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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Refazer Memórias

Na primeira metade do século passado ainda o senhor José Afonso de Oliveira Soares andava por aí, por todos os caminhos e todos os recantos da vila do Peso da Régua. E sempre numa postura de bonomia e de bom trato, de mais a mais afeiçoado não só às motivações jornalísticas, mas também a todos os cenários do desenho e da pintura. Andava por aí com as suas barbas já um tanto abrancaçadas e a sorver as fumaças de um cachimbo de boa paz.

Por esse tempo já eu era um gaiato de meia dúzia de anos, nascido e criado em meio rural, todo envolvido de singelezas e flores campestres.

Por esse tempo eu não conhecia o senhor Afonso Soares, muito menos o seu talento e as suas qualidades artísticas. E mal feito fora que eu, ainda mal saído dos cueiros, andasse já a dar tento das pessoas mais ilustres e mais admiradas. Os meus cuidados, de todo infantis, andavam de volta das pereiras e dos pessegueiros a ver se já tinham frutos amadurados. Também de volta da coelha parida, a saber de quantos laparotos era a ninhada. E a pocilga do reco, sempre na engorda, até que, pelo Dezembro, o Seara vinha matá-lo e sangrá-lo em modos de o aviar em presuntos e salpicões. Nos dias mais soalheiros da Primavera, podia ir aos ninhos ou à cata dos grilos, enquanto a moça Carolina lavava um montão de roupa no tanque grande, com a água toda escumada de sabão.

Isto será um resumo da minha pretérita ruralidade. Mas foi o quadro da Margarida, quadro que Afonso Soares pintou, que veio, só por si, refazer estas memórias.

O quadro da Margarida, pintado em folha-de-flandres, foi-me oferecido pelo meu amigo Mário Joaquim, que, na altura, trabalhava na tipografia da Imprensa do Douro. O quadro é, todo ele, um cenário de tonalidades e sabores campesinos e já há tempos lhe dei realce em letra de forma. Disse, por exemplo, que por um carreiro de terra vem caminhando uma rapariga cheiinha de mocidades. Ela traz na ilharga uma regaçada de erva fresca,  se calhar para mantença da coelheira. Afonso Soares, com um pincel miudinho, deu-lhe a finura dos traços e o que quer que seja de uma luz irradiante. Os olhos da rapariga,  movediços a todo o largo, não deixam de ser envolventes e nas faces afogueadas até parece que vem por aí a cantar umas cantiguinhas, bem avivadas no calor da garganta. Os longes do quadro, esses, são ainda uma harmonia de ruralidades. À cachopa pus eu o nome de Margarida, cachopa que sendo grácil e bem apessoada, também tem o nome de uma singela flor campestre.

Guardo o quadro como uma reserva do passado e com as ressonâncias que sobrevivem num crescendo harmonioso.

Ainda a refazer memórias, bem me lembro de há uns bons trinta anos ter ido, em consulta clínica, a casa do senhor António G. Castelo Branco, ali em Cambres, na Quinta da Bugalheira. Na casa e na estreiteza do quarto, reparei que um belo quadro estava pendurado na parede. Figurava uma cabeça de Cristo, com uma bela expressão de sereno e compadecido misticismo. Da transparência das tintas e suas discretas tonalidades, pareceu-me que se evolava uma luz de recolhida santidade. Pareceu-me, até, que aquele quadro era propício à beleza e ao talentoso amadorismo do pintor Afonso Soares. E, em conversa de bom e salutar convívio, disse-me o senhor Castelo Branco que o quadro lhe fora oferecido pelo autor Afonso Soares, pois tinha sido seu amigo e quase contemporâneo.

Mas, Afonso Soares também se distinguiu como escritor e jornalista e um digno Comandante dos Bombeiros da Régua. E foi com redobrado deleite que li e reli a primeira edição da História da vila e concelho do Peso da Régua, edição que guardo a bom recato na minha biblioteca.

Em conclusão, digamos que Afonso Soares tem um busto em bronze no Jardim do Cruzeiro, a exaltar e a perpetuar o talento e as benquerenças do jornalista, do escritor e do pintor. Ali está como um sinal de luz não esmorecida, sinal a reluzir e a pulsar no nosso entendimento.

O artista, afeito a uma órbita de novidades, parece adorar o seu mundo. A olhar a rua é ainda e sempre um mendicante da arte e da beleza.
- Manuel Braz de Magalhães, Novembro de 2013.

Clique na imagem para ampliar. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Recordar o Comandante Afonso Soares (atualização)

Por: José Alfredo Almeida
José Afonso de Oliveira Soares, filho de João de Oliveira Soares e de Josefa Joaquina Macedo, nasceu na freguesia e concelho do Peso da Régua, em 26 de Novembro de 1852 e faleceu de velhice, conforme consta da certidão de óbito, no estado de viúvo de Teresa Bernardes Pereira, em 21 de Outubro de 1939, na rua Marquês de Pombal, onde sempre viveu, com a idade quase completa de 87 anos.


Segundo o escritor João de Araújo Correia, que lhe traçou um breve retrato na crónica “Configurações”, do seu livro “Horas Mortas” este homem cuja vida atravessou três regimes políticos - a monarquia, a república e a ditadura salazarista - foi um “ notável entre vizinhos – ele, que foi artista”, salientado que a “barba branca e cachimbo simbolizaram a sua distinção, anos e anos, porque o Senhor Soares, à parte os talentos, tinha o dom da bonomia inalterável”.


Da sua actividade profissional, sabe-se que começou por trabalhar com técnico e desenhador nas obras da construção da Linha do Douro do Marco de Canavezes até à estação da Régua. Depois ingressou nos quadros da câmara municipal onde exerceu as funções chefe da secretaria. Já na reforma, foi tesoureiro da filial do Porto do “Banco da Régua”. No regime monárquico ainda desempenhou, por algum tempo, as funções politicas de administrador do concelho do Peso da Régua, mas não foi a politica que o mais seduziu na sua actividade activa e cívica. Para o escritor reguense, que o conheceu e lhe admirou os seus talentos, “tinha merecido o título de decano dos jornalistas de província. Mas não foi, só jornalista. Foi desenhador, gravador, modelador e pintor.”


