António Guedes
Quem era, na Régua, que não conhecia o João dos Óculos? João Figueiredo era o seu verdadeiro nome, sendo natural de Vila Pouca de Aguiar. Há meia dúzia de anos atrás alistara-se na Corporação dos Bombeiros Voluntários, da qual era um valioso elemento, de comportamento exemplar.
Era um belo e leal camarada. Tipógrafo de profissão, tinha a particularidade de ser um exímio tocador de gaita de beiços. Tinha arte e jeito para aquilo. Várias vezes tocara para a Emissora Nacional, que transmitia depois, para todo o país, as inúmeras e bem executadas músicas do seu sortido e selecto reportório.
Era míope e, para corrigir essa deficiência, usava uns óculos demasiadamente grandes para a sua estatura, pelo que dava a impressão de que trazia uma bicicleta escarranchada quase na ponta do nariz.
Gostava de passear, segundo me disse. Mas tinha a infelicidade de a escala nunca o contemplar quando se tratava da saída de qualquer piquete de representação para qualquer terra do país. E tão desiludido ficava quando isso acontecia que um dia, no quartel, me falou sobre o assunto.
- Não te aflijas, amigo João. Na primeira ocasião em que eu seja escalado, levo-te comigo, - respondi-lhe.
Até a alma se lhe riu, ao ouvir estas palavras, ficando demoradamente, como era seu gesto habitual, a esfregar as mãos de contentamento.
E um dia, de facto, caiu-lhe a sopa no mel. Fui escalado para, com um piquete, representar a Corporação numa festa qualquer que se realizava em Lisboa.
Um dia antes da partida fui até ao quartel, verificar se tudo estava em ordem e procurar o João, para lhe dar a boa nova.
Lá o encontrei, indolentemente encostado a uma viatura. Dirigindo-me a ele, informei-o de que, desta vez, a «cautela» lhe tinha saído premiada, pois que o levaria comigo, como lhe prometera.
Estou a ver a sua cara, radiante de felicidade. E, num abrir e fechar d’olhos, pôs o capacete e os botões da sua farda a brilhar como diamantes.
Na madrugada do dia imediato, partimos para a capital, levando o João, pequeno e franzino, entre mim e o motorista, visto que a lotação da viatura estava completa.
A viagem correu bem. E em Lisboa, após a parada, destroçámos e, com o Gastão e o Cristiano, fomos a Cascais e, depois, a Cacilhas, onde, como «aperitivo», comemos umas frescas e deliciosas sardinhas assadas. Foi um verdadeiro «magusto».
O João dos Óculos demonstrava a sua satisfação e alegria num constante sorriso, e não se separou de mim um instante, na eventualidade de vir a precisar dos seus serviços.
Não permiti que ele despendesse um centavo, contrariando a sua vontade.
E foi este, afinal, o único passeio que deu, pois que, passados tempos, a importuna sirene convocava-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes desta vila, e ele, - tal como no passeio que deu a Lisboa - para lá seguiu precisamente entre mim e o motorista.
Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam totalmente o prédio sinistrado.
Se, como sucedeu, em vez de tentarem apagar o fogo, nos tivessem chamado imediatamente e, entretanto, tivessem desligado o quadro da electricidade, talvez se tivesse feito qualquer coisa proveitosa e não tivéssemos de lamentar, agora, a perda de uma vida preciosa. Mas não sucedeu assim, infelizmente.
À uma hora e meia da manhã, um bombeiro pediu para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.
Mandei chamar outro bombeiro para isso, mas o João, que estava ali próximo, ofereceu-se para substituir o camarada.
O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este de pouca espessura, aplicado sobre o soalho, o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.
O João tomou conta da agulheta, estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.
Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinza e faúlhas, que quase nos cegavam.
A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e, então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra, entalado por escombros, em cima de um tonel. Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos, sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos deixaram de se ouvir.
Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.
Quando vi baldados todos os nossos esforços para salvarmos o infeliz João, corri à procura do Comandante, para lhe dar parte da terrível tragédia. Mas já alguém se tinha antecipado a fazê-lo, pois que fui encontrá-lo completamente aniquilado. Abraçando-se a mim, chorou e soluçou como uma criança.
E essas lágrimas, sinceras e sentidas que vi deslizar, em catadupas, pelo enrugado rosto do meu bom e velho Comandante, contagiaram-me de tal forma que os soluços me embargaram a voz e as lágrimas me correram também pelo rosto, sujo pela cinza e pelo fumo daquele vulcão infernal, que tirara a vida àquele nosso bom e querido camarada.
Lágrimas destas não envergonham um homem.
Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a fim de evitar que ficasse carbonizado, o que se conseguiu.
E só às seis da manhã, - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.
Pobre e infeliz João! Como eu senti a morte daquele pequeno e grande amigo!
Pequeno e franzino como era, tinha no entanto uma alma de gigante.
Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.
O seu amolgado capacete ficou religiosamente guardado, no quartel, para figurar no nosso sonhado museu.
Era um belo e leal camarada. Tipógrafo de profissão, tinha a particularidade de ser um exímio tocador de gaita de beiços. Tinha arte e jeito para aquilo. Várias vezes tocara para a Emissora Nacional, que transmitia depois, para todo o país, as inúmeras e bem executadas músicas do seu sortido e selecto reportório.
