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terça-feira, 5 de março de 2013

UM EXEMPLO DE CIDADANIA

A história de uma Corporação, como a dos Bombeiros da Régua, faz-se de muitas sinergias e diversas cumplicidades. E, assim, na sua longa existência foram muitas as personalidades que contribuíram para a concretização dos seus projectos. Tal foi o caso de Nuno Simões. Nascido em 1894, em Vila Nova de Famalicão, foi nomeado, ainda muito jovem, Governador Civil de Vila Real, em 1915 (na sequência da revolução de 14 de Maio, que depôs a ditadura de Pimenta de Castro), vindo a ser eleito deputado pelo Douro em várias legislaturas durante a Primeira República. Seria ainda ministro do Comércio nos governos de Cunha Leal (16 de Dezembro de 1921 a 6 de Fevereiro de 1922), Álvaro de Castro (18 de Novembro de 1923 a 6 de Julho de 1924) e Domingos Pereira (1 de Agosto a 17 de Dezembro de 1925). Pelo seu percurso político e profissional, como advogado, rapidamente se tornou uma figura de grande destaque a nível nacional.

Não sendo natural do Douro, Nuno Simões nutria por esta região uma enorme estima. Enquanto deputado, e em sintonia com o movimento duriense, as suas intervenções pautaram-se pela defesa da questão regional, a ele se devendo a apresentação, no Parlamento, da Lei nº 881, que criaria condições para o incremento da fiscalização das disposições que regulavam o comércio dos vinhos do Porto. Mais tarde, já retirado da vida política activa, moveria, repetidamente, influências em benefício da Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua, não tendo nunca recusado nenhum pedido que lhe fosse feito, como referia o vice-presidente da Direcção, José Pinto da Silva, em 1954. Dessa forma, viria a assumir uma importância cabal na realização de importantes melhoramentos na década de 1950.

Nuno Simões era um homem de grande influência no meio político. E era, principalmente, um filantropo. Apesar de afastado pelo Estado Novo, devido à sua posição de moderada hostilidade ao regime, continuava a movimentar-se junto dos meios decisores, utilizando a rede de sociabilidades políticas que construíra, em benefício das populações. Em face disto, José Pinto da Silva decidia-se a solicitar-lhe novamente a sua «valiosa protecção», desta vez a propósito de um subsídio para o conserto da ambulância da Corporação. Estávamos em Abril de 1954. A Direcção havia feito uma exposição ao Director-Geral de Assistência, mas havia-se deparado com um problema burocrático, colocado pelo Director-Geral de Administração Política e Civil. Sabendo que Nuno Simões se «dava muito bem» com o Director-Geral, pedia a sua intervenção junto deste a favor da concessão do referido subsídio. E terminava agradecendo em nome de toda a Corporação «que tanto e tanto lhe deve».

Em Agosto do mesmo ano, Nuno Simões estava a veranear na estância de Pedras Salgadas, tendo sido visitado por uma delegação dos Bombeiros que lhe foram apresentar, de viva voz, os agradecimentos pelas suas diligências, a par de um novo pedido de ajuda. Nesse ano de 1954, haviam sido reiniciadas as obras do novo Quartel. A Direcção havia apresentado um pedido de subsídio ao ministro das Obras Públicas (Eng. Arantes de Oliveira) e vinha agora solicitar os bons ofícios de Nuno Simões no sentido de que fosse concedido. Em Dezembro, em nova troca de correspondência, o tom era de esperança pois haviam recebido um ofício dos Serviços de Melhoramentos Urbanos pedindo mais elementos quanto ao custo total. Tal facto prenunciava a atribuição do desejado subsídio, que viria, de facto, a ser concedido, contribuindo para a conclusão desta primeira fase, em 1955.

Em inícios de 1957, a preocupação voltava-se para a instalação de um Posto Médico no Quartel dos Bombeiros. A sua edificação estava quase concluída e havia já sido adquirido o material necessário ao Instituto Pasteur. Em Abril desse ano, o vice-presidente José Dias da Silva informava Nuno Simões que seria dado, ao Posto Médico, o nome do Dr. Trigo de Negreiros (ministro do Interior, que doara 30 contos para a sua construção) e que seria o próprio a inaugurá-lo, aproveitando a deslocação que efectuaria à Régua, em 5 de Maio desse ano, para inauguração de um novo Hospital Sub-regional. Demonstrando a importância dada à opinião e orientação de Nuno Simões, perguntava-se também se deveria ser endereçado um pedido de subsídio à Fundação Calouste Gulbenkian para aquisição de um aparelho reanimador, considerado de enorme utilidade para a Régua bem como para todo o distrito de Vila Real, visto não existir nenhum. O referido aparelho custava onze contos, quantia que a Associação não podia despender por estar a ultimar a segunda fase das obras no Quartel, inauguradas ainda nesse ano, pelo ministro do Interior.