Na verdade, Afonso Soares destacou-se como jornalista na imprensa local, embora também se tenha dedicado à pintura, que ensinou gratuitamente numa escola e deixou vários quadros pintados, entre os quais uma colecção de retratos que se encontram na posse da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, à escultura e até à fotografia. Também escreveu e muito, poesia, folhetins e contos, publicados nos jornais, e dois livros, um ensaio sobre turismo e uma monografia da historia da Régua.


Como jornalista, foi director do “Jornal da Régua” (1930), onde publicou o folhetim “ Álvaro -Esboços da Vida Real”. Colaborou em vários jornais como “O Dissidente”, “Cinco de Outubro”, “O Marão” (1926), para o qual desenhou o cabeçalho, “O Transmontano” (1922), e a “A Região Duriense” (1930).


Neste último semanário, assinou um interessante artigo intitulado “A Capital do Douro”, a dar eco à questão duriense. Sobre esse assunto, eis o pensamento, ainda pleno de actualidade: “E enquanto o Douro for Douro não podem os seus filhos esperar outra vida que não seja a defender o seu vinho. Um desfalecimento tem consequências funestas. Ninguém deve esquecer que atrás de uma dificuldade, logo outra aparece. E todas elas se vêem reflectir na sua capital do Douro - a vila do Peso da Régua – a que se tem dado e com razão de “coração do Douro”. (…) A Régua foi, e será o centro desta região privilegiada. Já o era quando, pobre e triste povoação sertaneja, fez parte dos concelhos de Santa Marta e Godim e já era centro consagrado da região quando o governo de D. José criou a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro (…). Em anotação ao texto, o director do jornal, Júlio Vasques agradecia-lhe a sua colaboração: “Honra este semanário este nosso amigo e decano dos jornalistas provincianos com vastíssima erudição que lhe provem do aturado estudo que se tem entregado nas investigações históricas do concelho do Peso da Régua. Os nossos leitores terão mais que uma vez de apreciar os seus artigos cheios de ensinamentos preciosos (…) expondo ao pais e ao estrangeiro a riqueza que o esforço do viticultor duriense soube arrancar das montanhas entre as quais corre tumultuoso o nosso rio Douro”.
Afonso Soares deixou publicadas três obras literárias: “Apontamentos para a História da Vila do Peso da Régua” (1907), o ensaio “Régua - Coração do Douro -Centro de Excursões e de Turismo” (1925) e a “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” (1936-38), mandada elaborar pela Comissão Administrativa, em 1936, ao “brilhante jornalista reguense (…) de competência indiscutível desta natureza”. Em 1979, a Câmara Municipal da Régua promoveu uma 2ª edição do livro, que para o presidente Prof. Renato Aguiar significava “dar satisfação aos inúmeros pedidos para nova edição (…) mandou imprimir este brilhante trabalho elaborado por José Afonso de Oliveira Soares.”


A monografia “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” é a sua obra mais conhecida. Começou por ser editada em fascículos, impressos na “Imprensa do Douro”. Num artigo publicado no “Noticias do Douro”, o reguense Dr. Sebastião Pinto de Gouveia, advogado no Porto, confirmava que esta sua obra tinha sido “ elaborada a pedido da vereação municipal instalada em 1936. Concluída em 1938, é um trabalho de investigação extenso, e largo estudo, bem ordenado, profusamente documentado, de estilo sóbrio, preciso e elegante. Essas páginas dão-nos uma síntese perfeita da vasta capacidade, preparação e cultura do seu autor. Mais do que a história de um concelho, esse livro é um acto de dedicação e fé a uma causa nobre que soube servir e amar”.


Conhecendo-o por com ele ter convivido e partilhado a escrita nas páginas dos jornais, o escritor João de Araújo Correia, numa crónica publicada, em 1928, no “Jornal da Régua” fazia um retrato psicológico de Afonso Soares, a elucidar um retrato que o periódico trazia na primeira página, para assinalar o aniversário dos seus 82 anos, que pela sua lúcida e perspicaz análise, se transcreve esta parte:


“O retrato do senhor Soares só ficaria fiel pintado a óleo.


Perde-se um modelo digno de Columbano.


(…)


O retrato é mal tirado. Mas a nossa adoração espiritualiza-o. Aos olhos dos devotos não escorrem sangue as feridas mal pintadas dos crucificados? À nossa vista, o Senhor Soares gravado é o Senhor Soares vivo. O fenómeno do riso no octogenário ensilveirado de barbas é um dos encantos do homem que vem, às tardes sentar-se no banco do Zé Pinto, do esteta que procura uma mercearia para espairecer, como há enxovedos que procuram os museus para ressoar. O riso é o triunfo do homem sobre as trivialidades que o circundam. A beleza e fealdade das coisas são reacções interiores. Por isso vemos o Senhor Soares deliciado quando o Afonso Henriques Morrão pesa bacalhau ou o Zé Pinto se põe a esculpir estátuas impressionistas de oiro, com manteiga. Se o amor preleva o senso estético no descobrir em prosa poesia num pelo defumado do cachimbo do Senhor Afonso Soares, veremos o singular indivíduo que vive oitenta anos à sombra de sertanejo campanário, sem prejuízo da harmonia do seu vestir ou pensar. A gravura que encima, esta coluna e, por consequência uma maravilha. Na sua dureza evocamos a ternura, a serenidade, a inteligência, o talento, as armas com que o Senhor Soares tem defendido a epiderme da sujidade mundana. Imediatamente nos evoca também o caminho que a nossa terra polida lhe tributa. A Régua tem coração. Não é verdade que ela se curva para agasalhar, mais do que para cumprimentar, as mãos esguias do Senhor Soares? Na própria ausência do querido pintor e homem de letras, dizemos todos: o Senhor Soares. Consoante o costume local, há quem diga: Senhor Zezinho Soares.


