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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Memórias do Comandante Lourencinho

Num aditamento ao texto que escrevi há três ou quatro semanas e que aqui se publicou, eu disse que o mesmo ia ser escrito no português da minha escola. Pois o texto de hoje obedece aos mesmos princípios, seja pela idade que vou tendo, seja pelo respeito aos bons dicionários que tenho na biblioteca. Adiante…

Depois da escola que me ensinou a ler Camilo ou o sermonário do padre António Vieira, continuei os estudos na Faculdade de Medicina do Porto, rés-vés o hospital de Stº. António. Foi por esse tempo que conheci o senhor Lourenço Pinto Medeiros, o Lourencinho, de boa memória. Também por esse tempo, nas férias grandes ou pequenas, eu deixava para trás o casão da Faculdade e vinha para a casa paterna, ou avoenga, casa de quinta, no lugar de Remostias. No Porto ficavam os livros de estudo, anatomias, patologia geral, embriologia, obstetrícia, propedêuticas, e por aí fora, todos eles em repouso e entregues a si mesmos, como se cada qual fosse uma leira de terra em pousio.

Gostava de trazer comigo, a boa companhia do tratado de Fisiologia, só para continuar os estudos em dias feriados… O funcionamento do corpo humano, os seus segredos e interrogações, até alguns milagres, tudo isso me fascinava e tudo isso chegou a ser tema de amenas conversas com o Lourencinho, ali na tabacaria de meu pai, na rua de Serpa Pinto.

Era nas férias grandes, naquelas manhãs ou tardes de um verão canicular que muitas vezes eu deixava para trás a meia-encosta de Remostias, toda ela com sucessivos quadros de uma natureza aprimorada, e vinha por aí abaixo até ao centro da Régua, mesmo no Agosto que dia- a-dia se ia chegando às vindimas, já com tantos e tantos cachos aflorados de oiro e de pintor. Feito vádio, modo de dizer, vinha até à Régua, eu e o tratado de Fisiologia, a fazermos uma pousada na tabacaria de meu pai. Era ali que se encontrava quase sempre o Lourencinho, sempre bem vestido, fato de bom talhe, gravata a condizer, sapatos brilhantes de bom lustro.

Na tabacaria, no espaço destinado ao público, havia um banco corrido de três ou quatro lugares, encimado por um largo espelho de cristal e ladeado por duas estantes expositoras, coisa rara e talvez única em qualquer outro estabelecimento da Régua. Meu pai, um diletante, de mais a mais com um apurado sentido da cultura, entendeu que o comércio de tabacos por junto, era negócio de toma lá dá cá, negócio nada marralheiro e a pedir algum espaço de descanso e de convívio.

O banco, sendo corrido, naturalmente rectangular, passou a ser um círculo de diálogo e de cultura. Era o banco do Lourencinho, afora um ou outro freguês que nele descansasse de uma longa caminhada. Sentado no banco o Lourecinho fazia horas e fazia-as diariamente, cioso de algum sossego, sei lá se de alguma secreta solidão e a deitar contas à vida. Fumava cigarros atrás de cigarros e olhava a rua com olhos distantes, mesmo inexpressivos, como se a retina estivesse virada para dentro de si mesmo.

Tirando os dias de feira, o quotidiano da rua era o habitual, um sobe e desce de automóveis, carros de bois, carretas de mão e gente que ia à sua vida, novos e velhos, cada qual integrado no andamento do mundo.

Muitas vezes eu subia ao andar da Associação Comercial a estudar Fisiologia. Depois vinha fazer horas de espera junto do Lourencinho que logo me perguntava: - Então, já estudou? Continue… continue, não desista. Conversávamos então sobre vários aspectos da fisiologia humana, coisas que ele gostava de ouvir e que lhe ateavam um fogo de curiosidades. De espanto em espanto, como que se deslaçava nele uma qualquer timidez que, se não era medular era própria da sua postura intimista.

O bombeiro Lourencinho, já comandante da Corporação, não era atreito a exibicionismos nem a protagonismos, muito menos a fogo de vistas. Mas amava os bombeiros no seu todo e gostava de se sentar no banco da tabacaria a conversar com meu pai.

Assim enraizado, é crível que fosse o Lourencinho quem convenceu meu pai a escrever uma qualquer peça de teatro, peça que, levada à cena, poderia render dinheiro bastante para dar seguimento às obras do quartel.

E, de facto, meu pai escreveu a letra e a música da opereta O Milagre do Cruzeiro que, logo na estreia, foi um sucesso, um acontecimento artístico a despertar por aí além muito entusiasmo e muitos aplausos.

