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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Refazer Memórias

Na primeira metade do século passado ainda o senhor José Afonso de Oliveira Soares andava por aí, por todos os caminhos e todos os recantos da vila do Peso da Régua. E sempre numa postura de bonomia e de bom trato, de mais a mais afeiçoado não só às motivações jornalísticas, mas também a todos os cenários do desenho e da pintura. Andava por aí com as suas barbas já um tanto abrancaçadas e a sorver as fumaças de um cachimbo de boa paz.

Por esse tempo já eu era um gaiato de meia dúzia de anos, nascido e criado em meio rural, todo envolvido de singelezas e flores campestres.

Por esse tempo eu não conhecia o senhor Afonso Soares, muito menos o seu talento e as suas qualidades artísticas. E mal feito fora que eu, ainda mal saído dos cueiros, andasse já a dar tento das pessoas mais ilustres e mais admiradas. Os meus cuidados, de todo infantis, andavam de volta das pereiras e dos pessegueiros a ver se já tinham frutos amadurados. Também de volta da coelha parida, a saber de quantos laparotos era a ninhada. E a pocilga do reco, sempre na engorda, até que, pelo Dezembro, o Seara vinha matá-lo e sangrá-lo em modos de o aviar em presuntos e salpicões. Nos dias mais soalheiros da Primavera, podia ir aos ninhos ou à cata dos grilos, enquanto a moça Carolina lavava um montão de roupa no tanque grande, com a água toda escumada de sabão.

Isto será um resumo da minha pretérita ruralidade. Mas foi o quadro da Margarida, quadro que Afonso Soares pintou, que veio, só por si, refazer estas memórias.

O quadro da Margarida, pintado em folha-de-flandres, foi-me oferecido pelo meu amigo Mário Joaquim, que, na altura, trabalhava na tipografia da Imprensa do Douro. O quadro é, todo ele, um cenário de tonalidades e sabores campesinos e já há tempos lhe dei realce em letra de forma. Disse, por exemplo, que por um carreiro de terra vem caminhando uma rapariga cheiinha de mocidades. Ela traz na ilharga uma regaçada de erva fresca,  se calhar para mantença da coelheira. Afonso Soares, com um pincel miudinho, deu-lhe a finura dos traços e o que quer que seja de uma luz irradiante. Os olhos da rapariga,  movediços a todo o largo, não deixam de ser envolventes e nas faces afogueadas até parece que vem por aí a cantar umas cantiguinhas, bem avivadas no calor da garganta. Os longes do quadro, esses, são ainda uma harmonia de ruralidades. À cachopa pus eu o nome de Margarida, cachopa que sendo grácil e bem apessoada, também tem o nome de uma singela flor campestre.

Guardo o quadro como uma reserva do passado e com as ressonâncias que sobrevivem num crescendo harmonioso.

Ainda a refazer memórias, bem me lembro de há uns bons trinta anos ter ido, em consulta clínica, a casa do senhor António G. Castelo Branco, ali em Cambres, na Quinta da Bugalheira. Na casa e na estreiteza do quarto, reparei que um belo quadro estava pendurado na parede. Figurava uma cabeça de Cristo, com uma bela expressão de sereno e compadecido misticismo. Da transparência das tintas e suas discretas tonalidades, pareceu-me que se evolava uma luz de recolhida santidade. Pareceu-me, até, que aquele quadro era propício à beleza e ao talentoso amadorismo do pintor Afonso Soares. E, em conversa de bom e salutar convívio, disse-me o senhor Castelo Branco que o quadro lhe fora oferecido pelo autor Afonso Soares, pois tinha sido seu amigo e quase contemporâneo.

Mas, Afonso Soares também se distinguiu como escritor e jornalista e um digno Comandante dos Bombeiros da Régua. E foi com redobrado deleite que li e reli a primeira edição da História da vila e concelho do Peso da Régua, edição que guardo a bom recato na minha biblioteca.