Há muita beleza nisto…


Não é exacto valerem os homens somente pela obra executada. Os homens valem pelo mundo íntimo que abrigam e vem transparecer à flor do olhar, do gesto, da palavra, que é a maneira de pôr a gravata ou o chapéu. O Senhor Soares vale um tesoiro.Com aquelas barbas chamuscadas de fumo, a moeda romana que lhe orna o peito, vale tanto como se houvesse despedido do lar aos vinte anos, com a sua habilidade e seus pincéis e regressasse pelos oitenta, coroado de espinhos loiros, bem granjeado o nome pomposo de Mestre José Afonso”.


No mesmo sentido, o Dr. Sebastião Pinto de Gouveia no seu citado artigo valorizou as qualidades de artista de Afonso Soares: “a sua extraordinária aptidão, ao maravilhoso talento, tudo era fácil. Quadros como a cópia maravilhosa do “Santo Estevão de Van Dick”, a “Cabeça de Cristo”, de tão quente e dolorosa expressão - “ A volta do Salgueiral” – a “ Cabeça da Virgem” são, entre muitos outros, verdadeiros espelhos da alma de Afonso Soares, da sua extraordinária sensibilidade como do seu génio. Dá-los a um largo exame público e a uma demorada apreciação critica é consagrar o artista extraordinário que os produziu e, sobretudo, conceder a todos, numa visão de conjunto da sua obra, momentos de insubstituível prazer espiritual. Legou-nos também Afonso Soares algumas esculturas: o busto do Chico Doido, entre outras, exprime também a eloquência bastante a extraordinária aptidão de Afonso Soares para esta modalidade de arte. Infelizmente são exíguos os seus trabalhos de escultura e desenho”.


Dando realização aos seus princípios humanísticos, não deixou de participar civicamente no movimento associativo, em especial, o voluntariado nos bombeiros.


Afonso Soares não integrou a lista dos cidadãos fundadores que, reunidos numa “Comissão Instaladora”, elaboraram os estatutos e, em 28 de Novembro 1880, “inauguram” a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários da Régua. Ele, só alguns anos mais tarde, se inscreveu como seu sócio contribuinte.


Como sócio contribuinte tudo fez para que os bombeiros tivessem, logo em 1885, uma pequena biblioteca no seu edifício-sede que ficava, como então se dizia, na “Chafarica”, hoje conhecido pelo Largo dos Aviadores. Muito embora, o escritor João de Araújo Correia, numa das suas crónicas escritas para o livro “Pátria Pequena” tenha afirmado que o anónimo impulsionador que a idealizou nunca foi conhecido, sabe-se agora que essa biblioteca que, não mais seria de uma estante com livros raros, se deveu à sua iniciativa e generosidade. Sendo um homem modesto, na sua monografia da história da Régua não quis revelar como sendo ele o benfeitor, mas num texto não assinado, que se supõe ser da sua autoria, já que o estilo e o conteúdo parecem semelhantes, publicado em 1930, no jornal “A Região Duriense”, está referenciado o seu nome como benemérito.


Em 1893, Afonso Soares foi eleito pelos associados como Comandante dos Bombeiros da Régua, cargo que vai ocupar até 1927, segundo o que está consagrado oficialmente na associação. Mas, essa data pode não coincidir com a realidade. Uma notícia publicada na revista “Ilustração Portuguesa” dá conta que, em 28 de Novembro 1923, nas comemorações do 43º aniversário da Associação, Afonso Soares não seria já o comandante dos bombeiros.
 
Afonso Soares tinha 40 anos quando os sócios reunidos em Assembleia-geral, realizada em 28 de Janeiro de 1893, o elegeram para ocupar vago pela morte súbita do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ocorrida em 10 de Outubro de 1892.


Mas, a substituição do primeiro comandante dos bombeiros da Régua não deve ter sido nada pacífica, já que ficou marcada por um conflito entre os associados. Numa primeira eleições, não foi escolhido Afonso Soares, mas o sócio-activo e fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro, negociante influente que, durante a monarquia, integrou a primeira Comissão Municipal Republicana. Acontece que, de imediato, renunciou ao cargo de comandante para que havia sido eleito, através de uma carta dirigida ao presidente da direcção, “agradecendo aos seus colegas de direcção as provas de estima que lhe tinham dado”. Porque razão tomou esta inesperada decisão? Ao certo não se conhecem os motivos, mas da acta da reunião de direcção, o mais provável é que tenham sido os desentendimentos pessoais ou, eventualmente, divergências de carácter político entre os sócios activos. Abordado assunto em reunião de direcção, o seu presidente sugeriu um “voto de sentimento pela saída deste sócio, atendendo não só à leal camaradagem e aos serviços por ele prestados à Associação” e, com alguma diplomacia, aceitou o pedido de renúncia porque “conhecendo a direcção a atendidas razões de pormenor que motivaram a sua saída, abstinha-se de pedir-lhe, como desejava, de ficar nesta associação…”. Na sua intervenção, o director Joaquim Sousa Pinto, 2ª Comandante, ao pronunciar-se sobre a data da Assembleia – Geral para a eleição do novo comandante, denuncia a exigência de conflito, já que foi claro ao manifestar a opinião “que se demorasse por algum tempo a eleição daquele, visto que estando ainda bastante exaltados os espíritos dos sócios-activos, em virtude do conflito que determinara a saída do primeiro comandante, acrescentando que nenhum prejuízo adviria para a Companhia por esse facto”. O presidente da direcção, José Joaquim Pereira Soares dos Santos, mostrava-se incomodado com a situação, pedindo que “se registasse que alguns sócios contribuintes principiavam de ver com desagrado uns pequenos conflitos, sem importância, é certo, mas que pela sua qualidade mal abonavam o bom nome da Associação”. Entretanto, são eleitos novos directores para os órgãos sociais da Associação. O novo presidente da direcção Alberto Rolla, no dia 3 de Fevereiro de 1893, convoca Afonso Soares para prestar o juramento como Comandante dos Bombeiros. Depois de empossado, ele vai exercer o cargo durante um largo período de anos, conturbados para o país, a região duriense e o futuro da Associação. Não se sabe, com certeza e rigor, se abdicou de ser comandante em 1927 ou já, em 1923, para Camilo Guedes Castelo Branco, mas pensa-se que tenha sido antes dessa última data. A sua idade próxima dos 75 anos, e as limitações de saúde, já não lhe permitiam dirigir as missões de socorro.


