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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O CEGUINHO E O DEMÓNIO

Por João de Araújo Correia


Tal ceguinho era religioso por vocação e por necessidade. Gostava de assistir às missas, rezar pelos benfeitores, ouvir a palavra de Deus orada do púlpito pelos melhores jesuítas e de adormecer à noite com as camândulas presas entre os dedos magros – de tísico... A religião dava-lhe prazer e rendia-lhe coroas. Vendo-o tão pio, as beatas ricas fartavam-no de esmolas e até lhe inventaram o vício de fumar para ele se entreter – as santas criaturas.

Morava numa casa térrea ao rés do adro e tinha por costume sentar-se nos degraus de um cruzeiro levantado diante da igreja. Ali vivia – preso àquelas pedras com mais amor do que ao buraco da casa. Dali espreitava tudo – se é que os cegos espreitam. Não espreitava, mas ouvia. Dava relação de quantos passos feriam a testada do templo. Passos apressados de homens que não tiram o chapéu a ninguém – menos a uma cruz. Passos frívolos de senhorinhas que fazem vénia, mas ligeira, a Nossa Senhora. Passos doentios de senhoras de
idade, cuja reverência ao Santíssimo é meiga e prolongada. Passinhos de criança sobre o saibro, tic, tic, davam ao ceguinho a impressão do primeiro granizo que pinga na areia.

Afeito àqueles ruídos, conhecia-os todos, identificava-os, sabia o nome aos pés que os produziam. Tinha que fazer, contando-os e nomeando-os, porque o adro era aberto e muita gente o atravessava para ir mais depressa à sua vida.

O cego não pedia esmola. Cumprimentava e recebia. Quando, no meio daquele perpassar de pés e pernas, reconhecia amigo ou devota, dizia:

– Senhor E, o dia está bonito.

Ou

– Minha Senhora! A missinha amanhã é mais cedo. A Senhora sabe... Disse o Senhor Abade...

Estas frases eram a salva estendida à mão caritativa. Caíam nela moedas de prata e de cobre, que o cego apartava em saquitéis. Era muito metódico.

O trato devoto com senhoras e senhores finos dera ao ceguinho modos adamados.

– Por este não vem mal ao mundo, dizia um fidalgote pálido que tomava o Senhor todos os dias.

Tinha o ceguinho voz monocórdica e não fazia gestos violentos como pessoa ordinária. Era comedido, quase amputado no que representasse força, ousadia, sinal de vida.

– Por este não vem mal ao mundo, anuíam baixinho, dando topetadas, as beatas velhas.

Não, pelo ceguinho não vinha mal ao mundo. Todavia, ele não era insensível à aproximação da carne feminina, principalmente a carne perfumada. Distinguia as senhoras, não só pelo passo leve e curto, mas também pelo cheiro. Havia uma, cujo aroma o inebriava. Mal vinha à esquina do templo, já a sentia como perdigueiro que dá tento de caça. Dilatava as narinas, mas... imediatamente as coçava, disfarçando, e dispunha-se a falar à aparecida com unção.

– Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.

– Já sei, Fernando. Pega lá, olha, para rebuçados.

A senhora afastava-se, e ele seguia-lhe o rasto com a ponta do nariz afilada para o aroma.

Dentro da igreja, identificava os perfumes com as vozes.

– Aquela, a que canta alto, é a que cheira a cravo.

– A de voz rouca espalha um cheiro grosso que me enjoa.

– Esta, sim, tem voz de pintainho, mas é desenjoada. Cheira às ervas do monte.

Os pecados do ceguinho, como se vê, eram latentes, ocultos.

No entanto, mordia às vezes os lábios para os não revelar.

– Ah! Minha Senhora, que lin... Sim, minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.

– Obrigado a Vossa Excelência. O ceguinho nunca se esquece de pedir a Nosso Senhor pela saudinha de Vossa Excelência. Que lin...

Seguia-a com o nariz como de costume. Olfacto terrível!

Mas, não só o olfacto. O ouvido também... Era de um apuro! Cativava-se de todo o som, próximo ou longínquo, e guardava de memória para sempre o som harmonioso.

– Muito bem cantou o Veni aquela que cheira à erva do monte! Parece impossível!

Dizia isto no degrau do cruzeiro quando recordava passos de festividade. Mas, dizia-o sem falar. Mexendo os beiços, mal articulava as sílabas. Não descobria o peito.

Um dia, sem mais nem menos, pediu a um irmão, com quem vivia, que lhe comprasse uma guitarra até cem mil réis.

– Pago-ta às migalhinhas... Vê se ma compras. Se ma comprares, és bom irmão. Se ma não comprares, mereces ser ajudado de Deus, mas é à moda... Oxalá que todos os cegos do mundo te amaldiçoem entre a Hóstia e o Cálice.

– Carago! És mau como as cobras...

 –Agora sou! Sou ceguinho.

Dias depois, tinha a guitarra. Não se sabe como o irmão se houve para a conseguir. Era pobre como Job. Comprou-a por milagre para evitar a praga rogada entre a Hóstia e o Cálice.

Com a guitarra nas unhas, o cego desforrou-se da tristeza e humilhação a que votara corpo e alma durante uns poucos de anos. Rompeu a capa que o cobria – capa feita do aniquilamento de todas as vontades. Pôs-se a tocar pedaços de amor musical, notas quentes trazidas pelo vento desde a cidade ruidosa até o adro silencioso.

–Não deves tocar isso, dizia-lhe uma senhora.

Ele porém não a ouvia. Erguia-se do sopé da cruz, metia-se no cardenho e iluminava-o todo com um zangarrear feito de sol.

– A guitarra deu cabo do ceguinho. Oxalá não seja a sua perdição, temia outra senhora.

Como de facto. A guitarra deu cabo do ceguinho. Deu-lhe cabo da compostura, do arranjo com que se sentava nas escadas da cruz, e até lhe deu cabo da voz monocórdica. Era com altos e baixos que proferia:

– Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo. Disse o Senhor Abade.

