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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os meus bombeiros

Camilo de Araújo Correia

Os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua fizeram cento e dez anos. É um número bonito. Não por ser redondo, mas por traduzir muitos, muitos milhares de horas de trabalho e sacrifício e de quem dirige, de quem comanda e de quem obedece a regulamentos e sentimentos em benefício do mais anónimo dos anónimos - o próximo.

O programa das festas cumpriu-se no dia 2 de Dezembro e com ele a tradição de visitar bombeiros directores, comandantes, sócios e benfeitores falecidos, sepultados nos cemitérios da Régua e de Godim; de assistir à missa na Igreja Matriz; de percorrer em formatura as principais ruas da cidade; de apresentar cumprimentos à Câmara Municipal.

Antes do almoço tradicional, sempre animado, houve imposição de medalhas, cerimónias de tocante significado, em que os silêncios e os aplausos sublinham os méritos distinguidos.

A Direcção e o Comando mantiveram também a tradição de convidar autoridades, afinidades e simpatias mais evidentes, o que sempre corresponde a uma boa apresentação de toda a Régua. E, assim, nos aniversários a cidade fica ainda mais perto dos seus bombeiros. 
Quem já fez uma dezena de anos, ao assistir a estas festas centradas nas magníficas instalações dos nossos bombeiros não pode deixar de recordar o velho e minúsculo quartel do Cimo da Régua. Velho, modesto e pequeno mas muito querido dos seus frequentadores e visitantes fortuitos, sem falar do rapazio, incapaz de passar adiante sem se deslumbrar com o pronto-socorro de cadeirinhas e com a ambulância, uma caranguejola esquinuda, de um branco muito duvidoso e um conforto ainda mais duvidoso... Os carros entravam à justa na porta estreita, sempre com grande vozearia de indicações e avisos.

O quarto do Zé Pinto, o quarteleiro, era também minúsculo e abria para o «parque automóvel». Deste se passava à sala de jogos, por dois degraus. O quartel acabava aqui, se não contarmos uma pequena cozinha lá no fundo. Cozinhava ali a senhora Antoninha, esposa do Zé Pinto, ainda hoje inconformada viúva, e ele próprio preparava os petiscos que os jogadores da noite lhe pediam.

Jogava-se um bilhar muito gozado, um dominó muito batido e umas cartas muito lambidas.

Havia, ainda, uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe, por esporádico leitor.
As formaturas só se desfaziam no quartel, à medida que iam entrando. De maneira que a porta estreita oferecia grandes dificuldades para manter o aprumo. As maiores dificuldades ainda eram as do Justino, garboso porta-bandeira de muitos anos. Garboso, mas desastrado… De rígida marcialidade, esquecia muitas vezes o globo da entrada: aquele globo de luz melancólica fendida por uma cruzinha vermelha. A rigidez do corpo e do gesto não lhe permitia baixar suficientemente a bandeira. Zás!... mais um globo. De nada valiam os avisos dos colegas mais próximos, feitos, disfarçadamente, pelo canto da boca: - Ó Justino... Ó Justino… olha o globo! Bumba!... mais um.

Até que um dia o Justino, muito infeliz, propôs que se arranjasse um globo de lata. 
Coitado do Justino. Já lá está, nem sei há quantos anos. Não pôde levar a sua querida bandeira dos Bombeiros da Régua. Ainda bem... Eu sei lá, se com o vagar da Eternidade, nos andaria a quebrar as estrelas, uma a uma.

Notas:
  1. Esta crónica foi publicada no jornal O Arrais, da edição de 6 de Dezembro de 1990.
  2. As fotografias da autoria de Baía Reis fazem parte do arquivo dos Bombeiros da Régua. E dizem respeito à tomada de posse do Senhor Dr. Camilo de Araújo Correia como Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua. 
Os Meus Bombeiros
Camilo de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 10 de Fevereiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Os meus bombeiros
Clique nas imagens acima para ampliar. Matéria enviada por J. A. Almeida para "Escritos do Douro 2011". Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". em Novembro de 2011. Actualizado em 4 de Novembro de 2013.

    quinta-feira, 24 de março de 2011

    Uma Sineta de Palavras - 2

     A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

    “A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
    João de Araújo Correia


    Sem abusar da sua confidência, julgo que não alterarei o rigor da sua dedicatória, se acrescentar que o livro “Pátria Pequena” não foi só escrito e como uma homenagem, à “vila e o concelho do Peso da Régua”. Em grande parte esse seu livro, foi – é e será -  também,  um preito aos bombeiros da Régua, em especial aos bombeiros da velha guarda,  a todos os bombeiros do seu tempo,  como a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum”. Da mesma forma, deve ser entendido como o reconhecimento de uma Associação Humanitária que criou raízes no seu meio social e, por assim dizer, se tornou uma força invencível, obstinada em cumprir os ideais legados pelos seus heróicos fundadores.


    Certamente que contar a história dos bombeiros da Régua não foi uma tarefa pensada ou imaginada pelo escritor, no sentido de que desejasse narrar os factos e os acontecimentos com uma ordem cronológica, como se fosse mestre de história. Mas, os temas tratados nas crónicas são uma grande parte da história dos bombeiros. Se nelas há muito das sua memórias também está também retratada a sua relação de amizade com os velhos bombeiros os directores. O escritor de memória em memória, de retrato em retrato e de acontecimento para acontecimento faz enobrecer a grandeza de homens bons e enaltece os seus ideais humanitários.


    João de Araújo Correia, nas crónicas que dedica aos bombeiros consegue reconstruir uma parte do passado, obscuro e desconhecido, com génio, humanismo e até ternura por figuras humanas que já se tornaram imortais, em momentos que testemunhou, directa ou indirectamente, da existência uma instituição modelar, no que ela tem de sonho e de paixão, abnegação e heroísmo, grandioso e nobre, mas também de sofrimentos, desânimos, e tragédias que fizeram perder a própria vida a homens, que cumpriram ao extremo o lema do voluntariado: “Vida por Vida”.


    Desde o projecto organizado por Manuel Maria de Magalhães, o líder escolhido para comandar o movimento associativo, os bombeiros aparecem referenciados nas inúmeras crónicas que o escritor publicou quer em livros quer em jornais, até ao fim da sua vida, encontrando-se as últimas no jornal O Arrais. Sempre com uma indisfarçável paixão, descreveu os bombeiros da sua terra como uma força invencível, uma força ao serviço de causas com uma dimensão moral e ética, que sempre apoiou.


