sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Diante do Fogo Lareiro

Vão muito quentes e muito secos estes primeiros dias de Setembro e lavraram incêndios florestais de norte a sul do país, com centenas e centenas de bombeiros a fazer-lhes frente, sem descanso e quase exaustos. Quem mo diz é a Televisão, que é incendiária de seu natural. Diz-mo a toda a hora, insistentemente, como a alimentar e a estimular a psicopatia dos pirómanos, assim refeitos e deliciados diante de muito espectáculo de fogo e labaredas.

Por momentos, estou sentado numa sala da minha casa paterna e tenho diante de mim uma rica lareira de aquecimento, uma lareira que por esta altura do ano se mantém varrida e extinta, como que em natural hibernação. Mas, nos dias mais frios e mais invernosos, a quentura da lareira não deixa de ser germe de convívio, de aconchego e até de boas memórias. Já o disse o saudoso médico e escritor João de Araújo Correia no prefácio do livro de contos Cinza do Lar. Disse esta bela frase: “Do monte de cinzas, quando se esborralha, surgem centelhas vivas que a imaginação exalça e multiplica.”

Por isso é que eu, nestes dias quentes de Estio, quero fazer de conta. Fazer de conta que esta lareira que tenho aqui em hibernação, diante de mim, é uma lareira de boa quentura e aconchego com um borralho de cinzas a estimular-me a imaginação e os afectos. Já comecei a remexer as cinzas do borralho e já desprendi centelhas e mais centelhas, algumas de uma vivacidade cintilante e outras já o seu tanto amortiçadas.

Uma das mais vivas até me pareceu figurar o meu bisavô materno José Braz Fernandes que está ali em fotografia antiga pendurada na parede mesmo ao lado da lareira. Tem umas barbas venerandas, quase patriarcais, e um olhar meio perdido nos longes do século passado.

E uma centelha mais brincalhona leva-me a pensar que eu, um bisneto ainda miúdo, estou sentado nos seus joelhos, a puxar-lhes as barbas, como que a divertir a tenrura dos meus anos.

Não conheci o meu bisavô mas dizem-me que ele foi o primeiro presidente dos nossos bombeiros e eu digo-lhe, à puridade, que quase vi nascer o actual edifício do quartel. Viu-o ainda no nascedoiro mas já uma sólida estrutura de betão, vigamentos, colunas, degraus e patamares sem reboco nem caiação, ainda sem grande serventia mas já a simular o que viria a ser depois, um belo e invejável edifício no tecido urbano da cidade. A frontaria é, por si só, uma expressiva legenda de vida por vida, digamos um brasão a distinguir qualquer soldado da paz. Uma frontaria de granito ricamente aparelhado, de mais a mais com a arte do bom cinzel. São todos os pormenores, todos os símbolos e alegorias, toda uma fachada a poder olhar, com olhos envaidecidos, o alto e incaracterístico prédio que lhe puseram defronte, como um intruso, a tolher a largueza dos horizontes.

Valha-nos que uma centelha vivaça vem agora a terreiro a rememorar a fanfarra dos bombeiros. É a refinada cadência das caixas, cadência batida e rebatida, é o som mais alto, mais gordo e estrondeado dos bombos, é o sopro aberto, metálico e vibrante dos clarins, toda uma explosão de sonoridades, de entusiasmo e de festa, sempre desdobrada em ecos repetidos.

Uma centelha também vivaça vem dizer-me que, na minha condição de médico, fui responsável pelo serviço de urgência do nosso hospital, semana após semana. Nessa conformidade, fui tendo sempre um convívio estreito, franco e amistoso com os nossos bombeiros. Com aviso da sirene ambulante ou mesmo sem aviso, os bombeiros traziam-me à urgência os casos mais variados, fosse um corpo estropiado, um coração desfalecido, uns copos mal bebidos, uma mulher de mau parir… às vezes umas sacholadas de instintiva ruindade como se a justiça popular, nem sempre aquietada, fosse o melhor modo de dirimir os conflitos, no terreiro das más consciências.

Os bombeiros traziam-me os “casos” e havia sempre um cumprimento ou um gesto de mútuo respeito e compreensão como se cada um de nós tivesse uma missão a cumprir, nos caminhos da solidariedade.

Do fogo quase extinto ainda surgiu uma centelha de breve cintilação a relembrar-me o incêndio que vi daqui de Remostias e da minha casa paterna nos altinhos do Peso. Foi mesmo no enfiamento dos meus horizontes e soube depois que tudo tinha começado no fogo brando duma lareira de pobres, uma daquelas lareiras onde se aquecem os potes do caldo e das batatas e dão até para aconchegar o gato à mornidão das cinzas.

Já não há nenhum borralho na minha lareira imaginada e só um ténue clarão, talvez um fogo-fátuo parece desprender-se do eterno descanso do meu bisavô.

Manuel Braz Magalhães
PS - Texto escrito em 4 de Setembro no português da minha escola e do qual não abdico.

Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 10 de Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

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