A um outro nível, Nuno Simões revelar-se-ia fundamental em garantir a estabilidade dos órgãos sociais da Corporação. Em 3 de Julho de 1960, o presidente da Direcção, Dr. Júlio César Vilela (filho de Júlio Vilela, importante personalidade local, que fora Escrivão de Direito na Régua, vice-presidente da Comissão Administrativa e administrador do concelho, director do Asilo José Vasques Osório e director do semanário «A Defesa do Douro»), referindo-se a Nuno Simões como «carinhoso amigo e protector», aborda-o a propósito dos problemas suscitados com a escolha de um novo Comandante. O caso era considerado melindroso, e fora gerado pela circunstância de haverem atingido o limite de idade para se manterem no serviço activo o comandante do Corpo de Bombeiros, Lourenço Pinto de Medeiros (que entretanto havia já falecido), e o chefe do mesmo Corpo, António Guedes Castelo Branco (filho do antigo comandante Camilo Guedes). Depois de ponderar, a Direcção decidira-se por Carlos dos Santos, chefe de Secretaria na Santa Casa da Misericórdia da Régua. Muito jovem, com apenas 37 anos de idade, mas considerado de «aprumo invulgar no meio», possuía o 6º ano dos liceus e o Curso de Sargentos Milicianos preenchendo, por isso, todas as condições para o bom desempenho do cargo. Esta nomeação fora aprovada pelo Inspector de Incêndios da Zona Norte e, pela acção do novo Comandante, revelara-se acertada. O problema surgira quando Carlos dos Santos manifestara a intenção de mudar de emprego, com vista a auferir melhor salário para sustento da sua família, tendo prometida a sua colocação no Instituto Pasteur. Tal significava mudar-se da Régua e, em consequência, deixar o cargo de Comandante. Ora, a Corporação não o podia perder. Entretanto, o gerente da filial da Régua da Sociedade Industrial Farmacêutica (proprietária dos Laboratórios Azevedos), fora afastado por suspeita de desfalque. O lugar encontrava-se vago e a Direcção vê aqui uma forte possibilidade de solucionar a questão. Em seu entender, Carlos dos Santos era a pessoal ideal para o cargo, dados os seus conhecimentos e experiência profissional. Além disso, o vencimento era superior ao auferido no cargo que desempenhava na Misericórdia. E os Bombeiros não perderiam o seu Comandante.

Logo, era pedido o auxílio de Nuno Simões no sentido de conseguir a sua colocação, alegando-se não se conhecer «quem tão pronta e nobremente se tenha interessado pelos seus problemas e os tenha resolvido com maior magnanimidade». A sua resposta foi rápida e eficaz: Carlos dos Santos viria a manter-se como Comandante até 1990.

Como dizia ao início, a história de uma Corporação faz-se de sinergias e cumplicidades. Os factos relatados são disso um bom exemplo. A ligação entre Nuno Simões e os Bombeiros da Régua, constante e de grande proximidade, influenciou positivamente os destinos da Associação, em momentos cruciais da sua existência. Ao mesmo tempo, põe em evidência o quanto é possível alcançar-se quando a cidadania se exerce ao serviço das populações.
- Historiadora Carla Sequeira, Fevereiro de 2013.
Uma publicação de Carla Sequeira - O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo: a «questão duriense» na economia nacional - Tese de Doutoramento em História apresentada à Faculdade de Letras do Porto em 2010.


Clique nas imagens para ampliar. Texto de  Carla SequeiraImagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo AlmeidaEdição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013. Também publicado no jornal semanário "O Arrais", edição de 6 de Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos. Refªs. - Carla Sequeira, Escritos do Douro

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Familiaridade

O principal motivo (mas não o único) para se visitar a exposição da colecção de catorze retratos pertencentes à Misericórdia da Régua que está patente no Museu do Douro é, do meu ponto de vista, o retrato de Pedro Verdial, assinado por Afonso Soares e datado de 1905. O retrato é tão impressionante (é esse o termo) que foi escolhido pelo Museu como imagem de marca da exposição.

Afonso Soares (1852-1939) foi um jornalista, homem de letras, comandante dos bombeiros da Régua e artista amador. Todos os retratos assinados por ele são singulares mas o de Pedro Verdial, um benemérito reguense de origem galega, destaca-se pela inquietação que provoca em quem o observa.

O homem era muito feio para os critérios nossos contemporâneos, e mesmo para os da sua época. Afonso Soares não tentou torná-lo mais bonito, mas tão pouco o dotou da chamada profundidade psicológica com nos habituámos a apreciar os retratos modernos: nos olhos de Pedro Verdial, na rigidez da sua pose, na maneira como emerge do fundo do quadro com uma espécie de rigor e pallor mortis, vemos alguém que é familiar mas que, apesar dessa familiaridade, nos é profundamente alheio. Estamos perante uma pintura opaca, fechada sobre os seus próprios meios e limitações, que não permite, devido à sua inquietante familiaridade, que experimentemos qualquer empatia. Este quadro não “dialoga” connosco.

Para que se perceba melhor a nossa inquietação, sugiro que se compare esta pintura com o retrato das crianças Hüsenbeck (de que se reproduz aqui um pormenor), executado cem anos antes pelo pintor alemão Otto Runge, e com uma fotografia de Loretta Lux, feita cem anos depois. Tanto as crianças de Runge e Lux como o velho Verdial são familiares e estranhos. Olha-se-lhes para os olhos, o famoso “espelho da alma”, e não se vê lá nada excepto, talvez, o abismo branco que por vezes existe dentro da nossa.
-  Paulo Varela Gomes, 10 de Fevereiro de 2013

OS RETRATOS DE AFONSO SOARES NO MUSEU DO DOURO
Graças à amabilidade de José Alfredo Almeida, tive acesso ao trabalho académico sobre a coleção da Misericórdia da Régua exposta no Museu do Douro, escrito por João Filipe Tomé Duarte e orientado pelo professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Agostinho Araújo (2011). As informações de que disponho sobre essa coleção provêm deste trabalho.
Estão identificados três autores do conjunto de retratos de benfeitores do Hospital D. Luís I e da Santa Casa da Misericórdia da Régua expostos no Museu do Douro: Francisco José Resende, Marques de Oliveira e Afonso Soares. Dos três, só este último era auto-didacta, não tendo, ao que parece, beneficiado de uma educação artística formal.

Todavia, quando olhamos para os retratos, não há qualquer dúvida de que aquele que tem sobre nós maior impacte foi pintado por Afonso Soares: refiro-me ao retrato do benemérito galego Pedro Verdial, datado de 1905. Aliás, o Museu do Douro escolheu esta obra, e não qualquer uma das outras, para anunciar a exposição na Internet.

