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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Familiaridade

O principal motivo (mas não o único) para se visitar a exposição da colecção de catorze retratos pertencentes à Misericórdia da Régua que está patente no Museu do Douro é, do meu ponto de vista, o retrato de Pedro Verdial, assinado por Afonso Soares e datado de 1905. O retrato é tão impressionante (é esse o termo) que foi escolhido pelo Museu como imagem de marca da exposição.

Afonso Soares (1852-1939) foi um jornalista, homem de letras, comandante dos bombeiros da Régua e artista amador. Todos os retratos assinados por ele são singulares mas o de Pedro Verdial, um benemérito reguense de origem galega, destaca-se pela inquietação que provoca em quem o observa.

O homem era muito feio para os critérios nossos contemporâneos, e mesmo para os da sua época. Afonso Soares não tentou torná-lo mais bonito, mas tão pouco o dotou da chamada profundidade psicológica com nos habituámos a apreciar os retratos modernos: nos olhos de Pedro Verdial, na rigidez da sua pose, na maneira como emerge do fundo do quadro com uma espécie de rigor e pallor mortis, vemos alguém que é familiar mas que, apesar dessa familiaridade, nos é profundamente alheio. Estamos perante uma pintura opaca, fechada sobre os seus próprios meios e limitações, que não permite, devido à sua inquietante familiaridade, que experimentemos qualquer empatia. Este quadro não “dialoga” connosco.

Para que se perceba melhor a nossa inquietação, sugiro que se compare esta pintura com o retrato das crianças Hüsenbeck (de que se reproduz aqui um pormenor), executado cem anos antes pelo pintor alemão Otto Runge, e com uma fotografia de Loretta Lux, feita cem anos depois. Tanto as crianças de Runge e Lux como o velho Verdial são familiares e estranhos. Olha-se-lhes para os olhos, o famoso “espelho da alma”, e não se vê lá nada excepto, talvez, o abismo branco que por vezes existe dentro da nossa.
-  Paulo Varela Gomes, 10 de Fevereiro de 2013

OS RETRATOS DE AFONSO SOARES NO MUSEU DO DOURO
Graças à amabilidade de José Alfredo Almeida, tive acesso ao trabalho académico sobre a coleção da Misericórdia da Régua exposta no Museu do Douro, escrito por João Filipe Tomé Duarte e orientado pelo professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Agostinho Araújo (2011). As informações de que disponho sobre essa coleção provêm deste trabalho.
Estão identificados três autores do conjunto de retratos de benfeitores do Hospital D. Luís I e da Santa Casa da Misericórdia da Régua expostos no Museu do Douro: Francisco José Resende, Marques de Oliveira e Afonso Soares. Dos três, só este último era auto-didacta, não tendo, ao que parece, beneficiado de uma educação artística formal.

Todavia, quando olhamos para os retratos, não há qualquer dúvida de que aquele que tem sobre nós maior impacte foi pintado por Afonso Soares: refiro-me ao retrato do benemérito galego Pedro Verdial, datado de 1905. Aliás, o Museu do Douro escolheu esta obra, e não qualquer uma das outras, para anunciar a exposição na Internet.

Por mim, atrever-me-ia a dizer que o retrato de Pedro Verdial, apesar da inabilidade técnica que também o caracteriza (a modulação excessivamente dura dos relevos da roupa, por exemplo), é um dos retratos mais dignos de atenção da pintura portuguesa de entre o século XIX e os nossos dias. Acresce que quase todos os outros retratos da coleção pintados por Soares me parecem mais fortes pictoricamente que os que foram executados pelos outros artistas.

Neste artigo vou procurar enumerar algumas razões para este paradoxo: o pintor menos preparado academicamente é aquele que, em minha opinião, fez retratos mais interessantes (remeto também para o meu pequeno artigo sobre o assunto no Público de 9 de Fevereiro último).

O retrato de Pedro Verdial impressiona-nos antes de mais porque, de entre todos os retratados da coleção, é certamente aquele que tem um rosto e uma cabeça mais característicos. Afonso Soares acentuou com grande talento os traços do seu modelo, a calvície, o nariz, as rugas, as suíças grisalhas, compondo uma figura para a qual nos sentimos compelidos a olhar: eis um rosto que não é nada banal ou desinteressante. Eis um rosto que não pode passar despercebido.

Claro que não é somente aos traços físicos do modelo que se deve o impacte do retrato: o pintor podia ter suavizado esses traços, dotando o quadro de dispositivos de dialogo com o observador, como aliás fez noutros retratos seus da coleção, seja colocando o rosto a três quartos, seja pintando uma mão apoiada no rosto, seja, enfim, colocando um sorriso no rosto do seu modelo.

Mas não foi isso que Soares escolheu fazer. Repare-se que em todos os seus retratos se verifica a mesma rigidez da pose e não-transparência do olhar. Como escreve Tomé Duarte, Afonso Soares “descura a execução do retrato psicológico dos personagens”. No retrato de Pedro Verdial a rigidez é de tal modo acentuada que se torna hierática: há uma imobilidade da pose e do olhar que é tão poderosa como a severidade dos traços fisionómicos.

Mas são precisamente estas características que tornam os retratos de Soares tão interessantes.

José Alfredo Almeida enviou-me uma fotografia de um rosto de Cristo pintado por Afonso Soares. Sem ter disso a certeza, penso que se trata de um estudo ou cópia a partir de uma pintura do século XVIII, provavelmente espanhola, mas invoco aqui esse quadro porque não vejo nele qualquer inabilidade técnica. Pelo contrário, trata-se de uma pequena obra que demonstra que Afonso Soares era capaz de pintar como pintavam os artistas académicos.
Nestas circunstâncias, torna-se ainda mais pertinente averiguar porque não pintou assim os seus retratos.