– Está bem, está bem.

As senhoras, estranhando-lhe o modo novo de pronunciar a frase, fugiam dele. Davam à fuga, endireitando o busto, o tom particular da ira amordaçada. Só elas sabem como se faz isto.

A escarcela do cego, outrora pingue de coroas, começava a ressentir-se da metamorfose do dono. Passava dias sem se estrear com um tostão.

– Paciência. Não matei a cabra. Mato-a amanhã.

O homenzinho, que tinha sido anjo no âmbito da igreja, passara a falar calão de motorista. Adquirira desenvoltura feia em cego. Parecia maluco. Tinha febre e tosse.

Muito magrinho, cada vez mais magrinho, começou a ficar pela cama dias seguidos. Para se entreter, pedia à cunhada o favor de lhe chegar a guitarra e tocava. E até cantava!

– Bossemecê está doido de todo. Rais me parta se lhe torno a chegar às unhas esse diabo dessa biola.

O cego ria-se como perdido. Fazia-lhe cócegas a zanga pitoresca de Tomásia – sua cunhada.

– Ai, Tomasinha, a menina é um anjo. Fazia lá essa desfeita a um cego!

– Um cego que não tem juízo... Sabe que está um chato? Bom tempo, em que as coroas luziam nesta casa.

– Hão-de tornar a luzir, Tomasinha!

– Quando?

– Sabe o que me lembrou, Tomasinha? Arranjar um rapaz que cante e ir ver mundo, tocar por aí fora.

– Habia de fazê-las frescas, tísico de todo...

O cego amuou, mas, daí a pouco, em voz meio sumida, confusa, como se estivesse a sonhar, ia dizendo:

– A Tomasinha é um anjo. Parece a senhora que canta mal e cheira às ervinhas do monte.

– Doido assim!, exclamou a cunhada.

O cego estava a morrer ou fingia que estava a morrer. Não tocava guitarra, nem pegava em comida. Mas, lembrando-lhe a cunhada o dever de se reconciliar com Deus, disse que era cedo.

– Quando for altura, concluiu.

– Quando for altura, está bossemecê a contas. Lembre-se que já daí se não alebanta.

O cego respondeu como se a não ouvisse:

– A menina é um anjo...

Passaram-se dias sem que o cego pegasse em comida ou pedisse a guitarra para zangarrear. Até que uma tarde, quando o sol lhe varria a cama com um rebotalho de luz amarela, o cego implorou:

Deixe-ma ver agora. Quero despedir-me dela para sempre.

A cunhada aproximou-se do leito condoída.

– Está aqui, tataranha! Aqui!

Neste momento, o cego subjugou os pulsos da mulher e beijou-lhe à pressa as mãos, a face e os cabelos.

– De vossemecê foi que eu me quis despedir. A guitarra? Que a leve o Diabo!

– Seu porco, seu ladrão! O Quim há-de sabê-lo!

No dia seguinte, o Quim, a escumar pelos cantos da boca, intimou o ceguinho a sair de casa.

– Perdoa-me, Quim. Foi o Demónio que me atentou.

– Bai-te embora. Cego seja eu como tu se te não mato. Ou te mato ou te amaldiçoo entre a Hóstia e o Cálice. A ti e a todos os cegos do mundo. Oubiste, alicréu?

– Mata-me, que eu não saio daqui. Chama o Senhor Abade. Quero-me confessar. Por alma da nossa mãe, perdoa-me. Foi o Demónio que me atentou.

– O Demónio dou-to eu. Confessa-te na igreja, bíbora! Aqui tens as calças. Ou as enfias ou te corto o pescoço.

Daí a menos de um ai, o ceguinho estava na rua com a guitarra suspensa do pescoço.

Não se soube mais dele. Ou anda de terra em terra, tocando e cantando novos desesperos, ou, tísico no fim, o vento lhe deu no peito e o levou até um valo como faz às folhas mortas.

- In Terra Ingrata, Editorial Estampa
Clique na imagem para ampliar. Matéria transcrita e editada. Sugestão de JASA. Edição de J. L. Gabão - "Escritos do Douro" em  Janeiro de 2012.

Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

LETRAS | COM VIDA - João de Araújo Correia

LETRAS | COM VIDA - Literatura, Cultura e Arte nº 2, 2º semestre 2010 - dossier João de Araújo Correia
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João de Araújo Correia no "Escritos do Douro"
João de Araújo Correia no "Google"
Clique nas imagens para ampliar. Matéria transcrita e editada da publicação  "Letras com Vida". Edição de J. L. Gabão - "Escritos do Douro" em  Janeiro de 2012.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Uma velha Estante

João de Araújo Correia

Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.

Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.

Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.

Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.
Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.

Procedia, a seu modo à catalogação dos livros da magnífica estante. Se fosse hoje, catalogaria em verbetes, mais fáceis de consultar que um bacamarte de papel pautado. Mas, em suma, aquele senhor de óculos, talvez inocente em bibliografia ou biblioteconomia, sempre tentou, o melhor possível o inventário dos livros.

Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.

Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.

Falta-me saber se já começaram a ser catalogados. Livros sem catálogo, para quem os quiser consultar, são inúteis ou pouco menos.
Qualquer biblioteca exige três catálogos: o onomástico, o didascálico, e o ideográfico.

O mais importante de todos, em minha opinião, é o onomástico. Poderá esperar, ate melhores dias, pelos outros dois.

A velha estante dos nossos bombeiros poderá prestar serviços a estudiosos se for catalogada. Mãos à obra? Agora, que os Bombeiros festejam o centenário, saúdo-os com este alvitre.