Foi uma sugestão do Lourencinho? Talvez… talvez... isto nos animosos tempos que já lá vão e nos bons propósitos de um espaço que já não é.
- Manuel Braz de Magalhães
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 7 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Recordação de uma visita a Castro Daire

Aos Bombeiros de Castro Daire, de todos os tempos.
À memória dos Comandantes Lourenço Pinto Medeiros e António Guedes Castelo Branco

No passado os Bombeiros da Régua costumavam organizar viagens pelo país fora, levando uma pequena representação nos seus melhores carros de incêndios. Algumas dessas viagens tiveram como destino uma vista à Corporações de Bombeiros de terras vizinhas, umas nas redondezas e outras para lá dos limites da região demarcada do Douro. Se no decorrer do tempo umas foram esquecidas, outras já ficaram lembradas em fotografias quase sempre tiradas num momento de descontracção e de demonstração de companheirismo e muita dedicação à causa do voluntariado.

Cada visita era mais um dia festa na terra visitada, com uma animação colorida que os bombeiros costumam dar com as suas fardas mais asseadas, capacetes reluzentes, acompanhado pelo ruídos das sirenes estridentes dos carros, com a população nas ruas e nas janelas a assistir à sua passagem, como viesse para venerar os seus santos protectores. Quando o povo voltava as suas casas, a festa recomeçava no quartel, com os abraços fraternais, cumprimentos calorosos e as saudações de cortesia.

Esses homens de condição humilde escreviam assim momentos únicos de fraternidade, com o seu coração cheio de generosidade. Entre eles estreitavam-se laços de amizade e trocavam-se afectos como se todos eles pertencem à mesma família de sangue. Os Comandantes de cada corporação local aproveitavam para elogiar uma atitude mais altruísta e abnegada dos seus subordinados num incêndio mais perigoso e, outras vezes, rememoravam os tempos idos com saudade e nostalgia.

Eram outros tempos! …

A sociedade civil gostava dos seus bombeiros, fossem eles de onde fossem, recebia-os com recepções triunfais, a que se associava a classe política, com o Presidente de Câmara sempre presente para receber os ilustres visitantes, dar-lhes as boas vindas e fazer um discurso com palavras de respeito e sincera gratidão. Desse imaginário faz parte uma visita que os Bombeiros da Régua fizeram à vila de Castro Daire, no dia 6 de Junho de 1948, onde foram recebidos em festa, que ficou registada, pelo menos, em duas fotografias marcadas com este sugestivo título: “Recordação da Visita a Castro Daire – 6-6-1948- Aos Bombeiros Voluntários do Pêso da Régua – Os Camaradas de Castro Daire”.

Lembrei a existência destas fotografias, durante 41º Congresso dos Bombeiros Portugueses, realizado em Outubro de 2011, na Régua, ao presidente da direcção dos Bombeiros de Castro Daire, o meu amigo António da Conceição Pinto. Mostrou-se surpreendido com uma raridade que ele desconhecia e me prometeu mandar averiguar se elas também faziam parte do arquivo da sua associação. Mais tarde conformou-me que ali não havia nenhuma dessas fotografias nem sinais dessa visita. Quando lhe cedi as cópias dessas imagens e as observou atentamente, informou-me que só reconheceu da sua corporação, o então 2º Comandante Jaime Vitelo, vestido à civil, ao lado dos comandantes da Régua.

Quis saber mais e observar com mais atenção cada fotografia, confiante de encontrar alguém retratado que me fosse familiar. Numa delas, reconheci o Comandante Lourenço de Pinto Medeiros, tratado carinhosamente por Lourencinho, e o 2º Comandante António Guedes Castelo Branco. Na outra fotografia, aqueles rostos eram-me estranhos, o que me levou a concluir ali estavam retratados apenas os bombeiros de Castro Daire, fardados a rigor e perfilhados no Jardim Municipal, hoje denominado Jardim 25 de Abril.

Mas queria saber mais do pouco que essas fotografias me diziam. Socorri-me então  do excelente livro “Machado em Punho - 130 anos dos bombeiros de Castro Daire”, da autoria de Adérito Pereira Ferreira, bem escrito e bastante recheado de documentos e imagens de qualidade, que li ávido de encontrar uma alusão, mas apenas deparei uma referência à Régua, a uma reparação do pronto-socorro  que os  bombeiros  castrenses fizeram na oficina Janeiro & Irmão.

Para pena minha, aquela visita dos Bombeiros da Régua era assunto completamente omisso. Não desisti de encontrar um relato dos seus principais pormenores. No arquivo do Noticias do Douro, nas edições de 13 e 27 de Junho de 1948, pesquisei duas notícias. Escolhia a que foi reproduzida do diário O Comércio do Porto e que, pela sua importância histórica, aqui passo a transcrever na íntegra:

“Castro Daire, 9 – Às primeiras horas da manhã, do passado dia 6, começou a correr celebre a notícia de que uma surpresa, uma agradável surpresa havia sido preparada aos habitantes de Castro Daire. De facto, pouco depois, foi com alvoroço que se tomou conhecimento de que, dali a momentos, Castro Daire seria visitada pela briosa Corporação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua e de alguns reguenses amigos da nossa terra.