Uma primeira pista poderá residir no facto de terem sido executados a partir de fotografias (como, aliás, todos os retratos da coleção, segundo Tomé Duarte). A fotografia é inerte. Está ali, à frente do pintor, sem respirar, sem trocar duas palavras, sem sorrir... ou sem deixar de sorrir. É normal que resulte em retratos menos ricos em sugestão.

Regresso adiante ao problema da fotografia mas adianto desde já que esta explicação não me parece totalmente convincente. Não creio que a rigidez dos retratos pintados por Afonso Soares resulte por inteiro do facto de se terem baseado em fotografias. Afinal de contas, também o foram os retratos de outros pintores na coleção, que são muito mais “naturalistas” que os de Soares.

Proponho dois conceitos para podermos pensar este problema: o conceito cristão de ícone e o conceito hindu de darshan.

Podemos relacionar entre si estes conceitos (como alguns estudiosos nos ensinaram). O ícone, criado pelo cristianismo oriental há mais de mil e quinhentos anos a partir de precedentes romanos e orientais, e ainda dominante no culto das igrejas Ortodoxas, é uma imagem de Cristo, de Nossa Senhora ou de Santos, que se caracteriza, como se sabe, pela sua frontalidade, rigidez, olhar fixo e inexpressivo. O conceito hindu de darshan, por seu lado, dá conta do exercício espiritual praticado pelo devoto que consiste em olhar longamente uma imagem sagrada que, não tendo qualquer expressão que suscite empatia, permite, por isso mesmo, que o devoto se “perca” na contemplação.

Como se percebe, é precisamente porque o ícone cristão ou a imagem sagrada hindu não “dialogam” com o observador que este pode ficar como que hipnotizado por elas, mergulhando no darshan que caracteriza a sua força espiritual.

Neste momento, poderão estar os leitores a dizer para si mesmos que não tem qualquer cabimento ou lógica invocar estes conceitos e precedentes a propósito de um retratista amador de Peso da Régua na primeira metade do século XX.

Mas, agradecendo antecipadamente a paciência do leitor, peço-lhe que regressemos então à fotografia.

Quando apareceu no início do século XIX, e até à sua democratização tecnológica e económica, a fotografia revalidou o conceito de ícone. De facto, a fotografia exercia um efeito-darshan, deslumbrando o olhar indefeso do observador através da crença, como que sagrada, de que em cada imagem fotográfica há um vestígio verdadeiro da realidade, incluindo da realidade que já passou. Como se sabe, certos povos ditos “primitivos”tinham um verdadeiro pavor da fotografia porque acreditavam que esta lhes capturava o espírito e podia fazer regressar os mortos, mas até as pessoas mais “civilizadas”que, no século XIX, lidavam com a fotografia começaram por olhar para as imagens de uma maneira pouco utilitária, quase mística. Os homens e mulheres que posavam para a fotografia nessa época tinham consciência da operação “mágica” em que estavam envolvidos: a sua verdade ia ser transposta para uma película foto-sensível. Até há relativamente pouco tempo, como demonstraram alguns trabalhos de antropólogos, os indianos das classes populares faziam rodear o acto de tirar um retrato de inúmeras precauções: o olhar tinha que ser frontal, as mãos tinham que ficar à vista, a roupa devia ser de cerimónia, etc. Basta conhecer-se superficialmente o retratismo fotográfico ocidental do século XIX para nos apercebermos que as coisas também se passavam assim nestas partes do mundo.

Ou seja: Afonso Soares, como todos os outros pintores, trabalhou com retratos-darshan e retratos-ícone, mas só ele permitiu que essas características passassem para a sua pintura, ao contrario dos seus colegas que procuravam impedir os seus quadros de se parecerem com fotografias. Sendo mais “inábil”, Afonso Soares foi afinal mais moderno.

Recorde-se que os modernistas admiravam as artes primitivas, mas também que o naturalismo e o realismo não foram as únicas correntes da pintura do século XIX e do início do século XX. No quadro da pintura religiosa manifestava-se frequentemente a tendência para recorrer a modelos “primitivos” (a pintura do século XV e até os ícones bizantinos). Estes pintores acreditavam que só esses modelos podiam suscitar a verdadeira devoção dos crentes, justamente porque não eram “realistas”.

No pequeno artigo que escrevi para o Público, referi a propósito de Afonso Soares um retrato de crianças executado pelo pintor alemão Otto Runge (1777-1810). É muito interessante o contraste que existe na obra de Runge entre os retratos de adultos, que são absolutamente “normais”, quer dizer, são retratos psicológicos à maneira moderna, e os retratos de crianças, nas quais Runge detectou de maneira particularmente incisiva a inexpressividade bruta que estas por vezes apresentam, o seu alheamento interior. Runge contesta a representação das crianças como pequenos anjos, então vulgar, e apresenta-as enquanto verdadeiros alienígenas, seres estranhos, para os quais não havia convenções de representação. Esta inquietante familiaridade é precisamente aquela que, creio eu, transparece nos retratos de Afonso Soares.

Procurei neste artigo pensar a pintura de Afonso Soares fora da antinomia académico-amador que se torna uma verdadeira armadilha se nos impedir de olhar para os retratos de uma maneira ao mesmo tempo histórica, situada na sua época, e trans-histórica, quer dizer, atravessando toda a história das artes. E sobretudo se nos impedir de desfrutar da inquietação que os singulares retratos de Soares provocam em nós.

Clique nas imagens para ampliar. Textos de Paulo Varela Gomes publicados com autorização do autor. Sugestão de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal semanário "O Arrais", edição de 20 de Fevereiro de 2013.. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013.Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.