    Com os bombeiros, João de Araújo Correia manteve também uma ligação de sócio contribuinte. Era assim que o dizia na sua correspondência que encontramos arquivada nos bombeiros. Curiosamente, contribuinte era a classificação dos associados, definida nos primeiros estatutos, os que pagavam uma quota fixa em dinheiro para ajudar. Esta classe de associados, onde já se incluiu a D. Antónia Adelaide Ferreira, a famosa Ferreirinha, que se inscreveu como a sócia numero um, foram sempre muito importantes pelos seus contributos generosos nos momentos de maiores dificuldades económicas.


    Como já se disse, João de Araújo Correia foi um dos colaboradores literários nas páginas do boletim “Vida por Vida”, folha informativa da Associação. Teve como primeiro director o seu filho Camilo de Araújo Correia que, durante um mandato de dois anos, exerceu as funções de Presidente da Direcção da Associação. Mas o escritor, sempre que lhe foi pedida a sua colaboração literária, respondeu de forma positiva. Escreveu textos e memórias relacionados com os bombeiros para os dois boletins comemorativos que a Associação editou, em 1955 e 1980, datas em que, respectivamente, comemorou as “Bodas de Diamante” e o seu primeiro centenário.


    Perante os sacrifícios dos bombeiros, o escritor dizia numa carta que enviou  num dos aniversários da Associação que “a associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”.


    Quando nasceu João de Araújo Correia, em 1 de Janeiro de 1899, a Associação dos Bombeiros da Régua tinha perto de dez anos de existência. Das mais antigas do país, encontrava-se numa fase em que havia muita boa vontade e determinação dos seus homens e um sentido de manter, apesar de todos os sacrifícios, um corpo de bombeiros voluntários capazes de cumprirem uma tarefa de protecção civil, então da responsabilidade da Autarquia.


    Na história dos bombeiros rezavam a proeza e feitos, agraciados com medalhas e reconhecimentos públicos pelos relevantes serviços prestados às populações da Régua e dos concelhos vizinhos, onde não havia nenhuma corporação, como seja em Santa Marta de Penaguião, Armamar e Mesão Frio.


    Em 1882 foi atribuído aos bombeiros da Régua, o título de “Real” , que estes passaram a usar na bandeira desenhada pelo Comandante José Afonso de Oliveira Soares.


    Havia também falecido, em finais de 1892, de doença, na sua residência na Rua Serpa Pinto, com a idade de 47 anos, o principal fundador e o primeiro comandante Manuel Maria de Magalhães, o decidido impulsionador da criação dos bombeiros da Régua. Presidiu a uma Comissão Instaladora que depressa redigiu os estatutos da benemérita Associação e o regulamento para o bombeiro, com colaboração do advogado e então Presidente de Câmara, Dr. Joaquim Claudino de Morais, o qual prometeu a ajuda pessoal e da autarquia.


    Na crónica “Bons e Maus Exemplos”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, -  assinada com o pseudónimo Joaquim Pires -  o escritor evoca um  pormenor da vida pessoal do primeiro comandante, natural de Bragança, mas que viveu e trabalhou na Régua, onde exerceu no Tribunal Judicial, então localizado no rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal, as funções de escrivão de direito.


    “Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação Manuel Maria de Magalhães.
    Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o Comandante Manuel Maria de Magalhães”.   


    O escritor não conheceu pessoalmente o primeiro comandante dos bombeiros da Régua, mas na crónica “Bombeiros da Velha Guarda” (in Pátria Pequena, 1965) confessa a sua admiração pelos primeiros bombeiros alistados, com os quais se relacionou e conviveu, não para lhes bendizer feitos heróicos, mas para retratar os seus exemplos de altruísmo.


    “Fim de Novembro, fazem anos os Bombeiros da Régua. Contam oitenta e cinco, mas parece que nasceram ontem. Nem uma ruga, nem um cabelo branco, nem um desalento…Garbosos até no capacete, fazem do seu garbo agilidade, frescura e força. Que milagre!
    Confraternizam, em cada aniversário, os Bombeiros da Régua. Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…Mas talvez que nenhum se lembre, nem bombeiros nem contribuintes, de sócios e bombeiros antigos, que também se sentaram, em ágape semelhante para comer e gracejar.
    Quem vai contando anos, dos que já fazem mossa, não dos bombeiris, que rejuvenescem, lembra-se da velha bomba e de quem a movia e sustentava.
    Lembra-se de Afonso Soares, com a sua barba branca; do poeta Camilo Guedes, de gravata à La Vallière; do José Avelino, que comia um boi por uma perna; do José Ruço, que pertencia ao grupo auxiliar; do Joaquim Maria Leite, o Riço, que pertencia ao corpo activo com alma de criança e alma de bombeiro. Mas, de quantos se não lembra ainda? Justino Lopes Nogueira, o Justino, daria um livro de inocentes recordações alegres.
    O quartel dos Bombeiros, situado ali em baixo, na Chafarica, largo dos Aviadores, como hoje se diz, era o clube da terra. Havia outro, mas, aristocrático, presidido pelo monóculo do Dr. Costa Pinto. Clube, ponto de reunião sem preconceitos, era o quartel dos bombeiros. Ali se jogava e conversava à vontade. Ali se davam gargalhadas que faziam estremecer o quartel. Guarda-lhe o eco algum ouvido então adolescente…”.


    O escritor lembrou um bombeiro voluntário, o divertido Justino Lopes Nogueira, natural de Santa Marta de Penaguião, que foi conhecido por falar com erros gramaticais. Não se distinguiu não pelas suas proezas heróicas, mas antes pelos seus burlescos e impagáveis comentários.


    Em “As anedotas do Justino”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, traçou um breve retrato deste humilde 1º patrão – hoje equivalente ao posto de Chefe -  dos bombeiros, à mistura com palavras de ironia e muita  ternura pela sua  humilde figura.


    “Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…
    Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.
    Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.


    - Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…
    Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.


    -Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…
    Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.


    -Deu-lhe de presente uma apendicite.
    Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.


    -Sempre simpatizei com o seu panorama…
    Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama. Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!


    O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança.   Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.


    À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!


    Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira.   Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.
    Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.
    Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”


    Quem o escritor lembrou de forma comovente na crónica  “Figuras de Barro - Os Bombeiros” (in Manta de Farrapos-1957) foi  o primeiro Capelão dos bombeiros da Régua,  a figura bonacheirona  do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges e o dia triste do seu funeral, quando  ia  a caminho do cemitério do Peso.