Nota: Esta crónica de muito interesse para a história da AHBV do Peso da Régua foi publicada no jornal O Arrais, de 4 de Dezembro de 1980, pelo escritor reguense com o pseudónimo de Joaquim Pires.
Uma velha Estante
Jornal "O Arrais", quinta-feira, 15 de Dezembro de 2011
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Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de JASA (Dr. José Alfredo Almeida) para o blogue "Escritos do Douro". Edição de J. L. Gabão - "Escritos do Douro" em  Janeiro de 2012.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Sinais de Incêndio

Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os Sinais rezam como Signaes.Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…

Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.

No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.

Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?
Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.

Como de facto. A tabela rezava assim:
Ø  4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
Ø  5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
Ø  6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
Ø  7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
Ø  8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
Ø  9  badaladas – Fora de Vila.
Ø  Para parar - 5 badaladas.
Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas…


É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga.
Muito estimaria que alguém me oferecesse um exemplar perfeito dos SIGNAES DE INCÊNDIO. O que possuo não pertenceu a meu pai. Deu-mo um amigo. Mas, tão gasto, que mal o posso ler. É pena… Como folha velha, teria mais poesia se fosse mais legível.


Nota do Autor: Diz-me pessoa amiga que a Rua do Passo, no Peso, é a que vai da Cruz das Almas, em linha recta, às Rua da Carreira. Abre para essa rua a propriedade a que chamam de Gama. Esta informação, que muito agradeço, completa o artigo que intitulei de Sinais de Incêndio.
         *Esta crónica foi publicada no jornal “O Arrais”, edição de 6 de Março de 1980, pelo consagrado escritor com o pseudónimo de Joaquim Pires. Imagens e texto cedidos por José Alfredo Almeida em Fevereiro de 2011 para Escritos do Douro. Clique nas imagens acima para ampliar.

Obs. - Atualização de post já incluido em 26 de Fevereiro de 2011. Texto incluído também no post "Sinais de Incêndio na Régua", publicado em 6 de Agosto de 2009.


Sinais de Incêndio
Jornal "O Arrais", quinta feira, 1 de Setembro de 2011
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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A Botica do Anastácio

João de Araújo Correia

A Régua actual, tornemos a dizer, não é muita antiga. Nasceu com a Companhia Velha, cujo edifício e armazém, à beira do nosso rio, são uma espécie de quartel-general do país vinhateiro. Era à Régua o foro de capital do Douro.

Mas, por hoje, vamos lá recordar a botica do Anastácio, situada na Rua dos Camilos, defronte da antiga loja do Valente Novo. Loja que mudou de nome português para nome francês, mudando o proprietário. Deus lhe perdoe!

A botica do Anastácio! Já toda a gente lhe chamava farmácia. Mas, o meu pai, amigo de termos velhos ainda lhe chamava botica. Assim como chamava Rua da Bandeira à Rua dos Camilos, porque os terrenos, por ali situados, tinham pertencido aos Portocarreiros, fidalgos da Bandeirinha, lá em baixo, na cidade do Porto.

A Régua não é muito antiga. Mas, já se pode ir falando da Régua de ontem aos actuais reguenses. Como tudo quanto nasceu, também, a Régua vai envelhecendo.

A botica do Anastácio é de ontem. É do tempo em que não havia clubes ou só havia um clube. É do tempo em que os mentideiros, os soalheiros, os centros de cavaco, eram as farmácias ou mercearias. Memorável ponto de reunião foi a botica do Anastácio - como lhe chamava meu pai. Memorável clube improvisado.

Anastácio, de pé, do lado de dentro do mostrador, deitava aos contertúlios, de vez em quando, uma palavra mansa.

Era homem calmo, correcto, farmacêutico limpo e honesto como não havia segundo. Receita aviada por ele saía das suas mãos como obra-prima em forma de garrafa, hóstias ou pomada. Morreu bastante novo, com uma diabete quase fulminante.

Contertúlios reunidos à noite eram aí meia dúzia. Além de meu pai, conto o Dr. Vasques Osório, mais conhecido por Doutor Galego, por ser filho de Domingos, galego de nação; Joaquim Lopes da Silva, homem de grande tino comercial, uma energia oriundo de Ovar; Cardoso Mirandela, então ajudante de notário, homem esperto e positivo; Joaquim de Sousa Pinto, merceeiro bem disposto, dedicado comandante de bombeiros; Joaquim Penhor, a quem chamavam o Tio Rico, e outros.

Conversavam sobre a política do tempo, contavam anedotas recessas, etc.

Tio Rico morava lá em cima, no Poeiro, numa casa que veio a ser residência paroquial. Creio que vivia com mulher e cunhadas. E, como não tivesse filhos, deixou a casa ao Cardoso Mirandela, sobrinho dele por afinidade.

A Régua não é muito antiga. Mas, como se vê, começa a ter que contar.
.
Nota: Esta crónica foi publicada no jornal O Arrais, de Peso da Régua, com o pseudónimo de Joaquim Pires.
Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2011. Clique na imagem acima para ampliar.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Uma velha Estante


João de Araújo Correia

Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.

Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.

Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.

Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.

Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.

Procedia, a seu modo à catalogação dos livros da magnífica estante. Se fosse hoje, catalogaria em verbetes, mais fáceis de consultar que um bacamarte de papel pautado. Mas, em suma, aquele senhor de óculos, talvez inocente em bibliografia ou biblioteconomia, sempre tentou, o melhor possível o inventário dos livros.

Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.

Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.

Falta-me saber se já começaram a ser catalogados. Livros sem catálogo, para quem os quiser consultar, são inúteis ou pouco menos.
Qualquer biblioteca exige três catálogos: o onomástico, o didascálico, e o ideográfico.

O mais importante de todos, em minha opinião, é o onomástico. Poderá esperar, ate melhores dias, pelos outros dois.

A velha estante dos nossos bombeiros poderá prestar serviços a estudiosos se for catalogada. Mãos à obra? Agora, que os Bombeiros festejam o centenário, saúdo-os com este alvitre.