Por mim, atrever-me-ia a dizer que o retrato de Pedro Verdial, apesar da inabilidade técnica que também o caracteriza (a modulação excessivamente dura dos relevos da roupa, por exemplo), é um dos retratos mais dignos de atenção da pintura portuguesa de entre o século XIX e os nossos dias. Acresce que quase todos os outros retratos da coleção pintados por Soares me parecem mais fortes pictoricamente que os que foram executados pelos outros artistas.

Neste artigo vou procurar enumerar algumas razões para este paradoxo: o pintor menos preparado academicamente é aquele que, em minha opinião, fez retratos mais interessantes (remeto também para o meu pequeno artigo sobre o assunto no Público de 9 de Fevereiro último).

O retrato de Pedro Verdial impressiona-nos antes de mais porque, de entre todos os retratados da coleção, é certamente aquele que tem um rosto e uma cabeça mais característicos. Afonso Soares acentuou com grande talento os traços do seu modelo, a calvície, o nariz, as rugas, as suíças grisalhas, compondo uma figura para a qual nos sentimos compelidos a olhar: eis um rosto que não é nada banal ou desinteressante. Eis um rosto que não pode passar despercebido.

Claro que não é somente aos traços físicos do modelo que se deve o impacte do retrato: o pintor podia ter suavizado esses traços, dotando o quadro de dispositivos de dialogo com o observador, como aliás fez noutros retratos seus da coleção, seja colocando o rosto a três quartos, seja pintando uma mão apoiada no rosto, seja, enfim, colocando um sorriso no rosto do seu modelo.

Mas não foi isso que Soares escolheu fazer. Repare-se que em todos os seus retratos se verifica a mesma rigidez da pose e não-transparência do olhar. Como escreve Tomé Duarte, Afonso Soares “descura a execução do retrato psicológico dos personagens”. No retrato de Pedro Verdial a rigidez é de tal modo acentuada que se torna hierática: há uma imobilidade da pose e do olhar que é tão poderosa como a severidade dos traços fisionómicos.

Mas são precisamente estas características que tornam os retratos de Soares tão interessantes.

José Alfredo Almeida enviou-me uma fotografia de um rosto de Cristo pintado por Afonso Soares. Sem ter disso a certeza, penso que se trata de um estudo ou cópia a partir de uma pintura do século XVIII, provavelmente espanhola, mas invoco aqui esse quadro porque não vejo nele qualquer inabilidade técnica. Pelo contrário, trata-se de uma pequena obra que demonstra que Afonso Soares era capaz de pintar como pintavam os artistas académicos.
Nestas circunstâncias, torna-se ainda mais pertinente averiguar porque não pintou assim os seus retratos.

Uma primeira pista poderá residir no facto de terem sido executados a partir de fotografias (como, aliás, todos os retratos da coleção, segundo Tomé Duarte). A fotografia é inerte. Está ali, à frente do pintor, sem respirar, sem trocar duas palavras, sem sorrir... ou sem deixar de sorrir. É normal que resulte em retratos menos ricos em sugestão.

Regresso adiante ao problema da fotografia mas adianto desde já que esta explicação não me parece totalmente convincente. Não creio que a rigidez dos retratos pintados por Afonso Soares resulte por inteiro do facto de se terem baseado em fotografias. Afinal de contas, também o foram os retratos de outros pintores na coleção, que são muito mais “naturalistas” que os de Soares.

Proponho dois conceitos para podermos pensar este problema: o conceito cristão de ícone e o conceito hindu de darshan.

Podemos relacionar entre si estes conceitos (como alguns estudiosos nos ensinaram). O ícone, criado pelo cristianismo oriental há mais de mil e quinhentos anos a partir de precedentes romanos e orientais, e ainda dominante no culto das igrejas Ortodoxas, é uma imagem de Cristo, de Nossa Senhora ou de Santos, que se caracteriza, como se sabe, pela sua frontalidade, rigidez, olhar fixo e inexpressivo. O conceito hindu de darshan, por seu lado, dá conta do exercício espiritual praticado pelo devoto que consiste em olhar longamente uma imagem sagrada que, não tendo qualquer expressão que suscite empatia, permite, por isso mesmo, que o devoto se “perca” na contemplação.

Como se percebe, é precisamente porque o ícone cristão ou a imagem sagrada hindu não “dialogam” com o observador que este pode ficar como que hipnotizado por elas, mergulhando no darshan que caracteriza a sua força espiritual.

Neste momento, poderão estar os leitores a dizer para si mesmos que não tem qualquer cabimento ou lógica invocar estes conceitos e precedentes a propósito de um retratista amador de Peso da Régua na primeira metade do século XX.

Mas, agradecendo antecipadamente a paciência do leitor, peço-lhe que regressemos então à fotografia.

Quando apareceu no início do século XIX, e até à sua democratização tecnológica e económica, a fotografia revalidou o conceito de ícone. De facto, a fotografia exercia um efeito-darshan, deslumbrando o olhar indefeso do observador através da crença, como que sagrada, de que em cada imagem fotográfica há um vestígio verdadeiro da realidade, incluindo da realidade que já passou. Como se sabe, certos povos ditos “primitivos”tinham um verdadeiro pavor da fotografia porque acreditavam que esta lhes capturava o espírito e podia fazer regressar os mortos, mas até as pessoas mais “civilizadas”que, no século XIX, lidavam com a fotografia começaram por olhar para as imagens de uma maneira pouco utilitária, quase mística. Os homens e mulheres que posavam para a fotografia nessa época tinham consciência da operação “mágica” em que estavam envolvidos: a sua verdade ia ser transposta para uma película foto-sensível. Até há relativamente pouco tempo, como demonstraram alguns trabalhos de antropólogos, os indianos das classes populares faziam rodear o acto de tirar um retrato de inúmeras precauções: o olhar tinha que ser frontal, as mãos tinham que ficar à vista, a roupa devia ser de cerimónia, etc. Basta conhecer-se superficialmente o retratismo fotográfico ocidental do século XIX para nos apercebermos que as coisas também se passavam assim nestas partes do mundo.