    “Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.
    Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
    O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
    Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar.    Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
    O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”


    Embora João de Araújo Correia não o tenha confessado, o seu pai António da Silva Correia, solicitador encartado, republicano convicto, nascido nas Caldas do Moledo, foi um dos bombeiros da velha guarda. Tinha pertencido, por algum tempo, ao corpo de bombeiro, mas o seu porte físico não era compatível com a acção exigida a um bombeiro.


    Como seu pai deixou guardou a farda de bombeiro e seus adereços no baú das recordações, foi aí que o escritor encontrou a inspiração para o recordar, comovidamente, em “Figuras de Barro - Os bombeiros” (In Manta de Farrapos - 1957),  publicado, originalmente,  no boletim “Vida por Vida”.


    “Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu eu, isto é, com o seu físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.
    Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após outra, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso.
    Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.
    Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulho no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável.
    Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.
    Continua...

    - Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
    João de Araújo Correia na "Infopédia"
    João de Araújo Correia na "Wikipédia"

    sexta-feira, 26 de junho de 2009

    Os bombeiros de escritório

    (Clique na imagem para ampliar)

    Estão presentes, nesta foto de 17 de Maio de 1964, tirada na vila de Resende, três vultos da história dos bombeiros do Peso da Régua: o Comandante Carlos Cardoso dos Santos, Alfredo Luís Baptista, Noel de Magalhães e Teófilo Clemente, acompanhado do seu jovem filho José Manuel Clemente, que estavam a convite da associação humanitária local para assistirem a uma cerimónia de homenagem aos bombeiros.

    Como não podia deixar de ser, do ilustre bombeiro de farda, o Comandante Carlos Cardoso dos Santos já aqui deixamos vários apontamentos da sua vida e dos seus 31 anos de serviço nos bombeiros da Régua.

    Quanto aos bombeiros sem farda já se distinguiu Noel de Magalhães. Mas, apenas por falta de oportunidade, nada se disse dos directores Alfredo Luís Teixeira Baptista e Teófilo Clemente.

    O primeiro destacou-se nas direcções presididas pelo Dr. Júlio Vilela e o Dr. Camilo de Araújo Correia, sendo o principal responsável pelo acabamento das obras do quartel, cuja construção é de 1931, pela aquisição de novos carros para os incêndios e pelo aparecimento do jornal da associação “Vida por Vida” (publicou-se ente 1956-1974), o qual chegou a dirigir.

    Quanto ao segundo foi um grande chefe de material. O melhor que a associação teve nesse sector fundamental para a actividade operacional dos bombeiros. Mas foi um dos grandes beneméritos que teve a associação. Se o velho Buick ainda hoje circula, isso se deve aos cuidados e à generosidade do Senhor Teófilo Clemente. Foi ele que o mandou reparar e lhe deu um motor novo, que fui retirar de um carro da sua firma de transportes. O seu filho José Manuel Clemente, que o acompanhava na sua juventude, é actualmente o sócio mais antigo da associação, sem nunca ter sido director, herdou do seu pai o gosto de ajudar os bombeiros.

    Estes dois homens fazem parte de história dos bombeiros da Régua. Os seus nomes são exemplos a apontar como ensinamento de cidadania. Como membros directivos da associação, o empenhamento e dedicação cívica de Alfredo Luís Teixeira Baptista e de Teófilo Clemente teve um reconhecimento, quando a Liga dos Bombeiros Portugueses os distinguiu com a Medalha de Ouro de duas estrela

    Desde facto, o jornal “Vida por Vida”, em Novembro de 1964, com o título “Duas Condecorações: uma honra para a nossa Associação”, deu conta do significado destas distinções para estes ilustres cidadãos reguenses nestes termos: “Se certo que estes dois elementos não esconderam o regozijo por tão honrosa distinção, a verdade é que a mesma reveste de elevado sentido para a própria Associação, pois que se o seu nome não fosse um nome que se impõe ao respeito e admiração de todos em geral, certamente que não conquistavam estas duas distinções para dois elementos que há mais de 10 anos têm prestado o seu concurso para uma maior valorização dos bombeiros.”

    Estas duas medalhas para estes dois cidadãos são a prova que os bombeiros sem farda têm a sua importância. A eles cabe-lhes o papel de defender os seus interesses do colectivo e zelar pelas melhores condições do cumprimento das missões de socorro de todos aqueles que vestem a farda de bombeiro.

    Nos primeiros estatutos da associação, datados de 1880, os associados constituíam-se em quatro classes: honorários, contribuintes, activos e auxiliares. Os activos eram os bombeiros voluntários. Os sócios auxiliares eram os que prestavam auxilio à companhia de incêndios. Os sócios honorários eram aqueles que pela sua posição social ou pelos serviços prestados lhe foi conferida essa honra. Os restantes associados pertenciam à classe aos sócios contribuintes, ou seja, todos aqueles que não vestem farda. Teve a sorte esta associação de nessa classe se inscrever a famosa viticultura do Douro, a bondosa D. Antónia Adelaide Ferreira, a nossa ilustre Ferreirinha.

    Como associados, os bombeiros sem farda são todos aqueles que exercem cargos sociais nos órgãos da instituição: na Assembleia-geral, no Conselho Fiscal e na Direcção. Enfim, são outro tipo de voluntários que se preocupam mais com as contas da casa, a sua gestão corrente e o seu funcionamento no dia a dia. Eles são responsáveis por toda a dinamização institucional, por vezes, com muitos obstáculos, por vezes com polémicas, outras vezes com brilhantismo, mas estes directores constituem um pilar do associativismo.

    Em 1980, na revista comemorativa do 100º aniversário da Associação, o Dr. Camilo de Araújo Correia, na crónica “Uma volta cá por dentro”, contou-nos com o seu sentido de ironia, o papel de um “bombeiro de escritório”, que ele próprio desempenhou com brilhantismo, na qualidade de Presidente de Direcção, desta enternecedora maneira:

    “Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos meus primeiros raciocínios.

    Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem.

    Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas…como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? O que mais me intrigava era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer umas surras da minha mãe.

    Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. È melhor contar tudo inteirinho…

    É certo que neste mundo é que elas se pagam…Deus, na sua infinita ironia, acabou por me fazer bombeiro, cerca de trinta depois do meu ataque de inveja. Vim a ser Presidente da Direcção por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos. Não pensaram na minha desesperada falta de tempo…Tive de abandonar com o dedo imperioso da profissão espetada nas costas.

    Tudo acabaria muito bem, se ficasse por aqui. Mas é que eu viria a ter, anos depois, a sobrinha mais travessa que Deus ao mundo deitou!...

    Um dia, num chá de certa cerimónia e sem vir a propósito, saiu-se com esta:

    - O meu tio já foi bombeiro, mas teve de sair porque não apagava nada!