Nota: Esta crónica – de muito interesse para a história da AHBV do Peso da Régua - foi publicada no jornal O Arrais, de 4 de Dezembro de 1980.

- Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique na imagem acima para ampliar.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Saudades da Natureza

João de Araújo Correia

Tenho saudades da natureza, que ainda conheci quando cheguei a este mundo. Pela maneira como a vão ferindo, penso que morrerá antes de mim. Levo essa pena para o outro mundo.

Agora, que é Primavera e demais poesias ma anunciavam. Mas, não sei para onde foram as andorinhas. As pessoas limpas substituíram-nas por andorinhas de caco, tão silenciosas, tão quietinhas e tão asseadinhas, que não incomodam ninguém. Debaixo dos alpendres, colam-se à parede, como enfeite fixo, para todo o ano. Aí ficam, dando as quem as vê o mais subtil exemplo de maneirismo bem procedido, satisfeito de si próprio e de tudo quanto existe, Dão um bonito exemplo.

Os pedreiros, primos das andorinhas, bons artistas, que andam pelas torres e pelas pontes a trabalhar, lançando-lhes imaginários fios, para não caírem, também se foram. Para onde? Talvez para França ou Alemanha, onde o trabalho de cada pedreiro é pago a peso de oiro.

No meu rincão, à parte o cheiro da vinha, tão delicado, também as ribanceiras, os valos e cômoros anunciavam, com miríades de flores, a Primavera. Os cardos, a macela, o rosmano e a alcachofra desafiavam, da sua humildade, a altivez do espinheiro. Hoje, não desafiam ninguém nem desafiam nada. Parece que provaram, antes de florir, a dose de herbicida espalhado na vinha para evitar a cava. Quando chegar o São João, quem quiser saltar a uma fogueira não poderá fazê-la com uma erva aromáticas. Terás de se remediar com o gás Cidla.

Vem aí o Verão. Quem é muito novo pode ser muito bonito e até usar cabelo de mulher, mas, não sabe o que foram, à beira rio, as noites de Verão. Eram noites de Walt Disney. Eram sinfonias de ralos e rãs à beira-rio. Seriam uma guisalhada de mil machos alegres numa viagem sem fim. Mas, toldando a concha duriense, de montanha a montanha, não incomodavam o ouvido. Parece que o acalentava como canção natural. Hoje, tão fantástica emudeceu para deixar roncar os automóveis, os bêbados e os altifalantes. Cultiva-se o ruído, cuidando que é progresso.

Em sítios selváticos, pelo passavam pelo céu esquadrilhas de mochos reais. Nunca mais se viram nesses lugares bravios, porque a selva cedeu à mão civilizada, que não pode ver matas. Vendeu-as todas para apurar dinheiro.

As pegas e os tordos, que vinham a seu tempo visitar o Douro, para comer azeitona e o mais que pudessem, demandam agora, como turistas enfastiados, outras regiões. Se ainda existem, irão à procura de frutos que não saibam a insecticidas. Que os encontrem é o voto de quem perdoa às pegas o vício da ladroíce e outras manhas como perdoará aos tordos, por amor à finura e à disciplina, a abusiva maquia de moleiros na safra da azeitona.

Em cada quintal, empoleirado num lodo ou num loureiro, cantava às tardes um melro. Deixou de cantar ou é milagre que cante, à míngua de poleiro e até à míngua de cantor. Tão raro é agora o melro negro como o fragoeiro.

Passarinhos miúdos podiam encher, em menos de um amém, a bolsa do naturalista. Este desgraçado, se hoje a quiser encher, terá de papar muita légua. Pintassilgos e pintarroxos, tentilhões e verdilhões, piscos e cotovias voaram para sempre. Só se vêem como ilustrações de calendário. Mas, não cantam.

O ar puro era puro. Os automóveis, que passavam por quem ia a pé, tinham tomado chá em pequenos. Eram incapazes de abrir o escape. Hoje, até na face dos polícias fazem o serviço. O ar, grosso e compacto, corta-se à faca para o peão abrir caminho. Mas, não se livra de levar nos pulmões o contrapeso.

Se mergulharem no rio, só encontraremos alguma boga e algum barbisco. Sável, enguia e lampreia desertaram. No tempo da desova ou do passeio, rio acima, eram uma delícia e a fartura de quase todos os durienses. Hoje, só se vêem próximo da foz. De Entre-os-Rios para riba, temem o diabo feito açude. Só a poder de muito pulso o poderão transpor. Se ninguém lhe acudir, diga-se adeus às famosas pescarias do Alto Douro. Diga-se adeus a S. João da Pesqueira.

Onde quer se condena uma árvore sem julgamento. Não há poeta nenhum que não se lembre de cedro, castanheiro ou plátano abatido por ser árvore. Não haverá regedor, em Portugal, sem delitos de arboricida na pasta administrativa. Os mais ingénuos contam como glórias os arvoredos sacrificados. 
……………………………………………………………………………………………… 
À última hora, há quem procure salvar a natureza com técnicas perfeitas. Se tal se conseguir, já aqui não está quem se desesperou.

- 9-5-70 - In livro “Pó Levantado”, edição da Imprensa do Douro, 1974, Peso da Régua. Colaboração do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão. Imagem acima do Dr. João de Araújo Correia recolhida da internet livre e editada para o blog "Escritos do Douro". Clique na imagem para ampliar.

Dia do Patrono das Escolas da Régua, João de Araújo Correia

Dia do Patrono das Escolas da Régua, o escritor João de Araújo Correia, que hoje dia 3 de Junho se está a comemorar na cidade do Peso Régua:
(Clique nas imagens para ampliar. Colaboração de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão)


quinta-feira, 5 de maio de 2011

Os Esturjões

                                                                                                         João de Araújo Correia


O que mais se pede ao leitor é que não confunda esturjões com intrujões.