Era míope e, para corrigir essa deficiência, usava uns óculos demasiadamente grandes para a sua estatura, pelo que dava a impressão de que trazia uma bicicleta escarranchada quase na ponta do nariz.
Gostava de passear, segundo me disse. Mas tinha a infelicidade de a escala nunca o contemplar quando se tratava da saída de qualquer piquete de representação para qualquer terra do país. E tão desiludido ficava quando isso acontecia que um dia, no quartel, me falou sobre o assunto.
- Não te aflijas, amigo João. Na primeira ocasião em que eu seja escalado, levo-te comigo, - respondi-lhe.
Até a alma se lhe riu, ao ouvir estas palavras, ficando demoradamente, como era seu gesto habitual, a esfregar as mãos de contentamento.
E um dia, de facto, caiu-lhe a sopa no mel. Fui escalado para, com um piquete, representar a Corporação numa festa qualquer que se realizava em Lisboa.
Um dia antes da partida fui até ao quartel, verificar se tudo estava em ordem e procurar o João, para lhe dar a boa nova.
Lá o encontrei, indolentemente encostado a uma viatura. Dirigindo-me a ele, informei-o de que, desta vez, a «cautela» lhe tinha saído premiada, pois que o levaria comigo, como lhe prometera.
Estou a ver a sua cara, radiante de felicidade. E, num abrir e fechar d’olhos, pôs o capacete e os botões da sua farda a brilhar como diamantes.
Na madrugada do dia imediato, partimos para a capital, levando o João, pequeno e franzino, entre mim e o motorista, visto que a lotação da viatura estava completa.
A viagem correu bem. E em Lisboa, após a parada, destroçámos e, com o Gastão e o Cristiano, fomos a Cascais e, depois, a Cacilhas, onde, como «aperitivo», comemos umas frescas e deliciosas sardinhas assadas. Foi um verdadeiro «magusto».
O João dos Óculos demonstrava a sua satisfação e alegria num constante sorriso, e não se separou de mim um instante, na eventualidade de vir a precisar dos seus serviços.
Não permiti que ele despendesse um centavo, contrariando a sua vontade.
E foi este, afinal, o único passeio que deu, pois que, passados tempos, a importuna sirene convocava-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes desta vila, e ele, - tal como no passeio que deu a Lisboa - para lá seguiu precisamente entre mim e o motorista.
Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam totalmente o prédio sinistrado.
Se, como sucedeu, em vez de tentarem apagar o fogo, nos tivessem chamado imediatamente e, entretanto, tivessem desligado o quadro da electricidade, talvez se tivesse feito qualquer coisa proveitosa e não tivéssemos de lamentar, agora, a perda de uma vida preciosa. Mas não sucedeu assim, infelizmente.
À uma hora e meia da manhã, um bombeiro pediu para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.
Mandei chamar outro bombeiro para isso, mas o João, que estava ali próximo, ofereceu-se para substituir o camarada.
O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este de pouca espessura, aplicado sobre o soalho, o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.
O João tomou conta da agulheta, estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.
Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinza e faúlhas, que quase nos cegavam.
A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e, então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra, entalado por escombros, em cima de um tonel. Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos, sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos deixaram de se ouvir.
Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.
Quando vi baldados todos os nossos esforços para salvarmos o infeliz João, corri à procura do Comandante, para lhe dar parte da terrível tragédia. Mas já alguém se tinha antecipado a fazê-lo, pois que fui encontrá-lo completamente aniquilado. Abraçando-se a mim, chorou e soluçou como uma criança.
E essas lágrimas, sinceras e sentidas que vi deslizar, em catadupas, pelo enrugado rosto do meu bom e velho Comandante, contagiaram-me de tal forma que os soluços me embargaram a voz e as lágrimas me correram também pelo rosto, sujo pela cinza e pelo fumo daquele vulcão infernal, que tirara a vida àquele nosso bom e querido camarada.
Lágrimas destas não envergonham um homem.
Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a fim de evitar que ficasse carbonizado, o que se conseguiu.
E só às seis da manhã, - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.
Pobre e infeliz João! Como eu senti a morte daquele pequeno e grande amigo!
Pequeno e franzino como era, tinha no entanto uma alma de gigante.
Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.
O seu amolgado capacete ficou religiosamente guardado, no quartel, para figurar no nosso sonhado museu.
NOTA: Quem quiser conhecer a história dos bombeiros Régua terá ler as Memórias desde antigo Chefe dos Bombeiros da Régua (ocupou ainda o lugar de segundo comandante), já desaparecido do mundo dos vivos e que era filho do ilustre Comandante Camilo Guedes Castelo Branco. Este seu texto, faz parte de uma série que escreveu, com o título de Recordando… (já que o subtítulo é da responsabilidade exclusiva de quem faz este arquivo) evoca um dos maiores incêndios na Régua e, comovidamente, a personalidade singular do cidadão e do bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, que vi morrer queimado nesse fogo quando estavam a combatê-lo, foi publicado no jornal Arrais, na sua edição de 25/01/1979.
Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição e atualização de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
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