    Os risinhos das senhoras, mal disfarçados, atravessaram-me como alfinetes….

    De cada vez que me pregava esta partida, tentava fazer-lhe compreender que o meu papel de Director não era ir aos incêndios, nem apagar fosse o que fosse, por mais que as coisas ardessem à minha volta. Em vão procurei convencê-la de que os bombeiros também têm escritório com secretárias cheias de papéis…

    De cara fechada e olhos trocistas dizia sempre:

    -Sim…sim…

    Paguei bem paga a inveja que me fez o capacete e a machadinha daquele bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão, numa tarde de calor e de tourada.”

    O Dr. Camilo de Araújo Correia foi um dos melhores bombeiros de escritório. Por pouco tempo é certo, como ele o confessa, pelos muitos afazeres de médico anestesista. Mas exerceu essa função com grande paixão de bem servir. Como Presidente da Direcção conheceu e conviveu de perto com muitos bombeiros. Ao lado deles sorriu e deu muitas gargalhadas pelas divertidas peripécias de alguns, como as presenciou na vida do bombeiro Justino, que andará com ele pelos caminhos da Eternidade a inspirar-lhe mais deliciosas histórias, que nos cativem com seu sentido de ironia e de humor fino.
    Como no seu tempo……ainda hoje os bombeiros da Régua têm escritório com secretárias cheias de papéis. E, têm umas sobrinhas ainda mais travessas para nos fazerem sorrir da vida. Felizmente que é assim…
    - Peso da Régua, Junho de 2009, José Alfredo Almeida.

    - Outros textos publicados neste blogue sobre os Bombeiros Voluntários de Peso da Régua e sua História:

    • Bombeiros Semi-Deuses - Aqui!
    • As "madrinhas" dos Bombeiros - Aqui!
    • A benção da Bandeira - Aqui!
    • Comandante Lourenço de Almeida Pinto Medeiros: Fidalgo e Cavaleiro dos Bombeiros da Régua - Aqui!
    • A força do voluntariado nos Bombeiros - Aqui!
    • A visita do Presidente da Républica Américo Tomás - Aqui!
    • Uma formatura dos Bombeiros de 1965 - Aqui!
    • O grande incêndio dos Paços do Concelho da Régua - Aqui!
    • 1º. de Maio de 1911 - Aqui!
    • Homens que caminham para a História dos bombeiros - Aqui!
    • Desfile dos veículos dos bombeiros portugueses - Aqui!
    • Os bombeiros no velho Cais Fluvial - Aqui!
    • O Padre Manuel Lacerda, Capelão dos Bombeiros do Peso da Régua - Aqui!
    • A Ordem Militar de Cristo - Uma grande condecoração para os Bombeiros de Peso da Régua - Aqui!
    • Os Bombeiros no Largo da Estação - Aqui!
    • A Tragédia de Riobom - Aqui!
    • Manuel Maria de Magalhães: O Primeiro Comandante... - Aqui!
    • A Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
    • A cheia do rio Douro de 1962 - Aqui!
    • O Baptismo do Marçal - Aqui!
    • Um discurso do Dr. Camilo de Araújo Correia - Aqui!
    • Um momento alto da vida do comandante Carlos dos Santos (1959-1990) - Aqui!
    • Os Bombeiros do Peso da Régua e... o seu menino - Aqui!
    • Os Bombeiros da Régua em Coimbra, 1940-50 - Aqui!
    • Os Bombeiros da Velha Guarda do Peso da Régua - Aqui!

    Link's:

    • Portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua (no Sapo) - Aqui!
    • Novo portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
    • Exposição virtual dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
    • A Peso da Régua de nossas raízes - Aqui!

    terça-feira, 4 de dezembro de 2012

    Camilo de Araújo Correia - O NATAL BRASILEIRO


    Em quarenta anos de Brasil, João Patrício nunca tivera possibilidades de vir a Portugal. A príncipio, por falta de dinheiro, depois, por falta de ocasião. Na verdade, os primeiros quinze anos tinham sido duros como caixeiro apagado ao fundo de um grande estabelecimento de secos e molhados.

    Por morte dos donos, em desastre de viação, viu-se repentinamente guindado a gerente daquela grande nau comercial. Os filhos dos patrões, uns médicos, outros engenheiros, avessos ao comércio, cedo lhe venderam a firma, nas melhores condições, por muito acreditarem na sua competência e experiência.

    Bem se saíu João Patrício do pesado encargo. Ao fim de quarenta anos, tudo era seu, desde o barril do vinagre à tabuleta do neon. Não ficou por aí. Os tempos de prosperidade pareciam querer vingá-lo dos tempos de mesquinhez. Em cada ano abria um novo estabelecimento. Acabou por ter uma cadeia de supermercados, respeitável nos bancos onde o seu dinheiro se multiplicava e que eram quase todos os do seu Estado.

    Apesar de rico e feliz com sua numerosa família, nunca outra coisa sonhou João Patício que não fosse vir a Portugal, à sua aldeia nas faldas da Serra do Milhafre. Os ruídos, as luzes, os hábitos da grande cidade jamais lhe perturbaram a visão exacta da sua terra. Como que repousava o pensamento naquelas casinhas humildes de pedra nua em redor da única vaidade - a igreja branca e majestosa de Nossa Senhora das Aves. Quantas vezes adormeceu, cansado do balcão, a imaginar-se de opa vermelha rutilante, ao sol de um domingo de Páscoa, na companhia do senhor abade? Nem ele sabia...

    Naquele ano, João Patrício pôde vir a Portugal. Aí por alturas de Março começou a pensar nisso sem nunca esmorecer por mais contrariadades que a vida lhe trouxesse.

    Como a chegada calhasse em pleno Dezembro, concebeu um sonho maravilhoso e tratou de lhe dar realidade. Comprou lembranças que chegassem para toda a gente, um manto novo para Nossa
    Senhora das Aves e mil e um enfeites para engalanar a aldeia no dia de Natal. Duas bandas de música seriam rogadas na devida altura.

    Porém, uma grande tristeza o invadiu quando, ainda de longe, avistou a sua terra. Pareceu-lhe uma grande tela de pintor louco perdida na montanha. As casas iam do rôxo ao verde salsa sem passar pelo branco. A própria igreja perdera majestade apesar de continuar branca e digna no meio daqueles estilhaços de arco-íris.