Ou seja: Afonso Soares, como todos os outros pintores, trabalhou com retratos-darshan e retratos-ícone, mas só ele permitiu que essas características passassem para a sua pintura, ao contrario dos seus colegas que procuravam impedir os seus quadros de se parecerem com fotografias. Sendo mais “inábil”, Afonso Soares foi afinal mais moderno.

Recorde-se que os modernistas admiravam as artes primitivas, mas também que o naturalismo e o realismo não foram as únicas correntes da pintura do século XIX e do início do século XX. No quadro da pintura religiosa manifestava-se frequentemente a tendência para recorrer a modelos “primitivos” (a pintura do século XV e até os ícones bizantinos). Estes pintores acreditavam que só esses modelos podiam suscitar a verdadeira devoção dos crentes, justamente porque não eram “realistas”.

No pequeno artigo que escrevi para o Público, referi a propósito de Afonso Soares um retrato de crianças executado pelo pintor alemão Otto Runge (1777-1810). É muito interessante o contraste que existe na obra de Runge entre os retratos de adultos, que são absolutamente “normais”, quer dizer, são retratos psicológicos à maneira moderna, e os retratos de crianças, nas quais Runge detectou de maneira particularmente incisiva a inexpressividade bruta que estas por vezes apresentam, o seu alheamento interior. Runge contesta a representação das crianças como pequenos anjos, então vulgar, e apresenta-as enquanto verdadeiros alienígenas, seres estranhos, para os quais não havia convenções de representação. Esta inquietante familiaridade é precisamente aquela que, creio eu, transparece nos retratos de Afonso Soares.

Procurei neste artigo pensar a pintura de Afonso Soares fora da antinomia académico-amador que se torna uma verdadeira armadilha se nos impedir de olhar para os retratos de uma maneira ao mesmo tempo histórica, situada na sua época, e trans-histórica, quer dizer, atravessando toda a história das artes. E sobretudo se nos impedir de desfrutar da inquietação que os singulares retratos de Soares provocam em nós.

Clique nas imagens para ampliar. Textos de Paulo Varela Gomes publicados com autorização do autor. Sugestão de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal semanário "O Arrais", edição de 20 de Fevereiro de 2013.. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013.Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Recortes - Museu do Douro inaugura exposição de retratos antigos

Régua - O Museu do Douro (MD) inaugura sexta-feira, na Régua, uma exposição de 13 retratos, que estavam degradados e esquecidos numa cave, numa altura em que vive numa situação difícil devido à indefinição quanto à extinção.

O Governo anunciou em Setembro a intenção de extinguir a Fundação Museu do Douro. Entretanto na região, a expectativa é que a fundação não seja efectivamente extinta, mas, enquanto não for conhecida a decisão final, mantém-se a ansiedade.

“Estamos à espera e estamos um pouco sufocados. O grande problema é que a lei não nos autoriza a receber dotações dos municípios ou do Governo”, afirmou hoje à agência Lusa o director do MD, Fernando Seara.

O responsável referiu que a unidade museológica está, neste momento, “bloqueada em termos financeiros”.

“Porque o Orçamento do Estado, assim como a lei do projecto de extinção do museu tem um artigo que inibe as autarquias, nossas fundadoras, de cumprirem com a dotação”, acrescentou.

Foi com recurso aos meios próprios do MD que foi organizada a exposição ‘Santa Casa da Misericórdia – Colecção de Retratos’, que é inaugurada sexta-feira, na sede da unidade museológica.

Os 13 quadros retractam figuras, desde o rei D. Luís I, D. Antónia Adelaide Ferreira a pessoas desconhecidas, que foram beneméritas e contribuíram para a construção e manutenção do Hospital D. Luíz I.

“Retratá-las foi também uma forma de as homenagear como benfeitoras do hospital”, explicou Fernando Seara.

As obras de arte ficaram como que esquecidos na cave das antigas instalações da Santa Casa da Misericórdia da Régua. Mais tarde foram encontradas já em estado de degradação e algumas até com rasgões profundos.

O MD e a Misericórdia juntaram-se para preservar este património, num trabalho de restauro e de investigação que durou um ano.

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Também na sexta-feira é inaugurada a exposição de 100 fotografias ‘O Douro de Georges Dussaud’, um fotógrafo francês que retratou a região duriense dos anos 80.

A mostra já esteve em Lamego, mas agora, na Régua, tem como novidade mais fotografias que o autor tirou, já em 2012 e nos mesmos locais, mas 30 anos depois.

A partir de sexta-feira é também possível ver de novo a exposição temporária “Imagens do vinho do Porto: Rótulos e Cartazes” e que alerta para a importância da embalagem, marca e cartaz do vinho do Porto,

Outra novidade é a inauguração de um marco dos Correios, dos tradicionais vermelhos, dentro das instalações do MD, uma iniciativa que pretende incentivar a tradição e que o director considera que estava a cair em esquecimento, de mandar um postal.
- Recorte da net - In "Noticias ao Minuto"

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O pito de Santa Luzia

Com a devida vénia In "traga_mundos" - Publicada por Sampaio Figueira Alves, António Alberto em Quinta-feira, Dezembro 13, 2012.

A lenda
Foi uma moçoila da aldeia de Vila Nova, em Vila Real, que os inventou quando foi servir para o Convento de Santa Clara, onde tomaria o hábito depois dum noviciado entre a cozinha e o apoio aos pobres e aos doentes a que a ordem, na sua misericórdia e caridade infinitas, dava guarida de hospital.