Se estes abundam, a ponto de se tornarem insuportáveis, os outros, que são inestimáveis peixes que vão rareando. Temerosos de barragens, desertam dos nossos rios, que procuram para desovar ou apenas chocar ovos.

O nosso rio, o Douro, foi mimoso de esturjões antes de as barragens o interceptarem ao longo do percurso. Esturjão que o demande, recua. Irá por ou chocar em outra água doce.

É crível que o duriense não conheça o esturjão. Mas, conhece-o com outro nome. Conhece-o como sôlho. Se nunca o viu, conhece-o do prolóquio dormir como um sôlho.

Digam os sábios se o sôlho dorme profundo ou leve, se dorme sempre ou parece que está a dormir. Será o come-e-dorme?

É natural que pareça sopitado. Tem muito peso e é pouco rico em barbatanas. É crível que lhe não apeteçam grandes deslocações, quanto mais correrias… O tempo que vivem em água doce, à parte da função inerente à choquice dos ovos, passa-o a caçar peixe miúdo e animáculos escondidos no lodo. Por isso lhe apetecem as águas profundas.

Há anos, quando o rio Douro ia secando, mercê de longa estiagem, descobriram os pescadores, nos poços a que ficou reduzido o leito fluvial, uma riqueza em esturjões. E toca a pescá-los para vender a peso como a vitela nos talhos. Belos exemplares, de muita soma de quilos, foram assim vendidos e saboreados. Foram superiores à melhor carne de açougue.

Deu-se este regabofe na parte superior do rio compreendida entre a foz do Tua e a Barca de Alva – zona de eleição do principesco sôlho. Principesco, sim, senhores, que o esturjão, como comida, foi sempre manjar real.

Não se lembraram os pescadores de deixar para semente um esturjão. Procederam como portugueses, que não se cansam de perseguir as espécies. No Gerês, só depuseram a arma depois de matarem o último cabrito. No Marão, depois de matarem a última águia.

Perseguir as espécies, mesmo que não seja até o extermínio, equivale a afugentá-las para nunca mais. À parte das albufeiras, que impedem a migração dos peixes, o persegui-los de morte pode ser causa de fuga. O pescador do Douro, para riba do Tua, pode ter afugentado o esturjão por ter sido bárbaro com ele. Sem esta ferocidade, é crível que alguns sôlhos preferissem à água salga a água doce. Há variedades de enguias que não regressam ao mar.

Seja como for, está hoje o rio Douro sem esturjões como sem sáveis, enguias e lampreias. Culpa do homem ávido ou da barragem, mais materialista que humanitária, o Douro perdeu uma riqueza.

Rezai-lhe por alma, ó gentes…
NOTA: Esta crónica está publicada no jornal O Arrais, na edição de 9 de Agosto de 1979, sob o pseudónimo de Joaquim Pires. Matéria enviada para "Escritos do Douro" por J. A. Almeida em Maio de 2011. Imagem acima recolhida da net livre.



Complementando:
Já houve esturjões em Portugal - Extinção foi na década de 1980


Vivia no mar e, na altura da reprodução, subia os rios portugueses para desovar. As bacias do Douro e do Guadiana eram então a casa do Acipenser sturio, a espécie de esturjão que já existiu em Portugal.


Era apanhado para ser comido, não para fazer das suas ovas a famosa conserva chamada caviar, explica a bióloga Fátima Gil, do Aquário Vasco da Gama, em Lisboa. Mesmo assim, um dos seus nomes vulgares era peixe-do-caviar. Chamavam-lhe também esturjão, esturgião, esturião, esturjão-real, peixe-cola, solho, solho-grande e solho-rei.


Em Portugal, hoje está extinto na natureza. O último rio que visitou foi o Guadiana, na década de 1980. "O desaparecimento deveu-se à pesca na época da reprodução, às barragens que os impediram de subir os rios para locais propícios à desova e à sobrevivência das larvas e juvenis, e à poluição", refere Fátima Gil. "Junto dos nossos grandes estuários encontram-se também as maiores cidades."


Nos países onde ainda existe o Acipenser sturio, como a bacia do rio Gironde, em França, e a do Guadalquivir, em Espanha, está criticamente ameaçado de extinção.


Mas há várias espécies de esturjões na Europa e na América do Norte, e de quase todas se faz caviar. A principal fonte desta delícia para muita gente é, porém, o esturjão-beluga - com o nome científico Huso huso -, que vive nos mares Cáspio e Negro e no rio Volga. É o maior de todos, podendo atingir nove metros de comprimento.

- 31.03.2011 - Por Teresa Firmino - "Público.pt"

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Lá andam as andorinhas…

Em noites primaveris, saio de casa, às vezes, a passear com minhas filhas. Dou uma volta pelo cais da Régua, construído com uma boa ajuda de vareiros. Contemplo os beirais de casas que vão envelhecendo. Como na minha infância, lá andam as andorinhas, reparando os lares com o lodo do rio. Subo a Rua das Vareiras, espreito a Rua Nova, entro na Rua da Ferreirinha. Uma fila de casas, com maior ou menor atrevimento, é ali precursora da nova arquitectura. Morre o crepúsculo. É a maneira de se verem, numa esmola de luz silenciosa, aquelas frontarias. Digo a minhas filhas: este casario, meninas, foi feito de sardinha e sal. Há sal na Régua…

- Da conferência de João de Araújo Correia Há Sal na Régua, in livro “Palavras fora da Boca”, edição da Imprensa do Douro (1972) - Peso da Régua, Matéria enviada por J. A. Almeida em Abril de 2011.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Uma Sineta de Palavras - 4

 
 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Continuação.
A primeira galera nunca chegou a ser devolvida ao museu então criado. Uma das relíquias que se encontram naquele museu é o famoso Sino de Canelas.