    Entrou na aldeia cabisbaixo. De longe em longe levantava os olhos à procura dos alpendres onde deixara velhinhas a fiar. Nem um. Tinham sido substituídos por varandas de cimento armado, compridas e ventrudas. Por toda a parte onde houvesse um palmo quadrado de superfície lisa cartazes pôdres e ameaças de morte, escritas a pincel nervoso.

    Sem família a quem se dirigir, procurou o abade. Encontrou um velho desiludido numa casa desiludida. Rápidamente lhe descreveu a sua vida e lhe contou a sua intenção de oferecer à sua terra um Natal farto e alegre.

    - Sabe, reitor, a gente lá morre de saudades. Só pensa mesmo na sua terra...

    - Muito me custa desiludi-lo, senhor João Patrício... mas, esta gente não compreenderia a sua boa fé e as suas saudades. O senhor já não é, sequer, um brasileiro a querer botar figura na sua terra. Passaria por um ricaço a julgar toda a gente pobrezinha. Duvido mesmo que arranjasse quem lhe deitasse os foguetes...

    - Não diga mais, reitor. Compreendi e muito lhe agradeço ter-me salvo da última desilusão. Hoje mesmo regresso a Lisboa.

    - Isso é que não vai! Desde já o convido para passar o Natal comigo. Anda por aí uma velhota, meia tonta, mas com grande dedo para a cozinha. Quem vai dar as ordens é o senhor. Tenho um vinho de estalo e a conversa nunca falta. O senhor o que precisa é de conversa e de um vinho desta terra que cá o chamou.

    - Nunca aceitei um convite com lágrimas nos olhos, reitor. Não repare nelas, mas acredite nelas, reitor.

    Naquela noite de consoada os dois velhos, depois de muito conversarem, ficaram a dormir no preguiceiro.

    A fogueira com os seus cinzéis de luz foi esculpindo na pedra da noite um baixo relevo para o museu da Eternidade.

    - Por Camilo de Araújo Correia (Atualização daqui)
    Título: Histórias do Fim do Ano
    Autoria: Camilo de Araújo Correia
    Ediçao: Brasília Editora - Porto
    Primeira edição: Dezembro 2001
    Execução gráfica: Martins & Irmão - Porto

    Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Também publicado neste blogue em 19 de Junho de 2008. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

    sexta-feira, 21 de setembro de 2012

    Vindimas da Minha Saudade

    Chegam-me de muito rapazinho as primeiras recordações do tempo das vindimas.

    Ainda vinham longe, aparecia por casa do meu avô de Canelas um homem rogado para remendar  toda a cestaria rebentada da última vindima. Trabalhava debaixo de um alpendre, montado num banco comprido que tinha um artefacto de ferro como que o cesteiro, com os pés, largava e prendia a tira de madeira de castanho que ia desvastando com uma faca arqueada de dois cabos. Preparadas as ripas, o cesteiro cerzia cestas e cestos vindimos com uma arte que me encantava.

    Também me prendiam ao alpendre as histórias rústicas daquele homem da serra que descia ao Douro como um prenúncio de vindimas.

    Mais perto da azáfama das vindimas, lavavam-se os lagares, preparavam-se as pipas e os tonéis. Também se varria com grandes vassouras de giesta todo aquele chão à espera de uvas.

    Na véspera  de começar o corte aparecia o Tio João Lucas a combinar com o meu avô as mudanças da dorna. Naquele tempo, as dornas serviam para trazer ao lagar as uvas das vinhas mais distantes. A multidão de figuras que conheci por toda a parte, a vida inteira, não apagou o mínimo traço da do Tio João Lucas, muito feliz com seus lindos bois e a dorna babada de mosto.

    O Viando era uma propriedade tão distante que a família se instalava lá, do princípio do corte  ao fim da encuba. A casa de xisto, enegrecido pelo tempo, era de uma rusticidade tal que ainda hoje a sua recordação me alivia do tédio que nos dá tanta comodidade e modernismo. Era rústica a casa, rústicos os móveis, simples a comida e primitivo o silêncio imaculado das noites.

    Em todas as serras durienses, havia nas vindimas um frémito de festa, mal disfarçado por tantos cuidados e suores.

    Na grande cozinha dos lavradores as mulheres passavam o dia afogueadas em redor da lareira, onde os potes de muitas tigelas seguravam em três pés uma espécie de negra e  rotunda importância.Com os pais ocupados na vindima,  as crianças brincavam nos quinteiros com redobrada algazarra.

    Os lavradores andavam pelas vinhas a trocar impressões com os caseiros. Falavam do desavinho que houve, da chuva que veio em má altura, dos ataques de míldio e do oídio, daquele sol que andava a chupar as uvas até à grainha…

    Para o lavrador duriense, do rasgar da terra para o plantio, à chegada das uvas ao lagar, o granjeio é um rosário de tragédias.  Mesmo nos melhores anos, com o vasilhame cheio até ao batoque, há sempre quem diga desconfiado:

    - Isto ainda minga muito…

    Entre piadas maliciosas e cantigas repetidas em cada vindima,  as mulheres iam cortando as uvas e berrando pelo rapaz dos cestas, de cada vez que alguma se enchia. E os rapazes, mais ladinos ou mais ronceiros, as iam despejando, sempre que possível, ao longo de um muro, à feição das costas que os haviam de levar ao lagar. E aquela fila de homens possantes, de orgulho nos olhos, subia e descia todas as encostas, ao ritmo de um assobio ou das interjeições dos mais afoitos. De sol a sol, entre a vinha e o lagar, vezes sem conta... 

    Quando a sede apertava, ouvia-se um coro  de ressonância primitiva que parecia ecoar pelo Douro inteiro:

    - Beba-se… beba-se… beba-se… beeebaaa-se!!!

    E o púcaro de alumínio passava de mão em mão, de sede em sede.

    Nas noites de pousa, as mulheres cantavam e dançavam no terreiro   ao som do harmónio e dos ferrinhos que vinha do lagar. Aí, depois do corte, ao ritmo de esquerdo… direito… esquerdo… direito… os homens desabraçavam-se e acabavam a pousa com troças e jogos de sabor antigo.

    Se as noites iam frias, o feitor alargava-se, às vezes, na distribuição da bagaceira. E os homens de vinho mau à saída do lagar, a remoer um remoque mais azedo, cruzavam olhares torvos que, às vezes, prolongavam até à ponta das navalhas.