Em conclusão, digamos que Afonso Soares tem um busto em bronze no Jardim do Cruzeiro, a exaltar e a perpetuar o talento e as benquerenças do jornalista, do escritor e do pintor. Ali está como um sinal de luz não esmorecida, sinal a reluzir e a pulsar no nosso entendimento.

O artista, afeito a uma órbita de novidades, parece adorar o seu mundo. A olhar a rua é ainda e sempre um mendicante da arte e da beleza.
- Manuel Braz de Magalhães, Novembro de 2013.

Clique na imagem para ampliar. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

MILAGRE

A JOSÉ AFONSO DE OLIVEIRA SOARES

Nesse inverno, de tanto chover, as estradas ficaram esbeiçadas. O rio levou pelo pé as vinhas dos nateiros. Das serras tombaram sobre os vales enormes fragas, redondas como jogas de brincar do tempo dos gigantes. Inverno pegado. Pelo Abril dentro, já as árvores se esfoiravam em pétalas brancas e em farrapos de côr, e as abelhas não saíam dos cortiços nem uma borboleta preava nos cálices alagados. Magoava a alma ver afogada em água sombria o sussurro claro do tempo das flores. Tristeza igual só a da cara dos lavradores meanhos quando iam às courelas esburgadas avaloar os estragos do temporal desfeito. Tragédia assim só se podia ler na máscara do cavador crucificado na umbreira dos cardenhos. A Páscoa estava connosco e o céu não se reconciliava com os pobres, nem rogado pelo canto aflitivo das aves. Era só chover, como se Nosso Senhor não tivesse arquitectado o firmamento com mais alegres desígnios.

Parecia um sinal.

Como Deus não bota os males todos a um canto, podia-se descontar um bem nesta desgraça. Debaixo dos escombros, que davam à paisagem o aspecto de bulida, aqui e além, por escava- terra vinda das profundas, nem um copo humano ficara sepultado. Tanto a sábios como a pobres de espírito dava isto que cismar. Inverno amaldiçoado e ninguém perecera fora de sua casa. Podiam-se dar louvores a quem manda…

Muito de admirar era também que certas casas arruinadas, solares antigos, paredes salitrosas de convento, rebutalhados de barbaçãs de guerra dos afonsinhos, permanecessem de pé, inabaláveis como velhinhos recurvos e cobertos de musgo, cuja resistência a todas as doenças causa o espanto dos médicos e a mal rebuçada alegria dos herdeiros.

Em Covelas havia um pardieiro naquelas condições. Chamavam-lhe a Casa das Mónicas, pedreira que vira expirar quatro senhoras decrépitas na alba do nosso século. Essa casa tinha numa padieira quebrada a certidão de idade: 1665.Todavia, mais que a padieira, rezavam da sua vetustez barrigas e cotovelos dos seus panos cobertos de heradeiras, assim como as órbitas vazadas de varandins e janelas, apenas guarnecidas de gonzos ferrugentos. Sem vislumbre de esquadria, parecida avantesma no acto de levantar vôo ou horsa desconjuntada com tropeção nos jarretes. E não caía… Os mendigos, acossados  dos vendavais, era ali que se refugiavam sem susto. As crianças das escolas eram ali que brincavam. Por chuva e por neve, o seu coito era aquele. De verão trepavam às cornijas aluídas e expulsavam dos buracos os zilros, fazendo competência de gritaria com eles. Nestes perigosos brincos não se magoou nunca rapaz nem rapariga – que as raparigas, nas escaladas do casarão esburacado, eram mais atrevidas que os rapazes.

Naquele inverno esperava-se que tombasse, que se afundasse de vez a nau desmantelada das Mónicas. As almas piedosas preveniam os mendigos: ó tio homem, vocemecê não se meta em semelhante lora, que morre lá assapado! As mãis proibiam os filhos de se aproximarem daquela ratoeira, armada pelo demo para os castigar, à falsa fé, das suas travessuras.