Maria Ermelinda Correia, depois Irmã Imaculada de Jesus, era deveras gulosa. Foi este defeito que levou a família a pedir a graça da clausura na esperança de lho transformar em virtude.
(...) No intervalo dum silêncio de «regra» conventual falava de doces, a resposta era sempre a mesma: «nem vê-los».

Na sua inocência, começando a percorrer os caminhos da Fé e da Doutrina para o noviciado tornou-se devota acérrima de Santa Luzia, orago dos cegos e padroeira das coisas da vista.

Foi assim que os pitos de Santa Luzia lhe foram consagrados, e como tal testemunha a festa que ainda hoje, a 13 de Dezembro, na capela de Vila Nova, mantém a tradição.» [Casa Lapão]

Clique  nas imagens para ampliar. Com a devida vénia In "traga_mundos" - Publicada por Sampaio Figueira Alves, António Alberto em Quinta-feira, Dezembro 13, 2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Pai da Fanfarra

Sr. Presidente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua escrevo-lhe estas linhas com o objetivo de colaborar na sua obra de pesquisa histórica sobre os nossos bombeiros, obra que vem sendo complementada pelo muito que já fez em prol do seu património cada vez mais rico, quer material quer socialmente.

Esta narrativa corresponde á vida de um amigo, bombeiro, de nome António Jacinto Dias, o fundador da nossa Fanfarra, também conhecido pelo “homem do campo do Sport Clube da Régua”.

Natural de Fontelas, António Dias viveu a sua juventude no Peso da Régua. Ingressou no comércio, na firma Viúva Luís Vicente e Rodrigues, onde eu também me iniciei em abril de 1941. Foi para mim um conselheiro e um exemplo, pelo seu comportamento, quer profissional quer pessoal. Ficámos amigos.

Pouco depois de casar com a querida “Mariazinha”, António Dias, já com fama profissional, foi convidado para ir trabalhar para uma das melhores lojas de Sá da Bandeira, no Porto, a Casa Omega, onde se destacou pela sua postura e saber.

Após doze anos, regressou à sua terra para fundar, com seu irmão José Dias, os Armazéns do Mercado, uma inovação, na época, para a Régua. Cidadão ativo construiu a sua casa e a sua vida ao serviço da comunidade e tornou-se depressa conhecido pelo “homem do campo”, em prol dos seus trabalhos de voluntariado no campo do Sport Clube.

É em 1977 que surge a oportunidade de eu lhe manifestar o meu apreço e admiração convidando-o para fazer parte da minha direção, nos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua. Mostrou-se desde logo interessado em criar uma fanfarra e, após a recolha de informações necessárias para o efeito (apoio dos Bombeiros de Coimbrões, em Vila nova de Gaia), conseguimos realizar o seu sonho. Ele próprio arranjou um donativo – as galochas das majorettes – através da Sapataria Porto. Nos primeiros ensaios, ainda veio um maestro de Vila Real, mas depressa António Dias tomou as rédeas do grupo e a Fanfarra dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua galgou o distrito e começou a ser convidada para variadas festas, ganhando fama e prestígio.

Só a falta de saúde lhe veio toldar a felicidade que então sentia. Vítima de uma doença que acabaria por ser fatal, esteve cerca de dois anos em tratamento, acompanhado pelo seu médico – Doutor Adelino Adolfo do Hospital de S. João do Porto – que se deslocava periodicamente à Régua para lhe ministrar um remédio que na altura vinha da América. O pai da nossa Fanfarra morreu nos meus braços, no dia que havíamos planeado fazer um passeio a Chaves, por seu especial desejo.

O seu funeral confirmou a homenagem merecida de todos os seus amigos e conterrâneos. A presença dos nossos bombeiros e especialmente dos elementos da Fanfarra foi um momento inesquecível de emoções e homenagem verdadeiramente sentida.

Aqui quero deixar a minha gratidão ao amigo e também ao homem que serviu a sua terra com dignidade e amor.

Ele ficará sempre na memória dos nossos Bombeiros como o “Pai da Fanfarra”.

Porto, 30 de Outubro de 2012,
- António Bernardo Pereira - Antigo Presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua.
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Memórias do Comandante Lourencinho

Num aditamento ao texto que escrevi há três ou quatro semanas e que aqui se publicou, eu disse que o mesmo ia ser escrito no português da minha escola. Pois o texto de hoje obedece aos mesmos princípios, seja pela idade que vou tendo, seja pelo respeito aos bons dicionários que tenho na biblioteca. Adiante…

Depois da escola que me ensinou a ler Camilo ou o sermonário do padre António Vieira, continuei os estudos na Faculdade de Medicina do Porto, rés-vés o hospital de Stº. António. Foi por esse tempo que conheci o senhor Lourenço Pinto Medeiros, o Lourencinho, de boa memória. Também por esse tempo, nas férias grandes ou pequenas, eu deixava para trás o casão da Faculdade e vinha para a casa paterna, ou avoenga, casa de quinta, no lugar de Remostias. No Porto ficavam os livros de estudo, anatomias, patologia geral, embriologia, obstetrícia, propedêuticas, e por aí fora, todos eles em repouso e entregues a si mesmos, como se cada qual fosse uma leira de terra em pousio.

Gostava de trazer comigo, a boa companhia do tratado de Fisiologia, só para continuar os estudos em dias feriados… O funcionamento do corpo humano, os seus segredos e interrogações, até alguns milagres, tudo isso me fascinava e tudo isso chegou a ser tema de amenas conversas com o Lourencinho, ali na tabacaria de meu pai, na rua de Serpa Pinto.

Era nas férias grandes, naquelas manhãs ou tardes de um verão canicular que muitas vezes eu deixava para trás a meia-encosta de Remostias, toda ela com sucessivos quadros de uma natureza aprimorada, e vinha por aí abaixo até ao centro da Régua, mesmo no Agosto que dia- a-dia se ia chegando às vindimas, já com tantos e tantos cachos aflorados de oiro e de pintor. Feito vádio, modo de dizer, vinha até à Régua, eu e o tratado de Fisiologia, a fazermos uma pousada na tabacaria de meu pai. Era ali que se encontrava quase sempre o Lourencinho, sempre bem vestido, fato de bom talhe, gravata a condizer, sapatos brilhantes de bom lustro.