Em “Uma relíquia” (in Pátria Pequena-1956), estão patentes os seus conhecimentos sobre episódios da história portuguesa. Com simplicidade e concisão, narra um acontecimento trágico e violento, as invasões francesas, na sua passagem pelo Douro, nomeadamente por Canelas e Peso da Régua. E, para concluir, demonstra satisfação por os bombeiros terem no seu museu este valioso objecto que, em tempos mais recuados, pertenceu à terra onde nasceu, a freguesia de Canelas do Douro, quando era um concelho.


“Do extinto concelho de Canela existiram, até há bem pouco tempo, três relíquias: a casa da câmara, um livro de actas das sessões camarárias e uma sineta, cujo repique servira ordinariamente para convocar vereadores.
(…)
Das três relíquias, só existe a sineta. Quem quiser ver esse pedaço de bronze deverá subir à cobertura da nossa casa, como quem diz ao telhado do nosso quartel (Bombeiros Voluntários da Régua). Substituirá a sereia quando a sereia emudecer.
(…)
Do antigo foro de Canelas, à parte a rua da Picota, que ainda existe, continua a viver como nova, por ser de bronze, a sineta que alarmou os povos em 1808. Nós, os Bombeiros da Régua, orgulhamo-nos da sua posse. Ao festejarmos os setenta e seis, rica idade, é-nos agradável celebrar uma relíquia que não deslumbra o nosso brasão.”


Durante a sua vida, o escritor teve a oportunidade de conhecer, com excepção de Manuel Maria de Magalhães, todos os comandantes dos bombeiros, com os quais privou de perto e fez amizade.


Sucedeu ao Comandante Manuel Maria de Magalhães uma figura da cultura reguense, o jornalista, o pintor, o escultor, o investigador José Afonso de Oliveira Soares (1892-1927), autor da “História da Vila e do Concelho de Peso da Régua”. João de Araújo Correia foi seu amigo íntimo e ambos escreveram nos jornais que se publicaram na Régua nas primeiras décadas do séc. XX.


A ele dedica a crónica “Configurações” (In Horas Mortas-1968) para elogiar o seu génio de artista. E na crónica “José Afonso Oliveira Soares”, publicada na primeira página do "Jornal da Régua", em 1928, escreve sobre um seu retrato para   lhe gabar  as suas qualidades morais.


“O retrato é mal tirado. Mas a nossa adoração espiritualiza-o. Aos olhos dos devotos não escorrem sangue as feridas mal pintadas dos crucificados? À nossa vista, o Senhor Soares gravado é o Senhor Soares vivo. O fenómeno do riso no octogenário ensilveirado de barbas é um dos encantos do homem que vem, às tardes sentar-se no banco do Zé Pinto, do esteta que procura uma mercearia para espairecer, como há enxovedos que procuram os museus para ressoar. O riso é o triunfo do homem sobre as trivialidades que o circundam. A beleza e fealdade das coisas são reacções interiores. Por isso vemos o Senhor Soares deliciado quando o Afonso Henriques Morrão pesa bacalhau ou o Zé Pinto se põe a esculpir estátuas impressionistas de oiro, com manteiga. Se o amor preleva o senso estético no descobrir em prosa poesia num pelo defumado do cachimbo do Senhor Afonso Soares, veremos o singular indivíduo que vive oitenta anos à sombra de sertanejo campanário, sem prejuízo da harmonia do seu vestir ou pensar. A gravura que encima, esta coluna e, por consequência uma maravilha.
(…)
Não é exacto valerem os homens somente pela obra executada. Os homens valem pelo mundo íntimo que abrigam e vem transparecer à flor do olhar, do gesto, da palavra, que é a maneira de pôr a gravata ou o chapéu. O Senhor Soares vale um tesoiro.Com aquelas barbas chamuscadas de fumo, a moeda romana que lhe orna o peito, vale tanto como se houvesse despedido do lar aos vinte anos, com a sua habilidade e seus pincéis e regressasse pelos oitenta, coroado de espinhos loiros, bem granjeado o nome pomposo de Mestre José Afonso”.


Quanto ao Comandante Joaquim de Sousa Pinto (1927-1930), comerciante estabelecido na Rua dos Camilos, nº 45, no tempo em que havia as mercearias com fartos recheios de produtos do comércio de retalho, homem que também se distinguiu como vereador da autarquia, nos finais da monarquia, foi referenciado na crónica “A Botica do Anastácio”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1981.


“A Régua actual, tornemos a dizer, não é muita antiga. Nasceu com a Companhia Velha, cujo edifício e armazém, à beira do nosso rio, são uma espécie de quartel-general do país vinhateiro. Deram à Régua o foro de capital do Douro, região que vai desaparecer – se é certo o que anunciam os jornais portugueses. Caso para gritar: aqui del-rei, que matam o Douro!
Mas, por hoje, vamos lá recordar a botica do Anastácio, situada na Rua dos Camilos, defronte da antiga loja do Valente Novo. Loja que mudou de nome português para nome francês, mudando o proprietário. Deus lhe perdoe.
A botica do Anastácio! Já toda a gente lhe chamava farmácia. Mas, o meu pai, amigo de termos velhos ainda lhe chamava botica. Assim como chamava Rua da Bandeira à Rua dos Camilos, porque os terrenos, por ali situados, tinham pertencido aos Portocarreiros, fidalgos da Bandeirinha, lá em baixo, na cidade do Porto.
A Régua não é muito antiga. Mas, já se pode ir falando da Régua de ontem aos actuais reguenses. Como tudo quanto nasceu, também, a Régua vai envelhecendo.
A botica do Anastácio é de ontem. É do tempo em que não havia clubes ou só havia um clube. É do tempo em que os mentideiros, os soalheiros, os centros de cavaco, eram as farmácias ou mercearias. Memorável ponto de reunião foi a botica do Anastácio - como lhe chamava meu pai. Memorável clube improvisado.
Anastácio, de pé, do lado de dentro do mostrador, deitava aos contertúlios, de vez em quando, uma palavra mansa.
Era homem calmo, correcto, farmacêutico limpo e honesto como não havia segundo. Receita aviada por ele saía das suas mãos como obra-prima em forma de garrafa, hóstias ou pomada. Morreu bastante novo, com uma diabete quase fulminante.
Contertúlios reunidos à noite eram aí meia dúzia. Além de meu pai, conto o Dr. Vasques Osório, mais conhecido por Doutor Galego, por ser filho de Domingos, galego de nação; Joaquim Lopes da Silva, homem de grande tino comercial, uma energia oriundo de Ovar; Cardoso Mirandela, então ajudante de notário, homem esperto e positivo; Joaquim de Sousa Pinto, merceeiro bem disposto, dedicado comandante de bombeiros; Joaquim Penhor, a quem chamavam o Tio Rico, e outros.
Conversavam sobre a política do tempo, contavam anedotas recessas, etc.
Tio Rico morava lá em cima, no Poeiro, numa casa que veio a ser residência paroquial. Creio que vivia com mulher e cunhadas. E, como não tivesse filhos, deixou a casa ao Cardoso Mirandela, sobrinho dele por afinidade.
A Régua não é muito antiga. Mas, como se vê, começa a ter que contar”.