- Olhaide! Se vos vejo lá, ponho-vos esse rabo mais negro que esta saia…

Bem se importavam com os pobres e as crianças! Os pobres continuavam, com grande freima, a coçar as costas, roça que roça, nas esquinas de granito. As crianças não tinham outro recreio senão a Casa das Mónicas. Havia de ser o que Deus quisesse.

Tempos antes, andara de povo em povo um maluquinho triste, cuja atitude era tôda de protecção a imaginários seres em perigo. Olhos receosos, mãos enconchadas como se estivessem a acariciar a penugem de oiro de crânios infantis, era, por uma pena, a figura alada que vela crianças dormidas à beira de precipícios.

Uma tal Leopoldina, muito esperteleja para pôr alcunhas, quando o viu em Covelas a primeira vez, baptizou-o logo. É o Anjo da Guarda!

O apodo pegou de raiz. Frondejou em mil aldeias. Até gentes eclesiásticas, em todo o Cima-Douro, ao avistá-lo, soltavam esta graça: o Anjo da Guarda está connosco.

Naquele Inverno rigoroso, não se sabia o sumiço que levara o maluquinho. Estaria por lá entre os potes da cozinha de casa rica ou teria morrido. Se tivesse morrido, bem regalado devia estar, à banda de cima das nuvens, com sol do melhor e bons manjares celestes, enquanto os terreanos, de molhados, começavam a criar barbatanas de robalo.

Ia esquecido o Anjo da Guarda. O mais certo era ter-se lembrado Nosso Senhor de o recolher, porquanto o desgraçadinho andava cá em baixo só para penar.

No sábado de Ramos desse Inverno assinalado, à chuva juntou-se o trovão e o vento. Parecia o fim do mundo, o dia de juízo. Bem carregados podiam ser os carros no Verão seguinte, já que tão molhados se levavam a benzer os ramos. Que, lá diz o rifão: Ramos molhados, carros carregados.

Ás três horas da tarde negra – não há memória de negrume igual – esbugalharam-se os olhos dos aldeões, as queixadas dos aldeões descaíram de súbito. Ouvira-se um fragor medonho. As mulheres foram as primeiras que se puseram de alevante. Com os cabelos colados às costas, aderentes as saias às pernas musculosas, convergiram ao sítio donde partira o formidável estrondo.

A Casa das Mónicas estava por terra.

– Que é da canalha? O meu Zé? Ah! Fernandes! Filho da minha alma! Ah! Marques! Ah! meu ruço, que te não torno a ver!

Ficaram calvas algumas de tanto se arrepelarem. Outras ficaram roucas, outras ficaram gagas. Depois, atiraram-se às pedras que supunham ser as lajes da sepultura dos filhos, e aí se desunharam e se ensanguentaram, enquanto os homens, hirtos e pávidos, eram como bois no açougue, com a choupa espetada, antes de ajoelhar.

Cristo! Daí a pouco, não houve quelho donde não saísse canalha. Ele apareceu o Zé, o Fernandes, o Marques, o Henriques, o Fulgêncio, o Tobias, o Álvaro, quantos rebentos graciosos havia daquelas arrepeladas mães.

Contaram-se e recontaram-se. Estavam  todos. Nem se quer faltava a Mecias, engano da Natureza, que a fizera menina, devendo sair rapaz. Gritou-se ao milagre, que se podia ouvir no Porto ou em Salamanca. Desorientada, a Zefa Maníaca pôs catadura feroz, fechou os punhos, levou-os à cara do gentio, e disse:

– Calaide-vos! O Anjo da Guarda está sempre debaixo das sapadas.

Tresmalhou-se o rebanho. Os rapazes saltavam como cabritos. A Mecias, cabra de chocalho, ia ao chinquelimpé diante do soco materno alçado.

Do maluquinho triste ninguém se lembrava. O tempo desanuviou-se, assim como as caras dos aldeões se desanuviaram. Brilhou o sol à sua vontade, amadurecendo os poucos frutos vingados. Veio o Junho. Ceifou-se de noite por via do calor. Nas varandas de pau, abriram os cravos e as cravelinas – que rico cheiro!