Na tabacaria, no espaço destinado ao público, havia um banco corrido de três ou quatro lugares, encimado por um largo espelho de cristal e ladeado por duas estantes expositoras, coisa rara e talvez única em qualquer outro estabelecimento da Régua. Meu pai, um diletante, de mais a mais com um apurado sentido da cultura, entendeu que o comércio de tabacos por junto, era negócio de toma lá dá cá, negócio nada marralheiro e a pedir algum espaço de descanso e de convívio.

O banco, sendo corrido, naturalmente rectangular, passou a ser um círculo de diálogo e de cultura. Era o banco do Lourencinho, afora um ou outro freguês que nele descansasse de uma longa caminhada. Sentado no banco o Lourecinho fazia horas e fazia-as diariamente, cioso de algum sossego, sei lá se de alguma secreta solidão e a deitar contas à vida. Fumava cigarros atrás de cigarros e olhava a rua com olhos distantes, mesmo inexpressivos, como se a retina estivesse virada para dentro de si mesmo.

Tirando os dias de feira, o quotidiano da rua era o habitual, um sobe e desce de automóveis, carros de bois, carretas de mão e gente que ia à sua vida, novos e velhos, cada qual integrado no andamento do mundo.

Muitas vezes eu subia ao andar da Associação Comercial a estudar Fisiologia. Depois vinha fazer horas de espera junto do Lourencinho que logo me perguntava: - Então, já estudou? Continue… continue, não desista. Conversávamos então sobre vários aspectos da fisiologia humana, coisas que ele gostava de ouvir e que lhe ateavam um fogo de curiosidades. De espanto em espanto, como que se deslaçava nele uma qualquer timidez que, se não era medular era própria da sua postura intimista.

O bombeiro Lourencinho, já comandante da Corporação, não era atreito a exibicionismos nem a protagonismos, muito menos a fogo de vistas. Mas amava os bombeiros no seu todo e gostava de se sentar no banco da tabacaria a conversar com meu pai.

Assim enraizado, é crível que fosse o Lourencinho quem convenceu meu pai a escrever uma qualquer peça de teatro, peça que, levada à cena, poderia render dinheiro bastante para dar seguimento às obras do quartel.

E, de facto, meu pai escreveu a letra e a música da opereta O Milagre do Cruzeiro que, logo na estreia, foi um sucesso, um acontecimento artístico a despertar por aí além muito entusiasmo e muitos aplausos.

Foi uma sugestão do Lourencinho? Talvez… talvez... isto nos animosos tempos que já lá vão e nos bons propósitos de um espaço que já não é.
- Manuel Braz de Magalhães
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 7 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O Primeiro Presidente da Direcção

Na primeira vez que entrei na casa da família Magalhães, na Quinta D. Leonor, na encosta de Remostias, encontrarei uma fotografia antiga, pendurada numa parede de uma confortável sala que despertou a minha atenção. De repente, quando olhei o rosto daquele homem sério, de barbas, de olhar algo melancólico e distante no tempo, que pressagiei ser José Braz Fernandes, o primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua.

Há muito que esperava ver o rosto do homem que considerada uma figura destacada na história da Associação dos Bombeiros da Régua. Até aquela data, verão de 2011, não tinha encontrado nenhum seu retrato, por mais que o procurasse aquele retrato de José Braz Fernandes surgia-me inesperadamente. Eu tinha ido àquela casa para conversar um pouco sobre António Rafael de Magalhães e a sua opereta “O Milagre do Cruzeiro”, que fora representada, pela primeira vez, nos anos 50, com enorme sucesso, no Quartel dos Bombeiros da Régua, que serviu como se fosse um Teatro.

Se a era uma boa razão para estar muito satisfeito, confesso que, sem contar, ter perto de mim o retrato do meu primeiro antecessor me fez sentir um tanto deslumbrado e bastante honrado com a sua companhia, que um pedaço de fio da história nos aproximava e nos unia.

À minha frente, sabia que estava o retrato bisavô do meu amigo, uma preciosidade de antepassado da família, da vida do qual pouco sabiam. No meu indisfarçado encanto, estava diante do meu olhar o retrato do Primeiro Presidente da Direcção.

Nessa tarde de Julho, entre José Braz Fernandes e mim, separava-nos mais de um século, precisamente cento e trinta e um anos, e naquele momento, nada sabia da sua via. Ignorava tudo da sua biografia, apesar de ter procurado alguns rastos de seu percurso pessoal, familiar e profissional. No cemitério municipal, onde sabíamos que jazem as cinzas do seu corpo, procuramos no jazigo da família uma lápide com o seu nome e a data do seu falecimento, mas dali só veio um silêncio profundo. Quando menos esperamos, o Arquivo Distrital de Vila Real dava-nos conhecimento que tinha o assento do seu óbito. Quisemos ter uma fotocópia desse documento que foi preenchido pela mão do Abade Miguel António da Fonseca e Sousa que, assistindo espiritualmente à sua morte, nele registou estes dados: “Aos 30 dias do mês de Septembro do ano de mil oitocentos e noventa e quatro, à uma hora da manhã, nas casas da morada no lugar de Remostias, desta freguesia de São Faustino do Peso da Regoa, concelho do Peso da Regoa, diocese de Lamego, falleceu, tendo recebido o Sacramento da Extrema Unção, um individuo do sexo masculino, por nome de Jose Braz Fernandes, de idade de cinquenta e oito anos, viúvo de Dona Maria da Natividade Candida (…)”.