Do Comandante Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1949), ajudante de notário de profissão, jornalista em jornais de índole republicana, distinto poeta, com uma obra publicada – “Farternalis Dolor” -  e muita  dispersa, o escritor  insere  no seu livro “Lira Familiar”,  o fragmento poético Instantâneo VI, que aquele tinha assinado com o pseudónimo de Gil Vaz, no “Jornal da Régua”, em1937. Em nota final, nessa sua obra, elogia-lhe o talento de poeta e aconselha que se reúna num livro a sua poesia dispersa.


“Poeta lírico de altíssimo talento, pedem colectânea há muito, os seus dispersos.Com ele se poderia formar um dedicado ramo de flores”.


O Comandante Lourenço de Almeida Medeiros (1949-1959), faleceu em 12 de Dezembro de 1959. Destacou-se pelos seus 63 anos de serviço nos bombeiros, o que foi reconhecido com uma alta condecoração do Estado, a comenda de Cavaleiro da Ordem da Benemerência.


Na crónica intitulada “Delicadeza” (In Pátria Pequena -1959) escreveu um “in memoriam” a um homem delicado, carinhosamente tratado pelo “Lourenchinho”.


“Faleceu a 12 do corrente, nos subúrbios desta vila, um homem delicado. Melhor dizendo, faleceu a 12 do corrente, nos subúrbios desta vila, um homem que exerceu, durante mais de oitenta anos, a delicada arte de ser delicado.
Parece que o exercício dessa função espiritual o conservou moço até ao limiar da cova. Tinha oitenta anos como se tivesse apenas cinquenta, mas, direitos e elegantes como guias de salgueiro.
Toda a gente sabe ou adivinha que o nosso morto é o Lourenço de Almeida Pinto Medeiros, o Lourenchinho, como lhe chamávamos todos, consoante o uso no Norte. O inho, entre nós, não é mau signo de equívoca personalidade, é tributo que se paga em moeda de afectivo respeito, a um homem que o mereça.
O Lourenchinho, reguense nato, inteligência circunscrita a ideias intramuros, coração transbordante de paixões locais, Bombeiros e Festas do Socorro, foi excepção na Régua devido à sua ingénita delicadeza.
Por esse motivo, além de outros, faz imensa falta a este burgo comercial, tão atarefado, que não considerou que cortesia é sinal de civilização.
Terra que não saiba cumprimentar, que não perdoe pequenas fraquezas a naturais e estranhos, que não dissolva mesquinhos ressentimentos, não vença a iníqua antipatia que lhe inspiram os melhores filhos, é terra de esboço colonial de provável povoação.
É tempo de a Régua se orgulhar de cidadãos polidos como o Lourenchinho. Ele e poucos mais, que felizmente por aí ficaram, uns ricamente vestidos, outros pobremente vestidos, provam que a Régua não é árida de cortesia como a pintam os seus hóspedes mais sensíveis.
O Lourenchinho, foi fidalgo de natureza, que é maneira menos falível de ser fidalgo”.


Por volta de 1958, os bombeiros necessitaram de ajuda da população para comprar uma nova ambulância, a auto-maca de que tinham falta para transportar os doentes para os hospitais do Porto. Mais uma vez, o escritor reguense, que conhecia bem as dificuldades que vivia a Associação, mostra as suas qualidades cívicas.


O escritor sabia que os seus textos eram lidos com atenção e respeitados. Em tom dramático, mas repleto de humor, na crónica “Socorro!” (In Pátria Pequena-1958) faz um apelo à generosidade dos reguenses. Deve dizer-se que, no ano seguinte, os bombeiros juntaram a verba para compararem a necessitada ambulância.


“É indispensável e até urgente que os nossos bombeiros adquiram uma ambulância nova! A que aí têm é ainda um bom carro, foge que voa pela estrada fora e trepa ao cimo dos nossos montes como um gato, mas é inóspita para doentes e pessoas que os acompanham. Não tem defesa contra o frio e calor externos. Em viagens longas, consoante a estação, é frigorífico ou crematório.
(…)
Tornou-se angustiosa a necessidade de se adquirir nova auto-maca. A velha ficará para serviço rápido, subir a Poiares ou a Sedielos num rufo, suprir ou auxiliar veículo novo em caso de necessidade. Para levar um doente à Misericórdia do Porto, aos hospitais de Coimbra ou Lisboa, pôr-se-á a caminho ordinariamente uma ambulância capaz de o agasalhar e proteger com o maior carinho e o menor dispêndio.
De todos os fogos, o que lavra no corpo ferido ou doente é o mais credor de imediato socorro. Não há casa que valha uma vida humana. Levar a uma enfermaria o semelhante é acudir-lhe com o coração guiado pelo espírito. É um acto que transcende da simples caridade. Deixar morrer é matarmo-nos. O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós todos. No caso de auxiliarmos os Bombeiros, na compra da auto-maca, o que lhe dermos será economia nossa que vamos pôr a juros. Imaginemos, à nossa vontade, que somos beneméritos. O que seremos, em boa análise, é egoístas. O óbolo que sair do nosso bolso é um seguro de vida. Reverterá, quando mal nos precatarmos, a nosso próprio favor. Ninguém dirá, vendo passar a auto-maca: de ti, estou eu livre.”


