O rio Douro fez parte da minha instrução primária,
como a geografia e aritmética. A escola ficava na Rua das Vareiras, ali a dois
passos. Não tínhamos recreio coberto, nem descoberto. Nos intervalos pequenos
corríamos em grande algazarra para a Meia Laranja, varandim sobranceiro ao rio.
Nós maiores descíamos a rampa até ao cais. Ali, ao mesmo tempo que brincávamos,
esquecidos da palmatória do Senhor Morais, íamos assistindo ao tráfego do rio.
Chegavam carros de bois, em grande chiadeira, com a
sua pipa de vinho fino debaixo de um molho de canas de milho. Pelo cansaço dos
bois e as pragas dos carreiros se adivinhava o Inferno dos caminhos. Outros
partiam, aliviados da pipa, de moço à frente a dizer iete… iete… e carreiro
atrás, de mãos nas chedas, para não cair. Aquele copinho a mais… uma ou outra
camioneta aparecia já, a destoar com as suas estridências no costumado arruido
do cais.
Os barcos rabelos, em linha ou lado a lado, conforme o
espaço acostável disponível, esperavam as pipas, balouçando-se pesadamente ao
som do chap, chap das ondas miudinhas que vinham morrer entre eles.
Os mareantes eram homens silenciosos. Andavam por ali
a preguiçar ou a fazer comida em pequenos potes de ferro. Mas, começando o
embarque das pipas alinhadas no cais, desatavam a praguejar e a dar ordens que
só eles entendiam. Causava uma certa ansiedade ver aqueles homens descalços e
de calças arregaçadas até ao meio das pernas, muito lépidos, a rebolar sobre
duas pranchas frágeis, acima das águas do rio, as pipas que o barco ia
engolindo. Mais uma… mais uma… Os homens subiam as pranchas com esforço e
lentidão e desciam-nas rápidos como lavandiscas. Do alto da apegada o arrais
dava indicações no arrumo da preciosa carga.
Para nós, a partida dos barcos rio abaixo, não tinha
grande encanto. A chegada sim. Por mais distraídos que andássemos, havia sempre
um que os descobria, mal despontavam as velas na curva do Salgueiral.
- Lá vem um!...
- São dois!...
- Olha aquele… que grande!
Os rabelos chegavam em frente da Régua como imponentes
majestades de um reino fabuloso. A vela caía como um suspiro de gigante
cansado.
Aqueles homens encardidos pelo sol e pelo vento
atracavam o barco em pouco minutos. Ainda hoje me impressiona a sua destreza.
Pressentindo instintivamente o fim do intervalo,
partíamos como revoada de pardais. Chegávamos aos bancos da escola muito
suados, de coração a bater e olhos cheios de rio. De um rio que não é este, de
barcos de ferros, ventrudos como dinossauros.
- Camilo de
Araújo Correia
In revista
Tribuna do Douro, Maio de 2005.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida e editado para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
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