Camilo de Araújo Correia
Pelo que os jornais disseram abertamente e os amigos falaram à boca pequena, a última eleição dos elementos directivos dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua teve aspectos de braço de ferro e ranger de dentes.
Não cabe no meu comentário referir as serpentinas e garrafinhas de cheiro que das duas falanges atiraram uma à outra, traduzindo pútridos fermentos de incuráveis frustrações.
Eu sei que eleições são eleições e falanges são falanges. O que eu não sabia era que o recurso ao “vale tudo” pudesse um dia acontecer nos garbosos e briosos bombeiros da minha terra.
Mas aconteceu.
Os rapazes do Corpo Activo, toldados pelo miasma político latente, pousaram a machadinha, só porque não ganhou a lista da sua simpatia!!! E não se julgue que foi gesto indigesto de momento. Noventa por cento dos bombeiros já se negou a prestar serviço.
Esta atitude insuspeitada em mais de cem anos de História impoluta, não surpreendeu, tanto assim, o homem que hoje sou, um pouco capaz de acreditar em tudo.
Quem se surpreendeu até à comoção foi aquele menino que anda dentro de nós e um dia recordei:
“Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos meus primeiros raciocínios.
Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem.
Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas… como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? O que mais me intrigava era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer umas surras da minha mãe.
Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo inteirinho…
Foi numa tarde de calor e tourada. O cimo da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um figurante da corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas mãos de meu pai e de meu avô. De vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo.
Houve até um certo pânico, quando um cavalo, de grande pluma vermelha, subiu o passeio. A certa altura, que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão!
Os meus olhos nunca mais se despegaram daquele capacete de oiro e daquela machadinha de prata.
Quando a inveja me deixou falar, perguntei ao meu pai:
- Aquele menino é bombeiro?
- Não… é a mascote!
- É o filho do Zé Pinto. - disse-me, depois, voltado para o meu avô.
Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber, dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os bombeiros grandes”.
Naquele tempo os meninos vestiam a farda para serem homens. Os homens de hoje despem-na para serem nada.
Quero fazer uma chamada na eternidade, nesta hora de passar a revista cá na terra a uma formatura de nadas:
- Manuel Maria de Magalhães…
- Presente!
- José Afonso de Oliveira Soares…
- Presente!
- Joaquim de Sousa Pinto…
- Presente!
- Camilo Guedes Castelo Branco…
- Presente!
Sempre fiéis à sua Corporação, à sua terra, a si próprios! Mesmo no infinito.
Nota:
Esta memorável crónica encontra-se publicada no jornal “O Arrais”, de 17 de
Outubro de 1990. Comenta um dos episódios da instituição, com traços de
humanidade, de ternura e uma fina ironia invocando o exemplo de homens
intocáveis como a referência cívica e ética. O Dr. Camilo de Araújo Correia foi
um dos nossos: para além de ser director do extinto jornal “Vida por Vida”, órgão
oficial da Associação foi um ilustre Presidente da Direcção (1964-65) desta
Associação.
UMA CHAMADA NA ETERNIDADE
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 3 de Novembro de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Clique na imagem acima para ampliar. Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2011. Actualizado em 4 de Novembro de 2013.
2 comentários:
Naquele tempo os meninos vestiam a farda para serem homens. Os homens de hoje despem-na para serem nada.
Bem verdade, meu amigo! Os tempos mudaram, os valores são outros... a VIDA era mais doce e mais séria de se viver, encarada como uma dádiva, hoje, como sacrifício...
Sua crônica é enternecedora.
Gosto muito de passar por aqui e ver esta tua forma de escrever sempre clara sem deixar de ser reflexiva.
Abraços
Obrigado por gostar e voltar :))
Mas a cronica não é minha e sim de um saudoso amigo, médico e escritor, nascido também em meu berço duriense (Peso da Régua), que já 'partiu' infelizmente. Deixou-nos um magnífico legado literário que, O "Escritos do Douro", alimentado pela generosidade da saudade e pelo coração grande de durienses como Manuel Coutinho Nogueira Borges, José Alfredo Almeida e outros, vem tentando divulgar no globalizado mundo virtual. Cumprimentos.
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