Estávamos no pino do Verão – uma beleza. As vinhas começavam a ruçar. Apanhavam-se à mão pássaros estonteados do calor.

A Casa das Mónicas era um grande moroiço onde se empoleiravam à noite, em mangas de camisa, os trabalhadores suados. Aí se punham a cantar, sem tom nem som, cada um para seu lado, modas nossas e modas raianas, aprendidas nas segadas da Terra - Quente. Ainda foi bem cair a Casa das Mónicas para os cantadores terem poleiro!

Um dia – foi num domingo – apareceu em Covelas, vindo do Brasil, um sobrinho das Mónicas, dono e senhor daquelas ruínas. Era um chincharra-velho – nem há homem pequeno e magro com quem se compare. Escuro como o chocolate, olhos ígneos como os brilhantes que trazia ao peito, falas poucas e muito sossegadas, aí se põe a sondar, a medir amorosamente as pedras que tinham visto expirar as tias.

– Quero levantar esta casa. Se houvesse aí um mestre-de-obras que conhecesse a casa como ela era e ma reconstituísse, dava-lhe muito dinheiro.

Mestre-de-obras não havia outro em Covelas e seus arredores senão o Mestre José Pais. Está por nascer o que lhe há-de levar as lampas em obra de cantaria e de alvenaria. Chamado pelo brasileiro, justa a obra por tuta-e-meia, pois o Mestre José Pais, artista incomparável, nascera para perder e não para ganhar.

– Vamos a isso quando Vossa Senhoria quiser – foram as suas palavras.

Começou a remoção do entulho. Num vão, ajeitado em forma de carneiro rico, estava de pé, encostado a uma parede, o corpo do maluquinho triste. Parecia vivo, e dizem que cheirava bem. Daí a pouco, ficou nuzinho em pêlo. Da vestimenta de cotim e do cordovão dos sapatos fizeram-se relíquias...
- In Contos Bárbaros de João de Araújo Correia

Clique  nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editado para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 18 de maio de 2013

Retratos

Ninguém me dá relação de um retrato de D. Maria ll, que existiu ou deve ter existido na Câmara Municipal do Peso da Régua. Eu vi-o, lembro-me de o ver, creio que na Câmara, sendo eu pequenino. Recordo-me do saliente busto da rainha, tão saliente, pintado numa tela, que justificaria o cognome de Boa Mãe – aplicado à filha de D. Pedro IV.

Não sei se foi ou não excelente pintura. Não sei a que pintor se atribuiu. Sei que um bacharel idoso, vindo de Lisboa, quis provar, não sei com que razões, que se deveria atribuir a um pincel obscuro. Dava como autor da obra, um parente de apelido Inácio, conhecido por Inácio da Ribeira.

Ponha-se de parte o capricho reivindicativo do bacharel ansião para perguntar: onde pára o retrato de D. Maria II? Se alguém mo souber dizer, tenha a bondade de mo comunicar num postalzinho, embora o postalzinho, nestes belos tempos, lhe possa custar coiro e cabelo.

Passemos a D. Maria II ao seu segundo filho, que veio a ser, por morte do irmão Pedro, rei de Portugal.

Passemos a D. Luís, homem delicado, que patrocinou a fundação do nosso hospital em 1873. Foi seu patrono, é modo de dizer, até há poucos dias. Hoje, o nosso hospital não tem padrinho. Não tem nome. Confunde-se com qualquer outro. Por amor à centralização ou a descentralização? Responda quem souber.

De D. Luís I conheço dois retratos muito bons. Vi-os muitas vezes no chamado Hospital Velho, na casa onde funciona, hoje em dia, o Centro de Saúde. Retratos muito bons…

O de corpo inteiro é um retrato de rei, com botas de montar e outros atributos de soberania.

Pintou-o, para a nossa Régua, o pintor João Correia, que deixou nome no Porto. É esplêndido!

