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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Refazer Memórias

Na primeira metade do século passado ainda o senhor José Afonso de Oliveira Soares andava por aí, por todos os caminhos e todos os recantos da vila do Peso da Régua. E sempre numa postura de bonomia e de bom trato, de mais a mais afeiçoado não só às motivações jornalísticas, mas também a todos os cenários do desenho e da pintura. Andava por aí com as suas barbas já um tanto abrancaçadas e a sorver as fumaças de um cachimbo de boa paz.

Por esse tempo já eu era um gaiato de meia dúzia de anos, nascido e criado em meio rural, todo envolvido de singelezas e flores campestres.

Por esse tempo eu não conhecia o senhor Afonso Soares, muito menos o seu talento e as suas qualidades artísticas. E mal feito fora que eu, ainda mal saído dos cueiros, andasse já a dar tento das pessoas mais ilustres e mais admiradas. Os meus cuidados, de todo infantis, andavam de volta das pereiras e dos pessegueiros a ver se já tinham frutos amadurados. Também de volta da coelha parida, a saber de quantos laparotos era a ninhada. E a pocilga do reco, sempre na engorda, até que, pelo Dezembro, o Seara vinha matá-lo e sangrá-lo em modos de o aviar em presuntos e salpicões. Nos dias mais soalheiros da Primavera, podia ir aos ninhos ou à cata dos grilos, enquanto a moça Carolina lavava um montão de roupa no tanque grande, com a água toda escumada de sabão.

Isto será um resumo da minha pretérita ruralidade. Mas foi o quadro da Margarida, quadro que Afonso Soares pintou, que veio, só por si, refazer estas memórias.

O quadro da Margarida, pintado em folha-de-flandres, foi-me oferecido pelo meu amigo Mário Joaquim, que, na altura, trabalhava na tipografia da Imprensa do Douro. O quadro é, todo ele, um cenário de tonalidades e sabores campesinos e já há tempos lhe dei realce em letra de forma. Disse, por exemplo, que por um carreiro de terra vem caminhando uma rapariga cheiinha de mocidades. Ela traz na ilharga uma regaçada de erva fresca,  se calhar para mantença da coelheira. Afonso Soares, com um pincel miudinho, deu-lhe a finura dos traços e o que quer que seja de uma luz irradiante. Os olhos da rapariga,  movediços a todo o largo, não deixam de ser envolventes e nas faces afogueadas até parece que vem por aí a cantar umas cantiguinhas, bem avivadas no calor da garganta. Os longes do quadro, esses, são ainda uma harmonia de ruralidades. À cachopa pus eu o nome de Margarida, cachopa que sendo grácil e bem apessoada, também tem o nome de uma singela flor campestre.

Guardo o quadro como uma reserva do passado e com as ressonâncias que sobrevivem num crescendo harmonioso.

Ainda a refazer memórias, bem me lembro de há uns bons trinta anos ter ido, em consulta clínica, a casa do senhor António G. Castelo Branco, ali em Cambres, na Quinta da Bugalheira. Na casa e na estreiteza do quarto, reparei que um belo quadro estava pendurado na parede. Figurava uma cabeça de Cristo, com uma bela expressão de sereno e compadecido misticismo. Da transparência das tintas e suas discretas tonalidades, pareceu-me que se evolava uma luz de recolhida santidade. Pareceu-me, até, que aquele quadro era propício à beleza e ao talentoso amadorismo do pintor Afonso Soares. E, em conversa de bom e salutar convívio, disse-me o senhor Castelo Branco que o quadro lhe fora oferecido pelo autor Afonso Soares, pois tinha sido seu amigo e quase contemporâneo.

Mas, Afonso Soares também se distinguiu como escritor e jornalista e um digno Comandante dos Bombeiros da Régua. E foi com redobrado deleite que li e reli a primeira edição da História da vila e concelho do Peso da Régua, edição que guardo a bom recato na minha biblioteca.

Em conclusão, digamos que Afonso Soares tem um busto em bronze no Jardim do Cruzeiro, a exaltar e a perpetuar o talento e as benquerenças do jornalista, do escritor e do pintor. Ali está como um sinal de luz não esmorecida, sinal a reluzir e a pulsar no nosso entendimento.

O artista, afeito a uma órbita de novidades, parece adorar o seu mundo. A olhar a rua é ainda e sempre um mendicante da arte e da beleza.
- Manuel Braz de Magalhães, Novembro de 2013.