Para a sua família, José Braz Fernandes era um antepassado longínquo, com quem não tinham havido nenhumas relações de intimidades. Lembravam-no apenas pelo que ouviram contar aos seus descendentes mais próximos. Tinham conhecimento que fora proprietário, dono de uma área extensa vinhas, algumas das quais fazem parte da Quinta D. Leonor. E que sempre viveu aí viveu e educou oito filhos que teve do seu casamento, a Leonor, a Felicidade, a Elisa, a Cândida – também ela uma ilustre benemérita dos Bombeiros da Régua -, o Augusto, o Joaquim, o Romão e o José.

Na única história da Régua, da autoria Afonso Soares, o seu nome está recordado como um cidadão empenhado activamente nas causas sociais, aparecendo ligado à primeira administração do Hospital da Régua e aos órgãos sociais da prestigiada Associação Comercial.

Mas, como o primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, ninguém o tinha evocado, para o distinguir num cargo de relevo social. Uma falha que, até hoje me parecia, ser injusta para um cidadão que tinha dedicado, uma pequena parte da sua vida, a servir uma causa cívica e humanitária que, apesar de muitas vicissitudes, ser afirmara no seu tempo.

Ao lado do primeiro Comandante Manuel Maria de Magalhães, seu amigo pessoal, José Braz Fernandes, teve como espinhosa missão, a organização um corpo de bombeiros voluntários, com formação e material adequado. Sem quer fazer uma conjectura do seu trabalho nos quatro anos em que esteve à frente da Direcção, sabemos que concretizou muitos projectos, aqueles que na época eram o objectivo essencial e recebeu das mãos do Rei D. Luís I, uma honrosa distinção para Associação.
Nas entrelinhas das actas da sua Direcção, que chegaram intactas até nós, não ficaram assinalados os resultados do seu trabalho. Quem tiver atenção, ficou bem explícito o traço do seu carácter, a verticalidade e a sua determinação. O exemplo cívico de um homem que viveu uma espantosa experiência humana, a genuína causa do voluntariado.

Desde a fundação, os Bombeiros da Régua mudaram muito. Apoiados numa Associação modelar, que evoluiu e se transformou num sector em mudança permanente, é actualmente uma organização social e de socorro moderna. Para aqui chegar, ser uma instituição sólida e grande, precisou que ele erguesse os primeiros pilares. Quando tudo começou, no dia em tomou posse, o património da Associação era pouco mais que as duas bombas de incêndios pela autarquia. Os sócios contribuintes e os beneméritos, como a famosa viticultora Ferreirinha, contribuíram para comprar as fardas e pagar as rendas da casa que, no Lago da Chafarica, serviu de instalar a sede, a biblioteca e, como se chamava ao quartel, a Estação das Bombas.

Como actual Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, com cinco mandatos feitos, tenho o dever, mesmo a obrigação, de preservar a memória colectiva da Associação e de todos os cidadãos, bombeiros, directores, associados e beneméritos – que a ela e à sociedade reguense deram muito das suas vidas.

Conhecer o que foi o passado de José Braz Fernandes estimula-me a persistir no engrandecimento da Associação e do Corpo de Bombeiros. Orgulho-me do que foi legado, um empreendimento social, benemérito, generoso e abnegado que continua a existir para proteger as pessoas e bens, assente no associativismo, cidadania e voluntariado.

Em 28 de Novembro de 1880, os Bombeiros da Régua foram pioneiros no distrito de Vila Real. A sua Associação foi a primeira a ser fundada. E, a única, a quem foi atribuído o título honorífico de Real Associação.

Por isso, fiquei contente quando o olhar mesmo distante de José Braz Fernandes, naquele retrato, se cruzou com o meu, quase de um presidente para outro presidente, voltou a pairar – eu penso que com admiração e orgulho - pelo presente da nossa Associação e do Corpo de Bombeiros que, há mais de um século, persistem em ser uma referência ética, cívica e cultural da sociedade reguense.
- José Alfredo Almeida*, 
Peso da Régua, Outubro de 2012



PS - A partir de agora, por gentileza da família Magalhães, uma cópia daquele retrato de José Braz Fernandes está exposto numa galeria do Quartel Delfim Ferreira.
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 18 de Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Diante do Fogo Lareiro

Vão muito quentes e muito secos estes primeiros dias de Setembro e lavraram incêndios florestais de norte a sul do país, com centenas e centenas de bombeiros a fazer-lhes frente, sem descanso e quase exaustos. Quem mo diz é a Televisão, que é incendiária de seu natural. Diz-mo a toda a hora, insistentemente, como a alimentar e a estimular a psicopatia dos pirómanos, assim refeitos e deliciados diante de muito espectáculo de fogo e labaredas.

Por momentos, estou sentado numa sala da minha casa paterna e tenho diante de mim uma rica lareira de aquecimento, uma lareira que por esta altura do ano se mantém varrida e extinta, como que em natural hibernação. Mas, nos dias mais frios e mais invernosos, a quentura da lareira não deixa de ser germe de convívio, de aconchego e até de boas memórias. Já o disse o saudoso médico e escritor João de Araújo Correia no prefácio do livro de contos Cinza do Lar. Disse esta bela frase: “Do monte de cinzas, quando se esborralha, surgem centelhas vivas que a imaginação exalça e multiplica.”

Por isso é que eu, nestes dias quentes de Estio, quero fazer de conta. Fazer de conta que esta lareira que tenho aqui em hibernação, diante de mim, é uma lareira de boa quentura e aconchego com um borralho de cinzas a estimular-me a imaginação e os afectos. Já comecei a remexer as cinzas do borralho e já desprendi centelhas e mais centelhas, algumas de uma vivacidade cintilante e outras já o seu tanto amortiçadas.