No seu mandato, Afonso Soares manteve, apesar das limitações do quartel e da falta de material de combate de incêndios, um corpo de bombeiros de bombeiros operacional, composto por briosos cidadãos. Mas, não se pense que foi fácil a sua missão, já que enfrentou dificuldades económicas. Em 1902, a câmara municipal suprimiu a atribuição do subsídio para os bombeiros. Como se entende, esta atitude foi mal recebida e provocou uma contestação, que motivou a realização de uma Assembleia-Geral. Sem financiamento e sem receitas, a Associação atravessa uma crise. Nas suas memórias, o chefe António Guedes, então jovem bombeiro, recordou como os bombeiros a ultrapassaram. Confirma que, por volta de 1910-20, a Associação estava sem receitas para suportar as despesas do quartel. Alguns bombeiros, perante as dívidas que aumentavam, chegaram a propor que as chaves do quartel e o pouco material fossem entregues ao presidente do município. Mas, os velhos e apaixonados bombeiros entenderam não cruzar os braços e não permitiram que a associação se extinguisse. Começaram por se cotizarem com uma quantia dos seus salários, mas mesmo assim não obtinham o suficiente para as principais despesas. Surgiu, depois, a ideia de alguns bombeiros para como actores amadores realizar uns espectáculos de teatro. As peças atraíram a população que pagou o bilhete para assistir. Conseguiram assim, o dinheiro que precisavam para saldarem as dívidas acumuladas, já que câmara municipal, até 1930, atribuía um subsídio demasiado pequeno.


O Comandante Afonso Soares teve a determinação e o mérito de manter vivo o corpo de bombeiro que fazia falta à população reguense. Não descansou para arranjar as melhores condições de trabalho. Pediu à câmara municipal uma parcela de terreno para a construção de um quartel de raiz, mas ninguém o ajudou a realizar o seu sonho. Ele mesmo deu o seu contributo ao fazer o esboço de um projecto para construção do novo edifício. O desenho, felizmente, não se perdeu e está guardado no Museu dos Bombeiros. Nele pode ver-se como Afonso Soares evidencia o seu génio artístico, o rigor técnico e os traços originais de uma ornamentação primorosa.


A Régua, na década de 50, com alguma polémica pelo meio e até de vozes contrárias e discordantes, reconheceu os méritos pessoais, humanísticos, literários e artísticos de Afonso Soares. Nomeada uma comissão de figuras reconhecidas na sociedade reguenses que, com apoio da câmara, mandava erigir um busto, em sua memória, no jardim do Largo do Cruzeiro, próximo da casa onde morou. Esteve presente, para descerrar a placa, o seu bisneto José Afonso Suart-Torrie, ainda criança, e actualmente um negociante de vinhos, residente em França, onde em Rouen é Cônsul Honorário de Portugal.
No seu pedestal está inscrita em sua memória esta mensagem dirigida a todos nós e, em especial, às gerações mais novas: “Talento e bondade/Flor de simpatia/Que nos merecia/ Esta saudade”. Pode parecer pouco, mas esta estátua tem um significado importante: o justo reconhecimento de homem, um cidadão reguense generoso e talentoso que viveu de forma intensa e apaixonada a sua terra. Essa paixão à Régua, confessou-a num dos seus livros: “Mas porque amo a minha terra e me penaliza que as sua belezas continuem tão ignoradas, sem cantar as espalharei por toda a parte, ainda mesmo sem engenho e arte”. Engano seu para nos convencer da sua modéstia: engenho e arte nunca faltaram ao Comandante Afonso Soares!
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida. Atualizado em Março de 2012.

sábado, 15 de maio de 2010

Largo do Cruzeiro

Se não são inéditas, pelo menos são desconhecidas para muitos estas fotografias de António Teixeira, que assinalam o 38º aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, comemorado em 28 de Novembro de 1918, com a realização de um exercício de fogo e salvamento, no jardim do Largo do Cruzeiro, publicadas pela prestigiada revista “Ilustração Portuguesa”.

São fotografias raras que completam uma informação escassa e sem documentos nos seus arquivos, mas que despertam a atenção para um período interessante da história dos bombeiros da Régua.

Sabe-se, contudo, que para os bombeiros da Régua, os primeiros anos da sua afirmação não foram fáceis. Conhecem-se as dificuldades para manterem em actividade um corpo de bombeiros, não pela falta de voluntários, mas sobretudo devido à falta de apoios dos poderes públicos. O dinheiro era escasso, não chegava para pagar as rendas do quartel, nem tão pouco para a reparação das bombas de incêndio. Os bombeiros tinham de comprar as suas fardas e acessórios de trabalho e, quando algum tinha de abandonar, a direcção da associação adquiria esses equipamentos por um valor simbólico. Mas, apesar das constantes adversidades que enfrentaram, esses homens persistiram em levar em frente o sonho do Comandante Manuel Maria de Magalhães e o decorrer do tempo, trouxe-lhes a coroação de todo o esforço e dedicação em vitórias e glórias. Esses generosos homens nunca deixaram de mostrar a sua determinação e de afirmar a importância de uma organização de socorro que a população reguense admirava e a que dava o seu prestimoso auxílio.

Em 28 de Novembro de 1918, a população reguense mostrava que estava ao lado dos seus bombeiros voluntários, em quem acreditavam e com quem sabia poder contar nos momentos de tragédia. Não surpreenderá ninguém que, nessa altura, estivesse uma grande multidão no Jardim do Largo do Cruzeiro, a assistir ao exercícios dos bombeiros, que se encontravam a simular o combate a um incêndio urbano, com o material que possuíam, as escadas de lanços e de ganchos e, para o tornar mais real, levaram o carro de tracção humana, carregado com as mangueiras.
A escolha de um edifício com grande volumetria implicava maior abundância de pessoal e de material, para poder efectuar uma demonstração da capacidade operacional dos bombeiros de Peso da Régua. As escadas proporcionavam exercícios ritmados, orientados por comandos de voz ou por silvos de apito. Era momento privilegiado para evidenciar a destreza e a disciplina de execução, dando a conhecer à população a preparação dos seus homens e despertando a confiança que neles podia depositar. Aliás, era esse o objectivo pensado pelo comandante Afonso Soares.

