levaram o sal ou a sardinha, à cabeça ou aos ombros, em carros de bois ruminando distâncias ou em jumentos resvalando nos pedregulhos. Alimentaram pobres e ricos quando a carne era luxo e as jornas mal davam para a sonhar. Misturaram o sangue com os autóctones e com os de além-Minho, criaram filhos e netos nesta fogueira de Verão quando acaba a Primavera e neste Inverno de gelo quando os vinhedos amarelecem e por cá andam nos nomes e nas caras com quem nos cruzamos no dia-a-dia.

Nesta hora de Festa, de amor e devoção à nossa Padroeira, é acto religioso lembrarmo-nos de quem nos ajudou a (re) criar o chão, a fermentar o sangue e a moldar as consciências.

Sem pretender adornar ou moralizar a saga duriense, lembremos, aos de hoje, os de ontem, e recordemos que o IMORTAL Escritor do Douro  - João de Araújo Correia - foi o único que soube retratar e elevar à verdadeira dimensão do seu esforço a gesta heróica deste povo: os de cá e os de fora que aqui se criaram e morreram libertando as almas por estes MONTES PINTADOS.

Quem desejar a abundância dos pormenores históricos que lhe leia O SEM MÉTODO e PALAVRAS FORA DA BOCA. Lá estão os vareiros e os galegos (lá estamos nós todos) na genuinidade rácica e na miscigenação sem adulterações.

- M. Nogueira Borges, Abril 1993, in Boletim da Festas de Nossa Senhora do Socorro.


 *Manuel Coutinho Nogueira Borges  é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Relendo: Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Crónica sobre duas pessoas que marcaram nossas vidas. Lembrando-os sentimos que estão (e estarão) sempre presentes!

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.


Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.


O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.


O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.


Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.


África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.


Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.


Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.


Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.


O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.

- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Sobre M. Nogueira Borges;
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
RECORDANDO... Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


Clique  nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem a meu saudoso Pai JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO e ao estimado Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia do Dr. José Alfredo Almeida, também Amigo prezado destas personalidades da Régua e do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Uma crónica intemporal - Era em Agosto…

*M. Nogueira Borges
Era em Agosto com as águas deslizando para as hortas, os vinhedos repletos de verde e de doçura, os homens de coletes a tiracolo e sacholas pelos ombros, as mulheres mastigando broa e encolhendo ciúmes, as crianças a jogarem às escondidinhas no adro da capela e nas curvas dos quelhos, os cães e os gatos a barafustarem nos terreiros do casario perseguindo galinhas e garnizés, o bêbedo de sempre arrancado à taberna pelo filho desgostoso ou pela mulher já habituada.

A tarde acabava assim, com o sol a morrer devagarinho por detrás das montanhas, uma fresca macia alegrando as almas, os velhinhos do Asilo a derreterem minutos para a ceia e o médico a abandonar a Casa do Povo.

A menina senta-se ao piano e os seus dedos brancos deslizavam suavemente pelo teclado.

As Rosas da Despida desfolhavam-se em emoções e os sons espalhavam-se pelos corredores e escapuliam-se, serenamente, pelas janelas abertas, flutuando no silêncio da noite como fantasias de crianças. Ecoavam além, nos contrafortes dos montes ou no fundo do vale a quem os antigos chamavam poço do vinho.
Era Agosto e as festas do Socorro anunciavam-se. As ornamentações engalanavam as ruas, os carrinhos e os carrocéis enchiam a Alameda e as iluminações não deixavam sombras para namorar. Quando as lâmpadas desenhavam o campanário da Igreja do Peso muitos olhos se desviavam lá para cima a ver se os Remédios já cintilavam.

Era um tempo em que a perseverança não se excepcionava e a terra cavada com suor dum esforço ancestral tinha uma história feita de lendas e as gentes sonhos sem fim onde se recriavam a habitualidade, se espevitavam futuros, se diversificavam motivações e se engrandeciam espaços.

As Festas do Socorro eram um compasso de espera na roda do tempo e do trabalho, estreias de fatos e vestidos, arranjos de cabelo nos salões da Vila que a Régua ainda não era cidade de nome.