Clique na imagem para ampliar. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Retratos do Museu

Inesperadamente e quase por desfastio, fui visitar há dias o valioso Museu dos Bombeiros da Régua. Aconteceu no último Agosto e a convite do Dr. José Alfredo Almeida, digno Presidente daquela Corporação. A hora não era muito propícia e a tarde até ia incendiada de calor.

Mas, aceitei o convite e dei por bem empregues os poucos minutos dedicados ao Museu. Se o vi pela rama, mesmo num relance de olhos, também é verdade que me deliciei com tudo quanto pude ver naquele pequeno mas admirável Museu, repositório de tudo quanto se relaciona, ou relacionou, com qualquer corporação de Bombeiros no tocante à sua actividade, seu dinamismo, seu voluntariado.

Naquele amplo salão, iluminado pela luz de umas vidraças soalheiras, não se pode dizer que o Museu seja rico em demasia. Mas é um Museu a seu modo, rescendente de memórias e evocativas imagens. Não é rico, mas está ali um bom remedeio de curiosidades e velharias, aquelas que no correr dos anos tiveram a sua identidade e a sua prestimosa serventia.

Diante de tais velharias fiquei contemplativo. Contemplei, por exemplo, um carro de mão que seria, nos velhos tempos, um carro de pronto-socorro. Agora é uma peça antiga, um carro anacrónico, de amplo rodado e com dois varais que serão o prolongamento da força braçal de alguns homens, nos caminhos da prontidão. Não são varais de macho a galope, nem sequer à medida de burro tropiqueiro.

O carro tem em cima um depósito de cobre um tanto amolgado e a sua capacidade será de 200 litros de água, se tanto, água que daria para apagar um lume brando e macio e nunca para extinguir um fogo de alterosas labaredas. Mas é uma bela peça carregada de poesia e originalidade no decurso dos anos e agora ali está, muito quieta, ao rés de todo o inventário museológico.

E a sineta que veio de Canelas quando Canelas foi sede de concelho e que ali ficou à guarda e aos cuidados dos bombeiros? Dei-lhe um pequeno toque de badalo, alarme fingido, e a sineta soltou um eco dos tempos idos, ainda assim cheiinho de bronze e sonoridades.

Passam-me então pela retina vários retratos de gente notável. Lá está o retrato de meu bisavô José Braz Fernandes, bisavô pelo sangue materno e que, ao tempo, foi o primeiro Presidente dos nossos bombeiros. 
A fotografia retrata-o como figura já atempada na idade, com barbas respeitáveis como patriarcais e com o olhar fixo em alguma distância. É um retrato igual ao original que sempre vi, ano após ano, no recanto mais intimista da minha casa paterna e avoenga.

A minha tia-avó Cândida Braz Amaral também foi benemérita dos bombeiros e também avulta na galeria do Museu, em retrato de meio perfil. Foi uma tia bastante rica, sem filhos, que legou à família o valioso e imponente jazigo mandado construir no cemitério do Peso.

Aproveitei e pedi-lhe licença para, na hora do meu passamento, eu não entrar num gavetão do jazigo, mas descer à mesma campa rasa de meus pais. Já em tempos o deixei escrito nos dois últimos versos do poema a que dei o título “Quando o além me chamar” : Dizem:

E assim dormir no teu regaço
Para sempre, boa terra, Minha Mãe.

E o retrato do Comandante Carlos Cardoso? Esse veio ao meu encontro como se quisesse dar-me um abraço. Fomos contemporâneos, companheiros e até confidentes de muitas realidades, irmanados na mesma empresa – Hospital -, a desempenhar funções paralelas. Eu, no tratamento de doentes, internados ou não, ele, a prestar contas como chefe da secretaria e a comandar também, com muito aprumo e dignidade, a Corporação dos Bombeiros da Régua.
Digamos que por esse tempo, em caso de catástrofe, o quartel dos bombeiros não mandava tocar os sinos a rebate. Já dispunha de uma moderna sirene que, à conta de um simples botão, mandava por aí fora um som estridente de muitos decibéis. Nos primeiros instantes tudo começava com um arranque poderoso, rombudo até, e logo se aguçava fino e estridente nas pontas de um dramático arrepio, a pontear no céu as linhas de uma tragédia.

Muitas vezes surpreendi o Comandante Carlos Cardoso alvoroçado pelo toque da sirene. Bastava que eu estivesse mais livre de obrigações e ele ocupado no enquadramento da sua secretaria, para que tudo em volta se agitasse num repente e no impulso de uma mola não pasmada. E logo o Comandante Carlos Cardoso corporizava a prontidão. As realidades e o sobressalto das certezas sobrepunham-se aos desígnios de qualquer romantismo.