Os bombeiros da Régua começavam a ter fama de corajosos. Desde a fundação da associação que homens competentes, inteligentes e dedicados à causa humanitária ambicionavam torná-la uma organização prestigiada, capaz de cumprir os seus objectivos de socorro e protecção, propostos nos primeiros estatutos.

Daí que a revista “Ilustração Portuguesa” tenha feito a notícia do evento em tom elogioso para os bombeiros voluntários da Régua: “É uma das melhores organizações de província a dos bombeiros voluntários da Régua, a cuja corporação pertencem indivíduos de todas as classes que só têm uma aspiração – arriscarem a sua vida para salvarem a alheia.

E disto tem dado inúmeras provas em muitos sinistros que têm acontecido, merecendo louvores de toda a população da vila, que lhes tributa admiração.”

Estas imagens são ainda um documento valioso que nos mostra o ambiente circundante de um lugar público da cidade, as memórias do Jardim do Largo Cruzeiro que, apesar das alterações profundas que fizeram no seu desenho, permanece como uma referência histórica e sentimental na paisagem urbana.

Elas testemunham também o carácter público do lugar de lazer, passeio e convívio de crianças e jovens, que deveria encher de gente nos dias de celebração religiosa, na Capela do Senhor do Cruzeiro, situada nas suas imediações.

O jardim do Largo Cruzeiro não passava de um modesto espaço, despido de adornos, povoado de pequenas árvores e servido de iluminação eléctrica. No conjunto, não aparece a Capela do Senhor do Cruzeiro, mas sobressai um edifício grande, austero, de fachada branca, varanda e janelas amplas. Durante muitos anos, funcionou nesse prédio um estabelecimento escolar para rapazes, o Colégio de Santa Teresinha. Até há pouco tempo, esteve aberto um moderno salão de chá, em estilo sóbrio, que conquistou fama e clientela nas últimas gerações de reguenses, por ser um espaço que proporcionava inesperados encontros, amores eternos e outros acontecimentos felizes e inesquecíveis.

Mas, o curioso da história é que o edifício que avistamos ao fundo do Jardim do Largo do Cruzeiro, que os bombeiros, em 1918, escolheram para fazer um exercício de demonstração das suas perícias e capacidades de combate ao fogo, acabou por ser destruído, em 2008, por um violento incêndio que deflagrou pela madrugada e os bombeiros não conseguiram dominar, ficando reduzido a cinzas e ruínas.
Em crónica intitulada “A flor (do Adro) desaparecida”, Manuel Igreja expressa as emoções que lhe causou a visão do monte de ruínas lavradas pelas labaredas. É ocasião de relermos as palavras conjugadas a quente:

“Numa destas últimas madrugadas de antes do Natal, a Régua foi sobressaltada com mais um incêndio no seu centro histórico. A sirene dos seus mais que centenários bombeiros voluntários tocou, porque o edifício do antigo colégio de Santa Teresinha tinha pegado fogo. Bem no âmago do seu centro mais antigo em termos de Régua propriamente dita, que Peso é lá encima, no prédio onde estavam instaladas as sedes partidárias e mais um dos mais emblemáticos e mais belos cafés da cidade, a celebre “Flor do Adro”, o lume fazia as suas, assumindo a natureza que lhe é própria, espalhando a destruição que lhe compete em casos semelhantes.

Quando me deparei, de manhã cedo, com o cenário dantesco e desolador, tive pena, senti consternação, e senti um nó na garganta. No tempo em que cheguei à Régua em termos definitivos, o café que está agora destruído estava a dar os seus primeiros passos, depois de instalado e decorado pelo senhor Germano, reguense já desaparecido, e um verdadeiro artista na arte da decoração. Aquele estabelecimento comercial era, vinte e tal anos depois de ter sido concebido, uma verdadeira ode ao bom gosto. O proprietário que poucos anos depois se lhe seguiu, teve igualmente o bom gosto e o bom senso de manter a decoração, e isso é igualmente de louvar. Fosse-se cliente ou frequentador do estabelecimento, o papel que este café teve na cidade é inegável, pois sendo um local público, à semelhança de qualquer outro, era, a seu modo, uma sala de visitas da Régua.

(…)

Mais parece que deu o tranglomango à Régua no que concerne às suas principais ruas, onde não faltam prédios em ruínas, e onde os dedos de uma mão não chegam, para já, para se contar aqueles que o fogo devorou (…). Começa a parecer-se um apetecível pasto para as chamas a Régua que os antigos edificaram.

(…)

Não podemos deixar de sentir que a Régua está a perder lentamente as flores que compõem o ramo da sua história. Desapareceu a “Flor do Adro”, mas essa foi a última. Evitar que a outras flores em forma de edificações aconteça o mesmo, é seguramente impossível. Esperemos contudo que das cinzas, como da Fénix mitológica, renasçam novas e vigorosas flores (…)”

A Régua, no início deste novo século, é uma cidade jovem para se descobrir nos encantos da paisagem dos socalcos das vinhas que a envolvem. Para a conhecer melhor é preciso caminhar pelas ruas principais até à zona alta, olhar as águas serenas do rio navegado por barcos turísticos e os imaginários rabelos, sentir os cheiros da flor das laranjeiras, da esteva e do rosmaninho que, nas vindimas, se misturam com o do mosto dos vinhos, ficar, enfim, até ao entardecer, no café do novo cais fluvial, nos dias cheios de luz e de silêncios que caem sobre o Vale Abraão. Em pensamento, adivinhar os contrastes entre o tradicional e o moderno, o mutável e o intemporal.