    As uvas que dantes eram vindimadas por mãos que as levavam aos lábios num sorriso de apetite, acolhidas por uma cestaria que vinha do tempo de Noé e morriam no sacrifício dos lagares, andam hoje de plástico em plástico, de contentor em contentor, até desaparecerem nas fauces de uma adega, sem tempo para se despedir de alguém que as amou e do Outono que as amadureceu… 

    - Camilo de Araújo Correia 
    -  In revista “Villa Regula“, nº3, Setembro de 1999

    Camilo de Araújo Correia no ForEver PEMBA
    Camilo de Araújo Correia no Escritos do Douro
    Clique nas imagens para ampliar. Texto sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 26 de Setembro de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue sómente com a citação da origem/autores/créditos.

    quarta-feira, 29 de outubro de 2014

    CAMILO DE ARAÚJO CORREIA - O escritor e médico do Douro 'partiu' em 30 de Outubro de 2007

    Texto do blogue ForEver Pemba de 30 de Outubro de 2007, escrito portanto há 7 anos atrás:

    """A vida acontece entremeada de alegrias, surpresas e desgostos a que costumo chamar de "pontapés"... Hoje recebi mais um, bem forte, doloroso porque "partiu" um AMIGO... AMIGO que, pela distância física, nem permitiu a permuta de um último abraço de despedida !

    A notícia chegou assim, bem simples:
    ""Lamento trasmitir esta infeliz noticia. Faleceu o nosso grande Amigo Dr. Camilo. Já transmiti à Filha os sentimentos em nome da nossa Família... Faleceu no Porto, e está a caminho da casa mortuária do Peso da Régua. Será sepultado amanhã em Canelas. Logo à noite vamos ao seu velório.""

    Para os leitores do blogue e Amigos que o recordam do tempo de Porto Amélia, onde foi director do Hospital Militar nos anos 60, aqui deixo link's que permitem a leitura de alguns de seus textos. E transcrevo um de seus "Apontamentos de Histórias Perdidas".
    Descansa em paz Dr. Camilo de Araújo Correa (nasceu em 1925 na cidade do Porto mas viveu na Régua desde os três anos de idade).

    Quando recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo Armando Cepêda.
    Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.
    Era casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque do Porto.
    Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel Salazar, em momento de inspiração tripeira. Armando Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.
    Passei muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda sabia dar.
    Conseguíamos conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na fúria da cabeça.
    Antes e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da noite parecia libertar suavemente.
    Os hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia tropical que parece igualar todos os homens.
    As palavras iam ficando mais espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal, para, pouco a pouco, dominar o assunto.
    E todos nos erguíamos um pouco também para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.
    Por duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como apaixonado. Dois pisteíros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim, dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite.
    Inesquecíveis aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de luz que lhes ofereciamos. E aquela sensação de liberdade plena que se experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do falajar dos negros contra o silêncioprofundo do céu?Sempre me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que pareciam postos ali depois do quadro pronto. Não era um bom pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar, ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena. Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo todos os dias.
    De uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do «Bartolomeu Dias», ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:
    — Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...
    E o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele! Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.
    No «Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e festejaram o seu médico como um herói da selva.
    Voltemos ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário. Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.
    O sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre Porto Amélia e Mecufi.
    — Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da picada.
    Não havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena veiga que dominávamos completamente de onde nos haviamos instalado. Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso.
    Parecia nada recear e, no entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.
    — O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.
    Como vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.
    —Então?!—perguntei baixinho.
    — Quanto mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
    — Pois é... — disse, reconhecendo a minha inexperiência.
    Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas.
    Quando o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.
    — E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
    — Deus nos livre!... Ninguém a aturava!...
    Soaram dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um saco de batatas.
    Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.
    O «mata-bicho» à sombra daquela mangueira isolada no mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta. Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de cebolada, meio metro de omelete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a contar coisas.
    No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam, disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:
    — Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar todo contente!
    Era realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos na varanda e foi dizendo:
    — Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
    — Para mim, não! — cortei, aflito.
    — Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o senhor Rosas.
    — Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este mundo e o outro...
    —Bem... Bem!—respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
    — Hassan!
    Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de orelha a orelha.
    — Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu sabes como é!
    Hassan sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que até as glândulas salivares me doeram!
    — Vai uma pontinha, doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
    — Isso cheira pela vida... — consegui dizer em plena vertigem.
    A pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong espessa, suculenta e aromática...
    A princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo cabo... Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com sorriso de vitória:
    — Então, doutor, estava boa?
    A vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.
    Conheci Megama Abdul Kamal muito antes de o vir a encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar. Megama era régulo do Chiure, com influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio. Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual da grande companhia algodoeira Sagal.
    Fui a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço. Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele tempo.
    O motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à chávena. A mâozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.
    No regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada.Notando a minha estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:
    — São as mulheres de Megama...
    Na cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!
    Um dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma hérnia estrangulada, há três dias... Os cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou. Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem o post-operatório teve aspectos de pereqrinação.
    Vinham negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento religioso, temperado na fé e na obediência.
    Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:
    — Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo, que tudo vai correr bem...e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver se acaba esse corrilório!...
    Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.
    Armando Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta. Dava-lhe jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos. Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um no retalhinho de papel.
    Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a partida.
    — Patrão!... Patrão!... esta não é do nosso!
    — Não é tua?! É tua, sim senhor!! — garantiu Armando Cepêda olhando para o negro e para o retrato.
    —Não é!... Não é!... Nosso não tem chapéu!
    Armando Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
    Não teve a mínima dificuldade em desfazer o equívico. Pôs a mão no ombro do negro e sossegou-o, assim:
    — Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! (brinde, oferta)
    Os olhos do negro rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de gratidão de uma boca babada de riso:
    — Brigado, patrão!... Brigado, patrão!...
    E partiu, a misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.
    - Camilo de Araújo Correia - Livro de Andanças.

    O calor está chegando aos trópicos...
    Com ele vem o canto das cigarras.
    Mas hoje, seu som parece-me mais triste !
    Jaime Luis Gabão"""

    terça-feira, 4 de maio de 2010

    As cartas de João de Araújo Correia

    (Clique na imagem para ampliar)

    Hoje ninguém ou quase ninguém escreve cartas, sejam de mera circunstância, afectos, negócios ou cortesia. Já lá vai o tempo em que se revelava sentidos pesares, em papel timbrado com fita preta ou se felicitava pelos sucessos pessoais. Tão pouco se escreve para corresponder a uma declaração de amor. As cartas perderam a sua função. Hoje manda-se uma pequena mensagem e, quando muito, envia-se um email. Começou uma nova era, a do correio electrónico. Pressagia-se que as cartas, como ainda as conhecemos, começam a ser uma coisa de outro mundo. Se não são já de um outro mundo, pelo menos, fazem parte de um mundo que já passou, de pessoas mais humanistas, como foram os nossos pais e avós, que gostavam de se comunicar num correio de trocas de cartas.