Assim sucedeu, de facto. Cerca das 14 horas, algum tempo depois de ter sido montada pelos amáveis visitantes, no Jardim Público, uma instalação sonora, através da qual a noticia se confirmou, deu entrada na vila, triunfalmente, um ruidoso cortejo de carros com as esplêndidas e modernas viaturas dos Bombeiros Voluntários da Régua, seguidas do pronto-socorro os Voluntários locais e de um outro carro com a Direcção dos nossos Bombeiros que foram fora da vila ao encontro dos reguenses. Seguiam-se outros automóveis com numerosas pessoas das duas terras. A caravana percorreu a vila de baixo de saudações tão delirantes como sinceras da população que, em grande número, enchia as ruas, não obstante o imprevisto de tão agradável acontecimento. Nos prédios, os seus moradores quer às portas, quer às janelas, não se cansavam de manifestar-se.
Feito o trajecto, os visitantes dirigiram-se ao quartel dos nossos bombeiros, onde foram recebidos pela sua Direcção, Comando e Corpo Activo, tendo-lhe sido dadas as boas vindas pelo Sr. Presidente da Câmara, que em nome da Corporação local e do povo de Castro Daire, manifestou o seu mais vivo reconhecimento pela gentileza da honrosa visita que acabava de ser feita pelos Bombeiros Voluntários da Régua aos seus companheiros do ideal que tem por lema “ Vida por Vida”.

Fez votos pela prosperidade da terra amiga e da Corporação de Bombeiros, lamentando unicamente que esta visita não tivesse sido anunciada previamente, o que impediu que tivessem sido recebidos melhor e mais condignamente, como mereciam.

Em seguida, o Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, agradeceu as boas vindas que lhes haviam sido dadas, recordando com saudade os bons tempos da Banda dos Bombeiros Voluntários de Castro Daire que – disse – era considerada também pelos reguenses, como Banda dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, dadas as boas relações de amizade e simpatia que sempre existiram entre reguenses e castrenses. Finalmente, no gesto tão cativante como espontâneo, pôs à disposição do Sr. Presidente da Câmara e dos Bombeiros de Castro Daire a veloz e moderníssima auto-maca a sua Corporação, sempre que disso houvesse necessidade para serviços de grande urgência.

Aplausos frenéticos de agradecimento se sucederam, tendo por sua vez o Sr. Presidente da Câmara voltado a falar para agradecer em nome de todos os castrenses tão grande gentileza. Pelo resto da tarde, visitantes e visitados, confraternizaram alegremente pela vila, ao som da bela música difundida pela aparelhagem sonora instalada pelos nossos hóspedes. E, ao fim do dia, foi com grande mágoa que os vimos partir, sendo acompanhados pelo pronto-socorro dos nossos bombeiros durante alguns quilómetros dentro do concelho. Dada a maneira amistosa como tudo decorreu, estamos convencidos que estes momentos reviverão sempre na memória de todos quantos tiveram a satisfação de senti-los.

Aproveitamos a ocasião de apresentar a nossa edilidade o seguinte alvitre. Dadas as grandes provas de amizade e dedicação, com que os habitantes da linda e progressiva capital do Douro, desde longos tempos, sempre têm distinguido e dispensado ao povo de Castro Daire e à nossa terra, não seria justo e merecido que a uma das ruas da vila fosse dado o nome de rua da Vila do Peso da Régua? Cremos que toda a população de Castro Daire receberia bem tal iniciativa – C”.

Mais que os pormenores, a razão dessa a visita dos Bombeiros da Régua está aqui toda desvendada pelo senhor “C”, certamente um jornalista natural de Castro Daire. Como aí se diz, esta visita teve como motivação, o lembrar de uma velha tradição, em que a Banda dos Bombeiros Voluntários de Castro Daire era considerada a banda dos Bombeiros da Régua. Parece que assim foi nos recuados tempos dos primeiros anos do Séc.XX. Mas não foi esse o único motivo, foi uma visita para levar a gratidão do povo da Régua à boa gente beirã de Castro Daire.

E assim se faz uma curiosa e interessante história que une duas associações bombeiros, quase da mesma antiguidade, não muito distante uma da outra que, durante muitos anos, mantiveram grandes ligações de amizades e uma tradição musical, e que jamais acabar, mesmo que a banda de música tenha deixado de tocar no quartel dos Bombeiros da Régua.

Quem sabe, se num dia destes, não faremos uma outra visita a Castro Daire para lembrar o passado e que, numa atitude generosa e solidária, àqueles briosos Bombeiros da Régua levaram à vila de Castro Daire, no dia 6 de Junho de 1948.

Ainda bem que dessa visita ficaram guardadas, até aos nossos dias, aquelas duas fotografias: quando não temos memória do nosso passado, perdemos sempre algo no futuro!
- José Alfredo Almeida*, 
Peso da Régua, Novembro de 2012


*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.