E deixo para trás a profusão de outras antigualhas: bombas motorizadas, acessórios de fardamentos, lanternas, macas, medalhas, documentos, mercês honoríficas.

À saída fiz uma vénia a S. Marçal, patrono dos bombeiros. A imagem do santo já tem algumas quebraduras e já tem algumas desfigurações do tempo. S. Marçal costumava ir na procissão do Socorro, em cima de um andor, como quem vai nas andanças de um púlpito.

Mas, assim velhinho e marcado pelas desfigurações, nem pode mandar-nos de lá uns acenos de santidade.
- Peso da Régua, 8 de Setembro de 2013, Manuel Braz de Magalhães.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2013. Imagens e texto cedidos pelo Dr. J. A. Almeida para este blogue. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Um ilustre benemérito

Do ilustre benemérito senhor António José Rodrigues guardo eu uma primeira imagem que me ficou já remota, já delida pelos anos que passaram. Nesses recuados tempos, teria eu uns seis ou sete anos, entrei com meus pais no estabelecimento comercial do senhor António José Rodrigues, conhecido no meio pela alcunha de Mumu. Ainda hoje tal epíteto me escapa ao entendimento e também me escapa, ou já não me lembra, qual a peça ou artigo que meus pais foram ali comprar. Seria uma peça de riscado ou fazenda, seria pano-cru ou seria apenas uma meia dúzia de botões? Não sei… O que sei é que a loja do Mumu se situava no enfiamento da rua dos Camilos e um pouco adiante da Pensão Douro.

A bem dizer, situava-se muito perto da estação de comboios. Toda a clientela que viesse às compras à Régua e que ali se apeasse dos comboios ou das camionetas de carreira, tinha por perto a loja do Mumu.

Quando há muitos anos ali entrei, levado pela mão de meus pais, a loja pareceu-me algo modesta, um tudo nada envolvida de soturnidade mas, ainda assim, bem rica de prateleiras, com um variado mostruário de tecidos e fazendas. Ao tempo, foi essa a impressão que me marcou e da qual me lembro.

Também me lembro que, às tantas, uma frase ou um dito do senhor Rodrigues fez com que meu pai risse uma boa gargalhada mas, por qualquer minha distracção infantil, não dei tento do gracejo ou da galhofa, sei lá se de alguma malandrice.

Mas, no correr dos anos, sei que o comércio do senhor Rodrigues era comércio de boa nomeada, boa aceitação e boa freguesia. Ali se vendiam variados tecidos e fazendas, chitas e riscados, xailes e camisolas, cobertores e atoalhados, colchetes e botões. A metro ou à dúzia, tudo era, modo de dizer, um ver se te avias. E a verdade é que o senhor Rodrigues, anos a fio, lavrou nesse comércio as raízes do seu trabalho e do seu desafogado viver.

Digamos, portanto, que tal negócio não lhe foi desventuroso. Digamos ainda que o senhor Rodrigues fazia todos os dias uma boa caminhada desde a residência, no Senhor dos Aflitos, até à sua loja de comércio.

É crível que, passo a passo, num relance de olhos, visse e sopesasse também o negócio dos outros, fosse o chamariz das montras, as particularidades de um amplo balcão ou até o deslumbramento diante da cintilação do oiro e da prata no mercado das ourivesarias. De caminho, era ainda a louvação dos bons-dias e boas-tardes dadas aos passantes e convizinhos. E, se calhar, o senhor Rodrigues ia congeminando sobre o deve e haver dos seus negócios, como quem deita contas à vida. Contas feitas, era como se um fogo de bem-querer e bem- fazer lhe incendiasse o espírito e abrisse os caminhos do humanitarismo. Por acréscimo, o senhor Rodrigues ficou milionário da solidariedade e da benemerência, afeiçoada à honrada e luminosa repartição dos bens.

Eu, a fazer fé nos desígnios deste mundo, direi que, por vezes, as riquezas podem ser muito pobres e miserandas. Tais riquezas, se geradas por uma ambição desmedida e pela cainheza do entesoiramento podem desfazer-se num monte de cinzas e num rescaldo de escombros a céu aberto. Podem ter, afinal, estes acabamentos, estes inesperados desatinos.

Em jeito de conclusão direi que o benemérito António José Rodrigues legou grande parte dos seus bens à Santa Casa da Misericórdia e, principalmente, à corporação dos Bombeiros Voluntários.

Acabou seus dias acamado num quarto particular do hospital da Régua, quarto que ficava mesmo defronte da sala de partos, ali onde se definiam as linhas de toda uma Vida por Vida, ali onde a religiosa Irmã Maria foi parteira de todos os meus filhos.