Uma das mais vivas até me pareceu figurar o meu bisavô materno José Braz Fernandes que está ali em fotografia antiga pendurada na parede mesmo ao lado da lareira. Tem umas barbas venerandas, quase patriarcais, e um olhar meio perdido nos longes do século passado.

E uma centelha mais brincalhona leva-me a pensar que eu, um bisneto ainda miúdo, estou sentado nos seus joelhos, a puxar-lhes as barbas, como que a divertir a tenrura dos meus anos.

Não conheci o meu bisavô mas dizem-me que ele foi o primeiro presidente dos nossos bombeiros e eu digo-lhe, à puridade, que quase vi nascer o actual edifício do quartel. Viu-o ainda no nascedoiro mas já uma sólida estrutura de betão, vigamentos, colunas, degraus e patamares sem reboco nem caiação, ainda sem grande serventia mas já a simular o que viria a ser depois, um belo e invejável edifício no tecido urbano da cidade. A frontaria é, por si só, uma expressiva legenda de vida por vida, digamos um brasão a distinguir qualquer soldado da paz. Uma frontaria de granito ricamente aparelhado, de mais a mais com a arte do bom cinzel. São todos os pormenores, todos os símbolos e alegorias, toda uma fachada a poder olhar, com olhos envaidecidos, o alto e incaracterístico prédio que lhe puseram defronte, como um intruso, a tolher a largueza dos horizontes.

Valha-nos que uma centelha vivaça vem agora a terreiro a rememorar a fanfarra dos bombeiros. É a refinada cadência das caixas, cadência batida e rebatida, é o som mais alto, mais gordo e estrondeado dos bombos, é o sopro aberto, metálico e vibrante dos clarins, toda uma explosão de sonoridades, de entusiasmo e de festa, sempre desdobrada em ecos repetidos.

Uma centelha também vivaça vem dizer-me que, na minha condição de médico, fui responsável pelo serviço de urgência do nosso hospital, semana após semana. Nessa conformidade, fui tendo sempre um convívio estreito, franco e amistoso com os nossos bombeiros. Com aviso da sirene ambulante ou mesmo sem aviso, os bombeiros traziam-me à urgência os casos mais variados, fosse um corpo estropiado, um coração desfalecido, uns copos mal bebidos, uma mulher de mau parir… às vezes umas sacholadas de instintiva ruindade como se a justiça popular, nem sempre aquietada, fosse o melhor modo de dirimir os conflitos, no terreiro das más consciências.

Os bombeiros traziam-me os “casos” e havia sempre um cumprimento ou um gesto de mútuo respeito e compreensão como se cada um de nós tivesse uma missão a cumprir, nos caminhos da solidariedade.

Do fogo quase extinto ainda surgiu uma centelha de breve cintilação a relembrar-me o incêndio que vi daqui de Remostias e da minha casa paterna nos altinhos do Peso. Foi mesmo no enfiamento dos meus horizontes e soube depois que tudo tinha começado no fogo brando duma lareira de pobres, uma daquelas lareiras onde se aquecem os potes do caldo e das batatas e dão até para aconchegar o gato à mornidão das cinzas.

Já não há nenhum borralho na minha lareira imaginada e só um ténue clarão, talvez um fogo-fátuo parece desprender-se do eterno descanso do meu bisavô.

Manuel Braz Magalhães
PS - Texto escrito em 4 de Setembro no português da minha escola e do qual não abdico.

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sábado, 15 de setembro de 2012

A MISSÃO HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS

Em data recente, perguntaram a um rapazinho de cinco anos:

- Queres ser bombeiro?

E ele respondeu:

- Não, isso não dá dinheiro.

Este curto diálogo e mais perguntas formuladas são o mote da minha reflexão. Quem falou com aquele rapazinho aproveitou para lhe ensinar o que incumbe aos pais e aos professores. Tentou explicar-lhe que o ser Bombeiro é uma honra e a maior dádiva dum cidadão ao seu semelhante. O petiz só muito mais tarde perceberá, na realidade, o voluntariado dos soldados da Paz. Só muito mais tarde compreenderá os propósitos do lema “Vida por Vida”. A tenra idade do garoto ditou outras perguntas numa linguagem simples:

- Sabes quem apaga os incêndios nas casas e nas matas?

- Sabes quem ajuda nos acidentes da estrada e conduz os sinistrados ao hospital?

- Sabes quem é chamado ao rio Douro para salvar as pessoas?

- Sabes quem leva os velhinhos e os doentes às transfusões de sangue?

A rapidez das questões embaciou o olhar da criança e tornou-a pálida. Ao fim das quatro ela já tremia como varas verdes!
A conversa teve de parar para não lhe causar incómodo. O interlocutor (o adulto que perguntava) ainda acrescentou:

- Um dia serás um jovem e depois um homem e hás-de perceber, o que significa para um Bombeiro, o valor da solidariedade, do voluntariado, da amizade, do amor aos outros e, por último, da oferta da própria vida!

O menino – que desconhecia, naturalmente, a profundidade destas últimas palavras – foi-se recompondo da palidez e das tremuras e o olhar foi-lhe restituído.

Este caso leva-me a crer que a sociedade actual se materializou definitivamente. E que o homem, assediado pela televisão e pelas novas tecnologias, vai ficando nu dos valores elementares.
A família tem o dever de educar a criança para os valores da entre-ajuda, da solidariedade, da disponibilidade e do amor ao próximo, entre muitos mais. A escola, como complemento da educação familiar, tem a tarefa de promover a prática desses valores. É conhecida a máxima latina: primum vivere, deinde philosophari (primeiro viver, depois filosofar). Obviamente que após acautelar o seu sustento, o homem deve procurar realizar o seu fim último na terra que é ser feliz. Ora, no dar e no dar-se aos seus iguais há, seguramente, muita felicidade.

- Peso da Régua, 23/8/2012, M. J. Martins de Freitas

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