    A.M. Pires Cabral é o autor de um interessante trabalho sobre as cartas de João de Araújo Correia. Quem o leu, entende-o como um breve estudo de introdução às cartas que o escritor escreveu a muitas das personalidades do seu tempo, amigos, leitores, conhecidos e oficiais do mesmo ofício, como foi o seu caso. Não sendo um suplemento do seu trabalho, surpreende-nos com a revelação de algumas cartas que o escritor fez questão de lhe dirigir, anotando-as com um pequeno comentário, a contextualizar os motivos de cada uma delas.

    O seu trabalho e as cartas transcritas podem ser lidos no “In Memoriam de João de Araújo Coreia”, que acumula outros bons estudos e curiosas evocações pessoais, dedicados em homenagem ao escritor reguense, no ano em que se contam 25 anos após a sua morte.

    Estas são algumas das cartas de João de Araújo Correia inéditas, mas ao que se sabe, fazem parte de uma vasta correspondência que escritor deixou guardada nos seus baús. Parece que aguardam quem as leia, estude, organize por temas e ideias, ou mesmo outros critérios, para que possam, muito em breve, ser publicadas em forma de livro. Alguém se encontra encarregado de realizar esse trabalho. Se o espólio do escritor guarda as cópias, os seus originais andam espalhados por múltiplos arquivos pessoais. Ninguém ignora que são incontáveis os destinatários das suas missivas e que, em alguns casos, caíram na posse de escrupulosos herdeiros, avessos a que elas percam o foro íntimo e privado.

    O escritor duriense era mestre a escrever uma carta. Há quem afirme que o fazia ao “correr das teclas” da máquina de escrever. E, que nunca escrevia por escrever, como que se estivesse a cumprir uma obrigação. Como diz Pires Cabral, tinha uma verdadeira perícia no saber “bolear uma carta de maneira a que não fosse um recado seco, mas algo emocionalmente envolvido.”

    Convém lembrar que João de Araújo Correia esteve, desde sempre, ligado aos bombeiros da Régua.

    O escritor, como devoto admirador dos bombeiros, foi amigo de muitos directores, comandantes e dos velhos Soldados da Paz. Nunca escondeu a sua carinhosa simpatia e dedicação pelos valores do voluntariado e do associativismo. O seu pai que fora bombeiro, por algum tempo nas primeiras corporações, no tempo dos fundadores, permitiu-lhe conhecer os primórdios da instituição. Em sua casa guardou, até morrer, uma tábua dos sinais de incêndios, que o faziam saber em que rua da vila andava o fogo, quando sino da Capela do Cruzeiro dava os respectivos toques. Conviveu de perto com alguns dos bombeiros da velha guarda, com quem fez tertúlias, como os seus amigos, o artista e Comandante Afonso Soares e o delicado Lourenchinho. A convivência que deles tinha, levou-o a escrever sobre alguns dos seus personagens mais castiços. Recordou-nos do passado, figuras da estatura de Camilo Guedes, José Avelino, o Riço, o Justino Lopes Nogueira e o funeral do capelão Padre Manuel Lacerda, que não chegou a ver passar na rua…! Emocionou-se com a morte trágica do bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, no incêndio da Casa Viúva Lopes, ao dedicar-lhe um soneto. Teve a sorte de frequentar o primeiro quartel e de admirar a velha estante cheia de livros, que o seu olhar de rapazinho de dez ou onze anos, nunca mais os esqueceu. Mais tarde, aceitou dar a sua colaboração no jornal da associação “Vida por Vida”, órgão oficial dos bombeiros, dirigido pelo talento literário do seu filho Camilo. Nas páginas desse extinto boletim, anos a fio, escreveu ele admiráveis crónicas, mais tarde reunidas nos livros “Pátria Pequena” e “Enfermaria do Idioma”.

    João de Araújo Correia correspondeu-se, amiúde vezes, com os directores dos bombeiros da Régua. Algumas das cartas que lhes dirigiu, fomos encontrar arquivadas em velha caixas de madeira, ao lado de documentos menos valiosos, como facturas, orçamentos com previsões de grandes sonhos e obras e relatórios de contas do muito se recebeu e que se gastou.

    Quando as consultamos, sentimos que o escritor nelas nos revela a sua envolvência no meio social. As suas pequenas observações da ambiente quotidiana privilegiam o valor e trabalho dos bombeiros como um exemplo de grandeza humana.

    Aos seus olhos, os bombeiros são uma força invicta: “Quando tudo falece, pela palavra tudo, a longa vida dos nossos bombeiros é um sinal de força invencível. Comparo-a à vida de uma árvore, que tenha escapado à fúria dos temporais para se prolongar como símbolo de eternidade” e merecem-lhe este elogio: “A Régua, se não vegeta, é porque vai vivendo no ânimo dos seus Bombeiros.” Com uma apreciação assim, é suficiente para os bombeiros lhe ficarem, para sempre, gratos.

    As cartas de João de Araújo Correia para os bombeiros da Régua, para lá do esmero e originalidade da linguagem em que são escritas, testemunham a sensibilidade do escritor, a sua urbanidade, o respeito no trato afectuoso pelos seus concidadãos, e a grande consideração que tributa à associação e ao seu corpo de bombeiros.

    Propomos a leitura atenta de seis cartas das suas cartas:

    PRIMEIRA CARTA:

    "Exmo Senhor
    Alfredo Baptista
    Dig.mo Secretário da Direcção dos B. Voluntários

    Eu e minha irmã solteira, Maria Ana de Araújo Correia, sócios contribuintes dessa Associação, agradecemos reconhecidos os serviços prestado pela sua ambulância no dia 18 do corrente. O que se não agradece, por falta de palavras próprias, é a solicitude com que foi executado. Há dedicações tão perfeitas, que só a gratidão silenciosa, indelevelmente guardada no coração, lhes poderá corresponder. Pertence a essa espécie, inefável por natureza, o modo como os Bombeiros procederam, transportando minha irmã, recentemente operada de fractura óssea, desde a Casa de Saúde de Lamego até o meu domicílio.
    Queira V. Ex.ª aceitar os meus respeitosos cumprimentos.