A cidade, com origens pombalinas, nasceu e cresceu com a fama e os negócios dos seus vinhos e o trabalho e o amor dos vareiros de Ovar e dos galegos, antepassados povoadores, que lhe deram identidade própria, como ainda nos lembra uma velha cantiga dos tempos dos bisavós: “A Régua era bonita/Se não tivesse dois erros/Passeada de vareiros/Ladrilhada de galegos”. Sem razão, estes erros são antes virtudes dos povos a que os reguenses devem estar agradecidos.
Acredito que não falta tempo para ainda passar pelo jardim do Largo do Cruzeiro. Com calma e tranquilidade, goze a presença dos testemunhos vivos do velho casario caiado de branco, com os beirais a servirem para as andorinhas construírem os ninhos, que faz daquele jardim um universo habitável e poético e, perto da estátua erguida em homenagem ao comandante Afonso Soares, insigne reguense que escreveu a única história da cidade, ouça contar mais evocações do passado dos gloriosos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Maio de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Recordar o Comandante Afonso Soares

Por: José Alfredo Almeida
José Afonso de Oliveira Soares, filho de João de Oliveira Soares e de Josefa Joaquina Macedo, nasceu na freguesia e concelho do Peso da Régua, em 26 de Novembro de 1852 e faleceu de velhice, conforme consta da certidão de óbito, no estado de viúvo de Teresa Bernardes Pereira, em 21 de Outubro de 1939, na rua Marquês de Pombal, onde sempre viveu, com a idade quase completa de 87 anos.

Segundo o escritor João de Araújo Correia, que lhe traçou um breve retrato na crónica “Configurações”, do seu livro “Horas Mortas” este homem cuja vida atravessou três regimes políticos - a monarquia, a república e a ditadura salazarista - foi um “ notável entre vizinhos – ele, que foi artista”, salientado que a “barba branca e cachimbo simbolizaram a sua distinção, anos e anos, porque o Senhor Soares, à parte os talentos, tinha o dom da bonomia inalterável”.

Da sua actividade profissional, sabe-se que começou por trabalhar com técnico e desenhador nas obras da construção da Linha do Douro do Marco de Canavezes até à estação da Régua. Depois ingressou nos quadros da câmara municipal onde exerceu as funções chefe da secretaria. Já na reforma, foi tesoureiro da filial do Porto do “Banco da Régua”. No regime monárquico ainda desempenhou, por algum tempo, as funções politicas de administrador do concelho do Peso da Régua, mas não foi a politica que o mais seduziu na sua actividade activa e cívica. Para o escritor reguense, que o conheceu e lhe admirou os seus talentos, “tinha merecido o título de decano dos jornalistas de província. Mas não foi, só jornalista. Foi desenhador, gravador, modelador e pintor.”

Na verdade, Afonso Soares destacou-se como jornalista na imprensa local, embora também se tenha dedicado à pintura, que ensinou gratuitamente numa escola e deixou vários quadros pintados, entre os quais uma colecção de retratos que se encontram na posse da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, à escultura e até à fotografia. Também escreveu e muito, poesia, folhetins e contos, publicados nos jornais, e dois livros, um ensaio sobre turismo e uma monografia da historia da Régua.

Como jornalista, foi director do “Jornal da Régua” (1930), onde publicou o folhetim “ Álvaro -Esboços da Vida Real”. Colaborou em vários jornais como “O Dissidente”, “Cinco de Outubro”, “O Marão” (1926), para o qual desenhou o cabeçalho, “O Transmontano” (1922), e a “A Região Duriense” (1930).

Neste último semanário, assinou um interessante artigo intitulado “A Capital do Douro”, a dar eco à questão duriense. Sobre esse assunto, eis o pensamento, ainda pleno de actualidade: “E enquanto o Douro for Douro não podem os seus filhos esperar outra vida que não seja a defender o seu vinho. Um desfalecimento tem consequências funestas. Ninguém deve esquecer que atrás de uma dificuldade, logo outra aparece. E todas elas se vêem reflectir na sua capital do Douro - a vila do Peso da Régua – a que se tem dado e com razão de “coração do Douro”. (…) A Régua foi, e será o centro desta região privilegiada. Já o era quando, pobre e triste povoação sertaneja, fez parte dos concelhos de Santa Marta e Godim e já era centro consagrado da região quando o governo de D. José criou a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro (…). Em anotação ao texto, o director do jornal, Júlio Vasques agradecia-lhe a sua colaboração: “Honra este semanário este nosso amigo e decano dos jornalistas provincianos com vastíssima erudição que lhe provem do aturado estudo que se tem entregado nas investigações históricas do concelho do Peso da Régua. Os nossos leitores terão mais que uma vez de apreciar os seus artigos cheios de ensinamentos preciosos (…) expondo ao pais e ao estrangeiro a riqueza que o esforço do viticultor duriense soube arrancar das montanhas entre as quais corre tumultuoso o nosso rio Douro”.
Afonso Soares deixou publicadas três obras literárias: “Apontamentos para a História da Vila do Peso da Régua” (1907), o ensaio “Régua - Coração do Douro -Centro de Excursões e de Turismo” (1925) e a “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” (1936-38), mandada elaborar pela Comissão Administrativa, em 1936, ao “brilhante jornalista reguense (…) de competência indiscutível desta natureza”. Em 1979, a Câmara Municipal da Régua promoveu uma 2ª edição do livro, que para o presidente Prof. Renato Aguiar significava “dar satisfação aos inúmeros pedidos para nova edição (…) mandou imprimir este brilhante trabalho elaborado por José Afonso de Oliveira Soares.”
 
A monografia “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” é a sua obra mais conhecida. Começou por ser editada em fascículos, impressos na “Imprensa do Douro”. Num artigo publicado no “Noticias do Douro”, o reguense Dr. Sebastião Pinto de Gouveia, advogado no Porto, confirmava que esta sua obra tinha sido “ elaborada a pedido da vereação municipal instalada em 1936. Concluída em 1938, é um trabalho de investigação extenso, e largo estudo, bem ordenado, profusamente documentado, de estilo sóbrio, preciso e elegante. Essas páginas dão-nos uma síntese perfeita da vasta capacidade, preparação e cultura do seu autor. Mais do que a história de um concelho, esse livro é um acto de dedicação e fé a uma causa nobre que soube servir e amar”.
 