Mas, para meu gosto, melhor retrato é o de meio corpo é mais humano, menos destinado a fascinar. Saiu das mãos de Resende, mestre portuense amigo de Camilo.

Não sei onde se ostentam agora os dois retratos de D. Luís I. Oxalá estejam a bom recado, que mãos inteligentes e precavidas os protejam. Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui.

Do sempre saudoso reguense José Afonso de Oliveira Soares, homem tão hábil a escrever com a desenhar e pintar, talento disperso em múltiplos talentos, ficaram por aí alguns quadros, no género retrato, dignos de conservação. O retrato do Heitorzinho e do Chico Doido e mais alguns ficaram para sempre na retina de quem pôde ver e admirar. Quem os possuir não deve atirar com eles para um canto.

Se um dia a Régua se dispuser a instalar na Casa Vaz, abandonada pelo instituto do Vinho do Porto, o museu municipal, que muito lhe vai tardando, precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam. Nele ficariam a matar os retratos que mencionei e outros, que tenho visto em casas particulares. Se o Museu for bem organizado e bem defendido, não lhe faltarão beneméritos. Muita gente haverá que deseje distinguir-se, oferecendo ao Museu retratos que se podem perder em sucessivas partilhas. Estou a ver e cobiçar, para o Museu, retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres.

- João de Araújo Correia. Publicado no jornal O Arrais, de 4 de Maio de 1979, sob o pseudónimo de Joaquim Pires.

- João de Araújo Correia no blogue "Escritos do Douro".

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão de texto do Dr. José Alfredo Almeida (JASA) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 20 de março de 2012

José Afonso de Oliveira Soares

José Afonso de Oliveira Soares, natural do Peso da Régua, é reconhecido enquanto artista e decano dos jornalistas de província, por João de Araújo Correia. Dirige a sua vida à causa social enquanto bombeiro, vindo a comandar a corporação entre 1893 e 1927.
O Senhor Soares, como era conhecido na terra, à qual se dedicou toda a vida, assistiu às épocas conturbadas da viragem do século XIX para o século XX, mantendo-se alheio à política. Desenvolve a sua actividade profissional, além do voluntariado nos bombeiros, no campo das artes plásticas, da literatura e do jornalismo[i].
Nos bombeiros, Afonso Soares, não faz parte do grupo de sócios fundadores, embora apoie a causa desde início, inscrevendo-se como sócio contribuinte. Em 1885, procura fundar uma biblioteca no quartel, revelando, desde logo, um grande interesse pela literatura. Sabemos, no entanto, segundo José Almeida, que essa biblioteca não “mais seria que uma estante com livros raros”[ii]. Eleito comandante da corporação em 1893, sendo o segundo da história desta associação, ocupa o cargo até 1927, ano em que abandona no comando, pois os estatutos não lhe permitiam continuar devido à idade.
Afonso Soares não se destaca no panorama artístico nacional. Embora João de Araújo Correia o designe como “desenhador, gravador, modelador e pintor”, admite, por outro lado, que Afonso Soares não evolui, em primeiro lugar, devido ao seu “feitio dispersivo” e, também, por causa do meio onde se encontrava, longe de “escolas, de estímulos e entusiasmos”[iii]. Mesmo assim, Afonso Soares mantém o seu dinamismo enquanto pintor, efectuando diversos retratos, que tratamos neste trabalho, além de outras obras, algumas delas descritas por João de Araújo Correia no conto Configurações[iv].
Dedicando-se, paralelamente, à escrita, destaca-se como jornalista na imprensa regional, chegando a ser director do Jornal da Régua (1930). Realiza uma monografia, História da Vila e Conselho de peso da Régua (1936), editado pela Câmara Municipal do Peso da Régua. A referida obra acaba por ser publicada numa segunda edição em 1979, o que demonstra a sua importância para a divulgação da cidade e para estudos locais e regionais, mantendo-se ainda actual. Esta monografia, realizada no início do século XX é a única obra de referência deste género acerca do Peso da Régua[v].
A obra plástica que se conhece consiste sobretudo em retrato desenhado, publicado na monografia que realizou e na imprensa, o retrato a óleo sobre tela, pertencentes à colecção de retratos da SCMPR. Como referimos anteriormente, Afonso Soares demonstra uma capacidade diversificada em vários géneros – desde a literatura às artes plásticas, revelando-se um artista de carácter regional, autodidacta, mantendo-se informado cerca das evoluções técnicas da época, nomeadamente da fotografia. Vai socorrer-se deste processo técnico, como faziam os demais pintores, para executar os retratos que conhecemos. Com formação em desenho técnico[vi], o seu traço revela-se com uma qualidade superior em relação à técnica de óleo sobre tela, que não dominava.
A execução técnica das obras revela a ausência de formação académica em pintura, no entanto, a execução do desenho parece-nos muito bem elaborada. A falta de formação na área da pintura leva-o a cometer alguns erros na modelação cromática quer nos fundos, quer nas carnações, retratando figuras hieráticas e inexpressivas. Sentimos que o autor se preocupa, essencialmente, com a semelhança das feições do retrato com o retratado, decorando a execução do retrato psicológico das personagens.
A prática da pintura permite-lhe aperfeiçoar a técnica de óleo sobre tela, a ponto de ser reconhecido enquanto, pintor e de ter legitimidade para fundar na Régua uma escola/ ateliê, onde ensina gratuitamente[vii]. Deduzimos que este reconhecimento público se reflecte na quantidade de obras que Afonso Soares realiza para a SCMPR, o que nos permite supor que nos inícios do século XX, este se torna o “ pintor oficial” da instituição.
Em comparação com os outros pintores expostos na sala das sessões do hospital, as obras executadas por Afonso Soares, um autodidacta, são plasticamente inferiores. No entanto, cumpriram, na perfeição, o objectivo da SCMPR, o de prolongar no tempo a memória de quem contribuiu para a Misericórdia, funcionando como exemplo e incentivo a novos benfeitores, como já referimos no capítulo anterior.
- João Tomé Duarte* - CITEM 