Eu, já licenciado em medicina, pude visitar o senhor Rodrigues uma ou outra vez e pude ver que tinha diante de mim um cavalheiro já de certa idade, com uns dizeres modestos e suaves, como que à espera do fim. Ao lado, sobre a mesinha de cabeceira, sobressaía uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, encimada pelo fino recorte duma coroa de prata.

Essa imagem foi doada à Irmã Maria em reconhecimento pelos serviços de enfermagem prestados ao senhor Rodrigues mas ela bem sabia do meu gosto por antiguidades e velharias, com particular apetência pela arte sacra. Por isso, alguns dias passados, não estranhei que me entregasse a imagem da Nossa Senhora da Conceição, recatadamente enfiada num saquito de plástico.

E assim, por linhas travessas, salvo seja, a benemerência do senhor António José Rodrigues chegou até mim.
- Peso da Régua, 30 de Julho de 2013, Manuel Braz de Magalhães.
  • Também neste blogue em 7 DE DEZEMBRO DE 2009 - O benemérito António José Rodrigues por  J. A. Almeida.
  • Publicado no semanário regional "O Arrais", edição de 7 de Agosto de 2013:

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texo e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Também publicado no jornal semanário "O Arrais", edição de 07 de Agosto de 2013, Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Três belas frases de João de Araújo Correia

Bem me lembro que num Agosto de há mais de trinta anos eu fui por aí fora a caminho da Srª da Lapa, em dia de romaria grande. Às tantas desviei-me da estrada de Moimenta e enfiei pela estradinha da Soutosa, estradinha pouco expedita, na Serra de Leomil. Foi então que dei de caras com a aldeia de Nacomba, coisa inesperada mas, ainda assim, com algum relevo nas miudezas do mapa.

Nacomba surgiu-me a deslado, meio aconhegada num desses vales que dão as águas e dão o ser aos requebros da Serra de Leomil.

Nacomba era um povoado de casas velhas e humildes, casas de telha vã com todo o negror do tempo e da fuligem.

À distância de todos estes anos passados, é crível que um ou outro emigrante tenha feito ali uma casa mais arrebicada, a dar algum sainete às gentes do lugar, aos caminhos lastrados de mato galego, mesmo àquele chão onde se imbricam as leiras de sementio.

E bem me lembro que quando li o conto “Os Cegos de Nacomba”, de João de Araújo Correia, logo me deu no goto esta frase admirável: Meia dúzia de casas perdidas na unhada que Nosso Senhor dera num monte.

Esta frase, tão metafórica e tão sintética, ficou-me a vida inteira, a dizer-me, só por si, da omnipotência e da omnisciência de Deus, Nosso Senhor.  
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Bem me lembro ainda das antigas carregações do vinho na casa agrícola de meus pais, nos subúrbios da Régua. As carregações eram uma festa aos meus olhos de rapazinho descuidado. Eram carros e mais carros de bois, cada qual com sua pipa bem arrochada; e eram os carreiros, os matulas de armazém, os serventes beberrões e eram, principalmente, os bois, sempre a esmoerem palha milhã e inçados de mosquedo. Por esse tempo os carros de bois eram os carros de aluguer e o pecúlio entesoirado fazia com que os carreiros levassem vida bem regalada. Pode dizer-se, até, que os bois eram afagados com amor. Livres de andaços ou mazelas, nédios, bem nutridos, cheios de carnes e untuosidades, eram umas estampas de bom porte e boa galhadura, coisa digna de se ver e eram também a vaidade dos carreiros.

Imagine-se agora uma junta de bois a dormir no eido, numa noite de lua cheia, noite profunda e silenciosa de Estio.

Imagine-se que vamos até à janela a ver o sereno irreal da noite enluarada e a ver a junta de bois assim amodorrada.

João de Araújo Correia dá-nos esse quadro. É como se fossem dois versos na sublimação de um poema:

Duas medas de carne fulva untadas de luar. 
…………………………………………………………………………………………………………
Lembra-te homem que és pó e em pó te hás-de tornar.

Mas, na hora de prestar contas no outro mundo, quem fala são, muitas vezes, os preconceitos e as mundanidades.