Conhecendo-o por com ele ter convivido e partilhado a escrita nas páginas dos jornais, o escritor João de Araújo Correia, numa crónica publicada, em 1928, no “Jornal da Régua” fazia um retrato psicológico de Afonso Soares, a elucidar um retrato que o periódico trazia na primeira página, para assinalar o aniversário dos seus 82 anos, que pela sua lúcida e perspicaz análise, se transcreve esta parte:
 
“O retrato do senhor Soares só ficaria fiel pintado a óleo.
 
Perde-se um modelo digno de Columbano.
 
(…)
 
O retrato é mal tirado. Mas a nossa adoração espiritualiza-o. Aos olhos dos devotos não escorrem sangue as feridas mal pintadas dos crucificados? À nossa vista, o Senhor Soares gravado é o Senhor Soares vivo. O fenómeno do riso no octogenário ensilveirado de barbas é um dos encantos do homem que vem, às tardes sentar-se no banco do Zé Pinto, do esteta que procura uma mercearia para espairecer, como há enxovedos que procuram os museus para ressoar. O riso é o triunfo do homem sobre as trivialidades que o circundam. A beleza e fealdade das coisas são reacções interiores. Por isso vemos o Senhor Soares deliciado quando o Afonso Henriques Morrão pesa bacalhau ou o Zé Pinto se põe a esculpir estátuas impressionistas de oiro, com manteiga. Se o amor preleva o senso estético no descobrir em prosa poesia num pelo defumado do cachimbo do Senhor Afonso Soares, veremos o singular indivíduo que vive oitenta anos à sombra de sertanejo campanário, sem prejuízo da harmonia do seu vestir ou pensar. A gravura que encima, esta coluna e, por consequência uma maravilha. Na sua dureza evocamos a ternura, a serenidade, a inteligência, o talento, as armas com que o Senhor Soares tem defendido a epiderme da sujidade mundana. Imediatamente nos evoca também o caminho que a nossa terra polida lhe tributa. A Régua tem coração. Não é verdade que ela se curva para agasalhar, mais do que para cumprimentar, as mãos esguias do Senhor Soares? Na própria ausência do querido pintor e homem de letras, dizemos todos: o Senhor Soares. Consoante o costume local, há quem diga: Senhor Zezinho Soares.
 
Há muita beleza nisto…
 
Não é exacto valerem os homens somente pela obra executada. Os homens valem pelo mundo íntimo que abrigam e vem transparecer à flor do olhar, do gesto, da palavra, que é a maneira de pôr a gravata ou o chapéu. O Senhor Soares vale um tesoiro.Com aquelas barbas chamuscadas de fumo, a moeda romana que lhe orna o peito, vale tanto como se houvesse despedido do lar aos vinte anos, com a sua habilidade e seus pincéis e regressasse pelos oitenta, coroado de espinhos loiros, bem granjeado o nome pomposo de Mestre José Afonso”.
 
No mesmo sentido, o Dr. Sebastião Pinto de Gouveia no seu citado artigo valorizou as qualidades de artista de Afonso Soares: “a sua extraordinária aptidão, ao maravilhoso talento, tudo era fácil. Quadros como a cópia maravilhosa do “Santo Estevão de Van Dick”, a “Cabeça de Cristo”, de tão quente e dolorosa expressão - “ A volta do Salgueiral” – a “ Cabeça da Virgem” são, entre muitos outros, verdadeiros espelhos da alma de Afonso Soares, da sua extraordinária sensibilidade como do seu génio. Dá-los a um largo exame público e a uma demorada apreciação critica é consagrar o artista extraordinário que os produziu e, sobretudo, conceder a todos, numa visão de conjunto da sua obra, momentos de insubstituível prazer espiritual. Legou-nos também Afonso Soares algumas esculturas: o busto do Chico Doido, entre outras, exprime também a eloquência bastante a extraordinária aptidão de Afonso Soares para esta modalidade de arte. Infelizmente são exíguos os seus trabalhos de escultura e desenho”.
 
Dando realização aos seus princípios humanísticos, não deixou de participar civicamente no movimento associativo, em especial, o voluntariado nos bombeiros.
 
Afonso Soares não integrou a lista dos cidadãos fundadores que, reunidos numa “Comissão Instaladora”, elaboraram os estatutos e, em 28 de Novembro 1880, “inauguram” a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários da Régua. Ele, só alguns anos mais tarde, se inscreveu como seu sócio contribuinte.
 
Como sócio contribuinte tudo fez para que os bombeiros tivessem, logo em 1885, uma pequena biblioteca no seu edifício-sede que ficava, como então se dizia, na “Chafarica”, hoje conhecido pelo Largo dos Aviadores. Muito embora, o escritor João de Araújo Correia, numa das suas crónicas escritas para o livro “Pátria Pequena” tenha afirmado que o anónimo impulsionador que a idealizou nunca foi conhecido, sabe-se agora que essa biblioteca que, não mais seria de uma estante com livros raros, se deveu à sua iniciativa e generosidade. Sendo um homem modesto, na sua monografia da história da Régua não quis revelar como sendo ele o benfeitor, mas num texto não assinado, que se supõe ser da sua autoria, já que o estilo e o conteúdo parecem semelhantes, publicado em 1930, no jornal “A Região Duriense”, está referenciado o seu nome como benemérito.
 
Em 1893, Afonso Soares foi eleito pelos associados como Comandante dos Bombeiros da Régua, cargo que vai ocupar até 1927, segundo o que está consagrado oficialmente na associação. Mas, essa data pode não coincidir com a realidade. Uma notícia publicada na revista “Ilustração Portuguesa” dá conta que, em 28 de Novembro 1923, nas comemorações do 43º aniversário da Associação, Afonso Soares não seria já o comandante dos bombeiros.
 
Afonso Soares tinha 40 anos quando os sócios reunidos em Assembleia-geral, realizada em 28 de Janeiro de 1893, o elegeram para ocupar vago pela morte súbita do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ocorrida em 10 de Outubro de 1892.
 