    Peso da Régua, 28 de Abril de 1955"

    SEGUNDA CARTA:

    “Peso da Régua, 4 de Agosto de 1960

    Ex.mo Senhor
    Dr. Júlio Vilela
    Dig.mo Presidente da Direcção dos
    Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

    Ex.mo Senhor e meu prezado Amigo:

    Venho renovar a V. Exª o meu bem-haja pela sessão efectuada em minha honra, a 30 de Julho último, no salão nobre da associação a que V. Exª preside.
    A sessão, realizada acto contínuo à minha chegada de Lisboa, onde escritores e amigos me festejaram como publicista, desvaneceu-me como reguense amigo da terra. Pude verificar o contrário do que imaginava. A Régua, pouco afecta a espiritualidades, salvou-se no meu conceito do labéu de ingrata com quem a representa, melhor ou pior, fora do limite das suas barreiras. Graças a V. Exº e outros membros da direcção, nomeadamente o Sr. Alfredo Baptista, patenteou-se a meus olhos e à consciência do resto do país a dignidade da nossa vila. Bem o estimo por mim e pelo meio em que vivo. Seria vergonhoso que o meu amor ao Douro, manifesto em cada um dos meus escritos, fosse correspondido com desdém na sua capital.
    Respeitosamente me subscrevo,

    De V. Exª
    Admirador, patrício e amigo reconhecido”

    TERCEIRA CARTA:

    “Peso da Régua, 27 de Janeiro de 1970

    Ex.mo Senhor
    Dr. José Lopes Vieira de Castro
    Dig.mo Presidente da Associação dos
    Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

    Ex.mo Senhor:

    Respondo ao prezado ofício de V. Ex.ª datado de 22 do corrente.
    Tanto V. Ex.ª como a Ex.ma Direcção a que preside consideram imprescindível a minha colaboração do boletim VIDA POR VIDA. Não estou de acordo com V. V.Ex.as neste particular, Não falta quem escreva no boletim VIDA POR VIDA para lhe manter a boa tradição de brilho e de valor.
    Concordo com V. V. Ex. as em considerar que foram alheios à actual Direcção os motivos que me afastaram do boletim VIDA POR VIDA. Nestas condições, recusar-me a colaborar de novo seria demasiada impertinência e até grosseria. Sou incapaz de praticar esses delitos perante a boa vontade que V. V. Ex. as manifestam no sentido do meu regresso ao VIDA POR VIDA – órgão de uma associação digna do meu zelo e até do meu sacrifício.
    De acordo com a minha saúde, que vai sendo pouca, e com o meu vagar, quase sempre reduzido a escassos minutos, colaborarei confiado nas atenções que mereçam as minhas atenções. Assim o espero de V. Exª e de quem superintenda na redacção do jornal.
    É-me grato manifestar a V. Exª, nesta oportunidade, a minha consideração e respeitosa estima.

    A BEM DA HUMANIDADE”

    QUARTA CARTA:

    “Peso da Régua, 26 de Novembro de 1971

    Exmo Senhor
    Joaquim Lopes da Silva Júnior
    Dig.mo Vice-Presidente da Direcção dos Bombeiros

    Meu Ex.mo Amigo:

    Venho agradecer-lhe o honroso convite para me associar às comemorações de novo aniversário dos nossos bombeiros. Muito obrigada por se lembrarem mim para tomar parte numa série de solenidades que inspiram grande simpatia. Sempre me comoveu, desde a minha infância, uma festa tão inefável como festa de família.
    Muito gostaria de comparecer, como sócio contribuinte, no grupo dos meus consócios e perante o Corpo Activo para o saudar por mais uma vitória. Não é pequena vitória completar sem declínio 91 anos de idade.
    Opõe-se ao meu desejo, neste fim de Novembro, a minha pouca saúde e outros empecilhos. Não me é possível removê-los neste momento para me sentar, como no ano passado, à mesa dos meus amigos, que são os nossos Bombeiros. Mas, para provar que lhe quero bem, não desisto de colaborar com eles no intervalo das festas.
    É já um truísmo cansado isto de se dizer, a propósito dos nossos bombeiros, que são a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum. Convém, no entanto, fazer desse truísmo um motivo de orgulho. Convém repeti-lo em cada ano com tanta satisfação como desgosto. A Régua, se não vegeta, é porque vai vivendo no ânimo dos seus Bombeiros.

    Cordialmente me subscrevo,

    De V. Exª
    Amigo certo e reconhecido”

    QUINTA CARTA:

    “Peso da Régua, 27 de Novembro de 1975

    Ex.mo Senhor
    Dias Montesinho
    Bombeiros Voluntários
    Peso da Régua

    Ex.mo Senhor:

    Na pessoa de V. Excia, digníssimo secretário da Direcção dos Bombeiros desta vila, felicito a nobilíssima corporação por mais um ano de vida. Cumpro este dever como se cumprisse um voto religioso. Quando tudo falece, pela palavra tudo, a longa vida dos nossos bombeiros é um sinal de força invencível. Comparo-a à vida de uma árvore, que tenha escapado à fúria dos temporais para se prolongar como símbolo de eternidade.
    Por falta de saúde e outras atribulações, é-me impossível tomar parte nas festas comemorativas do venerável aniversário. Fico-me por casa, sem deixar de agradecer a V. Exª o honroso convite para o acompanhar na execução do programa constante do seu ofício 83/75.

    De V. Exª
    Cordial e respeitosamente”

    SEXTA CARTA:

    “13 de Julho de 1980

    Ex.mo Senhor
    Secretário da Direcção dos
    Bombeiros do Peso da Régua

    Ex.mo Senhor:

    Para corresponder ao amável convite de V. Excia, para colaborar num livro comemorativo do centenário da sua Associação, tive a honra de lhe remeter, pelo Sr. António Luís Pinto, empregado da Imprensa do Douro, três originais.
    Trata-se de uma crónica inédita, intitulada História dum Soneto, e de dois artiguinhos que devem ser agora republicados.
    Suponho que nenhum dos meus escritos, enviados a V. Excia pelo Sr. António, destoarão da índole do livro. Todos aludem a tempos idos da Associação.
    Como tenho tido medo a gralhas tipográficas, não dispensarei a revisão de provas. Podem estas ser enviadas pelo dito Sr. António Luís Pinto – seja qual for a tipografia que imprima o livro.
    Com a maior estima e consideração.

    At.ª e Obg.ª”

    Se os bombeiros da Régua para evocar João de Araújo Correia não sabem expressar mais palavras de admiração, saudade e respeito, não se esquecem de retribuir a gratidão e a luz com os foi distinguindo ao longo de toda uma vida. Os bombeiros conhecem, como mais ninguém, esta verdade: não há no mundo exagero mais belo que a gratidão, ela é a memória do coração…!
    - Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.