[i] TÓRO – O concelho do Peso da Régua.
[ii] ALMEIDA, José Alfredo – Recordar o Comandante Afonso Soares.
[iii] CORREIA, João de Araújo – Horas Mortas. Régua: Imprensa do Douro, 1968,p.23.
[iv] Ibidem,pp.23-26.
[v] Bandeira de Tóro (1946) e José Braga – Amaral (2007), realizam estudos monográficos acerca de Peso
 da Régua, no entanto, não conseguem ir além do estudo de Afonso Soares, excepto nos assuntos das
 épocas contemporâneas aos referidos autores.
[vi] Supomos ser esta a formação inicial de Afonso Soares pois José Alfredo Almeida refere que o início da
 sua actividade profissional é nas obras da Linha do Douro entre Marco de Canaveses e Peso da Régua
 como “técnico e desenhador”. Cf. ALMEIDA – Recordar o Comandante Afonso Soares.
[vii] Ibidem.

* Este texto dedicado a José Afonso de Oliveira Soares, antigo Comandante dos Bombeiros da Régua, recordado como pintor, faz parte do relatório de estágio curricular  e profissional no Museu do Douro  de João Tomé Duarte, com o título “Retratos dos benfeitores da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua no Museu do Douro : estudo da coleção” (edição de Autor, Porto, 2011). Agradecemos ao autor a autorização para a sua publicação.

    A fotografia, cedida pelo Senhor Abeilard Vilela para o Arquivo dos Bombeiros da Régua, testemunha o lançamento da primeira pedra para o Monumento Sacadura Cabral, realizado em Agosto de 1925. Podemos ver ao centro, Júlio Vilela a discursar, atrás deste os bombeiros da Régua com o estandarte da sua corporação e à esquerda o Comandante Afonso Soares acompanhado de Camilo Guedes Castelo Branco.

Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 22 de Março de 2012. Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março  de  2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.