Mas, a substituição do primeiro comandante dos bombeiros da Régua não deve ter sido nada pacífica, já que ficou marcada por um conflito entre os associados. Numa primeira eleições, não foi escolhido Afonso Soares, mas o sócio-activo e fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro, negociante influente que, durante a monarquia, integrou a primeira Comissão Municipal Republicana. Acontece que, de imediato, renunciou ao cargo de comandante para que havia sido eleito, através de uma carta dirigida ao presidente da direcção, “agradecendo aos seus colegas de direcção as provas de estima que lhe tinham dado”. Porque razão tomou esta inesperada decisão? Ao certo não se conhecem os motivos, mas da acta da reunião de direcção, o mais provável é que tenham sido os desentendimentos pessoais ou, eventualmente, divergências de carácter político entre os sócios activos. Abordado assunto em reunião de direcção, o seu presidente sugeriu um “voto de sentimento pela saída deste sócio, atendendo não só à leal camaradagem e aos serviços por ele prestados à Associação” e, com alguma diplomacia, aceitou o pedido de renúncia porque “conhecendo a direcção a atendidas razões de pormenor que motivaram a sua saída, abstinha-se de pedir-lhe, como desejava, de ficar nesta associação…”. Na sua intervenção, o director Joaquim Sousa Pinto, 2ª Comandante, ao pronunciar-se sobre a data da Assembleia – Geral para a eleição do novo comandante, denuncia a exigência de conflito, já que foi claro ao manifestar a opinião “que se demorasse por algum tempo a eleição daquele, visto que estando ainda bastante exaltados os espíritos dos sócios-activos, em virtude do conflito que determinara a saída do primeiro comandante, acrescentando que nenhum prejuízo adviria para a Companhia por esse facto”. O presidente da direcção, José Joaquim Pereira Soares dos Santos, mostrava-se incomodado com a situação, pedindo que “se registasse que alguns sócios contribuintes principiavam de ver com desagrado uns pequenos conflitos, sem importância, é certo, mas que pela sua qualidade mal abonavam o bom nome da Associação”. Entretanto, são eleitos novos directores para os órgãos sociais da Associação. O novo presidente da direcção Alberto Rolla, no dia 3 de Fevereiro de 1893, convoca Afonso Soares para prestar o juramento como Comandante dos Bombeiros. Depois de empossado, ele vai exercer o cargo durante um largo período de anos, conturbados para o país, a região duriense e o futuro da Associação. Não se sabe, com certeza e rigor, se abdicou de ser comandante em 1927 ou já, em 1923, para Camilo Guedes Castelo Branco, mas pensa-se que tenha sido antes dessa última data. A sua idade próxima dos 75 anos, e as limitações de saúde, já não lhe permitiam dirigir as missões de socorro.
 
No seu mandato, Afonso Soares manteve, apesar das limitações do quartel e da falta de material de combate de incêndios, um corpo de bombeiros de bombeiros operacional, composto por briosos cidadãos. Mas, não se pense que foi fácil a sua missão, já que enfrentou dificuldades económicas. Em 1902, a câmara municipal suprimiu a atribuição do subsídio para os bombeiros. Como se entende, esta atitude foi mal recebida e provocou uma contestação, que motivou a realização de uma Assembleia-Geral. Sem financiamento e sem receitas, a Associação atravessa uma crise. Nas suas memórias, o chefe António Guedes, então jovem bombeiro, recordou como os bombeiros a ultrapassaram. Confirma que, por volta de 1910-20, a Associação estava sem receitas para suportar as despesas do quartel. Alguns bombeiros, perante as dívidas que aumentavam, chegaram a propor que as chaves do quartel e o pouco material fossem entregues ao presidente do município. Mas, os velhos e apaixonados bombeiros entenderam não cruzar os braços e não permitiram que a associação se extinguisse. Começaram por se cotizarem com uma quantia dos seus salários, mas mesmo assim não obtinham o suficiente para as principais despesas. Surgiu, depois, a ideia de alguns bombeiros para como actores amadores realizar uns espectáculos de teatro. As peças atraíram a população que pagou o bilhete para assistir. Conseguiram assim, o dinheiro que precisavam para saldarem as dívidas acumuladas, já que câmara municipal, até 1930, atribuía um subsídio demasiado pequeno.
 
O Comandante Afonso Soares teve a determinação e o mérito de manter vivo o corpo de bombeiro que fazia falta à população reguense. Não descansou para arranjar as melhores condições de trabalho. Pediu à câmara municipal uma parcela de terreno para a construção de um quartel de raiz, mas ninguém o ajudou a realizar o seu sonho. Ele mesmo deu o seu contributo ao fazer o esboço de um projecto para construção do novo edifício. O desenho, felizmente, não se perdeu e está guardado no Museu dos Bombeiros. Nele pode ver-se como Afonso Soares evidencia o seu génio artístico, o rigor técnico e os traços originais de uma ornamentação primorosa.
 
A Régua, na década de 50, com alguma polémica pelo meio e até de vozes contrárias e discordantes, reconheceu os méritos pessoais, humanísticos, literários e artísticos de Afonso Soares. Nomeada uma comissão de figuras reconhecidas na sociedade reguenses que, com apoio da câmara, mandava erigir um busto, em sua memória, no jardim do Largo do Cruzeiro, próximo da casa onde morou. Esteve presente, para descerrar a placa, o seu bisneto José Afonso Suart-Torrie, ainda criança, e actualmente um negociante de vinhos, residente em França, onde em Rouen é Cônsul Honorário de Portugal.
No seu pedestal está inscrita em sua memória esta mensagem dirigida a todos nós e, em especial, às gerações mais novas: “Talento e bondade/Flor de simpatia/Que nos merecia/ Esta saudade”. Pode parecer pouco, mas esta estátua tem um significado importante: o justo reconhecimento de homem, um cidadão reguense generoso e talentoso que viveu de forma intensa e apaixonada a sua terra. Essa paixão à Régua, confessou-a num dos seus livros: “Mas porque amo a minha terra e me penaliza que as sua belezas continuem tão ignoradas, sem cantar as espalharei por toda a parte, ainda mesmo sem engenho e arte”. Engano seu para nos convencer da sua modéstia: engenho e arte nunca faltaram ao Comandante Afonso Soares!
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida. Atualizado em Julho de 2010.