Em 8 de Agosto de 1953, o bombeiro João Gomes de Figueiredo - conhecido por João dos Óculos - morreu no combate ao  incêndio  na Casa Viúva Lopes. A sua morte causou enorme a dor e mágoa aos reguenses que não deixaram de expressar os sentimentos, quer à sua família de sangue – deixava a viúva e três filhos menores na miséria –, quer à do seu coração, ao Corpo de Bombeiros.


Nesse dia fatídico, o escritor que, por sinal, era um seus dos patrões, já que era um dos sócios da Imprensa do Douro, onde o malogrado bombeiro trabalhava como tipógrafo, dirigiu um telegrama à Exma Direcção dos Bombeiros Voluntários, a manifestar os seus “Sentidos pêsames - trágico falecimento dedicado  Bombeiro e Homem de Bem Joaquim Figueiredo”.
Nas páginas do Boletim das Bodas de Diamante da Associação (1955), escreveu um soneto em memória daquele bombeiro. Para ele, este malogrado bombeiro que morria aos 33 anos de idade, era o símbolo que não podia ser ignorado, como exemplo verdadeiro de que, muitas vezes, estes “soldados da paz” dão a sua própria vida para salvar a do seu semelhante.


O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.


Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino…
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.


A sua associação - cândida amante -
Celebra hoje as Bodas de Diamante…
-Quase cem anos de existência honesta.


Um bom diante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.”
Em 28 de Novembro de 1980, quando a associação festejava o primeiro centenário e os bombeiros  estavam encarregados da  organização do 24º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, escreveu no Boletim do Centenário (1980) o inédito “História de um Soneto”, para lembrar os “versos de cegos” – na opinião de seu filho Camilo - que tinha escrito em memória  do abnegado jovem bombeiro João dos Óculos,  tragicamente falecido no combate a um  incêndio.


“Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um soneto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu, no cérebro, desde a primeira à última palavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.
Mas, que má impressão lhe causei! Premiou-me os catorze versos com uma coroa de espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955 eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e cantando, o noticiário de grandes casos. Eram quase sempre, eco de grandes crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a versalhada, que, na opinião do meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora… Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustrada, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos bombeiros.
(…)
Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publicista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos… Se todos pensassem o mesmo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não deixarás – reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás – digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados”.


Em carta dirigida ao Secretário da Direcção dos Bombeiros do Peso da Régua, encontrada nos arquivos da Associação, João de Araújo Correia pedia o máximo cuidado na revisão dos seus textos. Era um cultor rigoroso da língua portuguesa e temia os erros e as gralhas tipográficas estragassem a qualidade literária dos seus escritos.


“Para corresponder ao amável convite de V. Excia, para colaborar num livro comemorativo do centenário da sua Associação, tive a honra de lhe remeter, pelo Sr. António Luís Pinto, empregado da Imprensa do Douro, três originais.
Trata-se de uma crónica inédita, intitulada História dum Soneto, e de dois artiguinhos que devem ser agora republicados.
Suponho que nenhum dos meus escritos, enviados a V. Excia pelo Sr. António, destoarão da índole do livro. Todos aludem a tempos idos da Associação.
Como tenho tido medo a gralhas tipográficas, não dispensarei a revisão de provas. Podem estas ser enviadas pelo dito Sr. António Luís Pinto – seja qual for a tipografia que imprima o livro”.


O certo é que nesse Boletim só foi publicado o inédito. Nenhuns dos seus dois artiguinhos “dos tempos idos da Associação” foram republicados.


E foi pena… Em vez dele, publicaram uma sua poesia alusiva à data histórica, que intitulou de “Centenário dos Bombeiros”.


Em 28 de Novembro de 1980, os bombeiros da Régua celebravam 100 anos de vida, com sinais de vitalidade, força e grande determinação. Uma vez mais, mostram estar actuantes na sociedade e os seus valores de generosidade provavam que estavam preparados para assumir mais  desafios no futuro. Como sempre, os bombeiros olham em frente, marcham em direcção a um novo horizonte, sempre com uma intenção: fazer mais e melhor, estando ao serviço da sua comunidade.
A longevidade da Associação fez reflectir mais o escritor, para quem os seus homens tinham uma certa condição de imortalidade: “Bombeiros não envelhecem/Nem sequer podem morrer/Como qualquer outro ser/Bombeiros não envelhecem/Nem sequer pode morrer”.


Por outras palavras, o escritor João de Araújo Correia imortalizou os bombeiros da sua terra não como heróis, mas como seres de elevados princípios humanistas.


Ao longo de mais 130 anos de missão, os bombeiros souberam construir uma a história colectiva de uma instituição nascida para servir e ajudar as pessoas, erigindo uma grande casa para fazer o Bem, como o seu primeiro um ideal, mas também para ser útil social e culturalmente.


No início de novo século, apostarão na modernidade, no conhecimento, na formação e na inovação, mas serão testemunhas privilegiadas dos valores e dos princípios de humanismo, de altruísmo e de filantropia, que pretendem manter firmes e perenes, sem nunca esmorecer os ideais dos seus fundadores.


Porque os bombeiros merecem admiração e respeito de cada um de nós, temos de repetir o que deles afirmou o escritor João de Araújo Correia: “Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
João de Araújo Correia na "Wikipédia"