Era a romaria dos desenraizados do litoral em retorno aos almoços de cabrito assado e arroz de forno nas mesas familiares. As estradas enchiam-se de carros e de excursões, os comboios fumegavam na Estação, um mar de gente inundava a princesa do Douro e todos eram conhecidos.

Havia crianças ao carrachol e idosos amparados a bengalas, cantadores de chulas, tocadores de realejos, bombos, ferrinhos e concertinas. Dançava-se no meio das ruas e em todos os cantos onde o pó escondia feições.

Os rapazes sopravam em cornetas de barro, mercavam-se panos, mantas e potes para a vindima, voavam ilusões sobre o murmúrio humano, as gargalhadas estrondeavam, avinhadas, nos tascos e cafés, à mistura com o tilintar dos copos, e as tristezas estavam trancadas nas casas vazias das aldeias em redor.
Era em Agosto e, quando a Senhora do Socorro se passava, no andor florido, por entre alas de bombeiros e anjinhos, a multidão esquecia a profanidade e ajoelhava-se em silêncio de Fé encomendando promessas, gemendo aflições e cantando alegrias. A Senhora a todos sorria numa magnanimidade de ternura e perdão que marejava os olhares dum povo cheio de memórias de sacrifício glosadas por poetas e prosadores.

Era Agosto e as uvas amadureciam à espera dos cestos…
- In  Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro.


*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidas pelo Dr. José Alfredo Almeida. Fotos de Miguel Guedes. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Festas de Nossa Senhora do Socorro - Festa do Douro

Herança cultural antiga marcada pela Procissão do Triunfo em que a cidade do Peso da Régua se ilumina e os católicos montam altares de rua em honra de Nossa Senhora do Socorro. Entretanto a festa é ilustrada com arraial, feira, música e eventos desportivos.

Com  inicio, no dia 9 de Agosto de 2012, as Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro - 2012 têm esta programação, segundo o portal virtual da Câmara Municipal do Peso da Régua:

De 9 a 12 de Agosto
Festival de Francesinhas
Parque multiusos

9 Agosto
Concerto ALBATROZ
22H00 Parque multiusos

10 Agosto
Concerto BOSS AC
22H00 Parque multiusos

11 Agosto
Perícia Nossa Senhora do Socorro
14H00 Cais da Junqueira
Org: Clube Automóvel da Régua
Concerto LUÍS REPRESAS
22H00 Parque multiusos

12 Agosto
Concerto ORQUESTRA DEL MAR
22H00 Parque multiusos

13 Agosto
Sessão de Fados
22H30, Igreja Matriz – Peso
23H30, Largo do Eirô – Peso

14 Agosto
Feira franca
07H30, parque multiusos
Animação de rua
08H30, ruas da cidade
Recolha dos andores à Igreja Matriz
21H00
Baile popular
22H30, Peso
Arraial do Peso (uma partida)
24H00, Peso
Desfile da confraria Amigos 14 de Agosto
00H30, Peso
Baile popular
02H00 Peso

15 Agosto
Animação de rua
08H30, ruas da cidade
Missa
10H30, Igreja Matriz
Procissão do Triunfo
17H30, saída da Igreja Matriz
Baile popular
22H00, avenida do Douro
Arraial do rio
24H00, rio Douro e cais da Régua

16 Agosto
Animação de rua
08H30, ruas da cidade
Procissão do Triunfo
17H30, saída da Capela da Casa da Criança
  • Agenda Municipal da cidade de Peso da Régua para Agosto 2012
  • As Festas de Nossa Senhora do Socorro em 1919
  • Mais publicações sobre as Festas de Nossa Senhora do Socorro - Peso da Régua, no blogue "Escritos do Douro"
Imagens das Festas de Nossa Senhora do Socorro - Peso da Régua em 2007 (video disponibilizado no YouTube por "caixoesregua")
Clique  na imagem acima para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue só com a citação da origem/autores/créditos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!

RECORDANDO... - Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


terça-feira, 11 de agosto de 2009

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.

  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão no Google - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão no Escritos do Douro - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão no ForEver Pemba - Aqui!