Luxos, bonitezas, fidalgos ou cavadores, obtusos ou letrados, ricaços ou mendicantes, celerados ou preguicentos, ao fim e ao cabo todos dormirão o sono da eternidade polvorenta. Quem no-lo diz é João de Araújo Correia. Diz esta belíssima frase tão judicativa como sentenciosa:

Tanto voam para sempre os que têm asas de prata no caixão, como os que se remedeiam no voo com as asas das omoplatas.
- Manuel Braz de Magalhães, Fev/2013

Clique na imagem para ampliar. Texto de  Manuel Braz de Magalhães. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo AlmeidaEdição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

UM QUADRO FESTIVO

Um dos quadros que enobrecem a minha sala de estar pintou-o Afonso Soares, artista e historiador reguense que tem busto e memória, ali no simpático jardim do Cruzeiro.

Quadro a óleo sobre folha de flandres, mostra-me uma cena campestre, cheia de beleza e colorido.

O céu e azul, mal forrado de nuvens algodoadas e, como pano de fundo, na linha do horizonte, lá estão umas casas de campo, casas de lavoira que vão do amarelo ocre até ao branco duma caiação já antiga e meio desbotada. Em volta das casas, a verdejar, há umas tantas árvores esguias que me parecem choupos.

Que sítios seriam estes?...

O primeiro plano é todo ele um ervaçal de macieza, cortado por um carreiro de terra batida. E, pelo carreiro, vem caminhando uma rapariga cheiinha de mocidade. Traz uma boa regaçada de erva fresca onde pontilham umas florinhas brancas e parece caminhar com certo desembaraço, a despeito dum ligeiro requebro da cintura.

Um pincel mais miudinho, ao que julgo, deu-lhe a finura dos traços e o quer que seja de luz irradiante. Aquele leve sorriso a flor dos lábios e aquela boca onde se adivinham cantigas de espairecer, sei lá se uns dichotes cortados de gargalhadas, são traços de pincel miudinho.

Com uma pele trigueirota de camponesa e já com um corpo esbelto de senhora, parece fixar-me com o olhar. Mas os olhos, apesar de fitos em mim, devem ser olhos movediços, alegres de condição. Quem seria esta cachopa, assim pintada por Afonso Soares?

Já lhe pus um nome, que é o melhor modo de eu próprio retocar o quadro. Pus-lhe o nome de Margarida, também uma flor campestre. Se em vez duma regaçada de erva, trouxesse com ela uma bilha de agua fresca, mal poisada na ilharga, - Margarida vai a fonte - cuido que viria caminhando com o mesmo desembaraço e a mesma alegria no rosto trigueiro. Que o digam as arrecadas de oiro, os olhos movediços e a boca sorridente.

Margarida veste ao calhar de cada dia e vem descalça com a saia arrepanhada a um dos lados, a deixar ver um tudo nada do saiote vermelho e, por debaixo da blusa, avultam-lhe os pomos dos seios. Se saísse apoucada com estes modos de vestir…. Mas não.

Claro que, por esse tempo, Margarida devia ter também as suas vaidades e é crível que, em cada ano, viesse as festas do Socorro, com outros luxos, outro brio no vestir.

Estou a vê-la pela rua fora, com suas argolinhas de oiro, um certo espairecimento no rosto e na cinta flexível. E, naturalmente mesmo um verdadeiro arraial dentro do peito.
Manuel Braz de Magalhães
Nota: Publicado no Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro
  • Sobre José Afonso de Oliveira Soares neste blogue
Clique  na imagem para ampliar. Sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

De volta ao Milagre do Cruzeiro

Estou de volta ao Milagre do Cruzeiro a pedido de alguém que gostaria de conhecer o essencial da história contada na opereta, em episódios tão românticos como realistas. No dia da estreia foi distribuído um livrinho-programa onde constava um resumo dessa história e que agora transcrevo, com um outro acrescento da minha lavra.

Diz assim esse resumo: “Era uma vez uma menina chamada Joaninha que, por ser órfã, foi recolhida e amparada pela sua madrinha, a Srª Morgada. Vivendo no aconchego de tão santo lar, a Joaninha não podia deixar de revelar as excelsas qualidades da sua madrinha, se bem que ela possuísse um coração terno e afável, nunca indiferente à miséria e dor alheias, daí resultando a estima de toda a gente, principalmente os pobres que ela socorria.

Certo dia, por motivo de um casual encontro com Fernando - mestre-escola – sentiu dentro de si a chama do amor.

Alvaro, filho do fidalgo dos Cabris, moço galanteador de quem as raparigas da aldeia fugiam, por se dizer de boca em boca, ser autor de certos males, lembrou-se de dirigir olhares pecaminosos e palavras intencionais à bondosa Joaninha, perseguindo-a durante as suas visitas de devoção ao alto do Cruzeiro.

O maldoso João ferreiro soube disso e estaria pronto a ajudar o fidalgo nos seus torvos intentos.

Inesperada tragédia atinge em cheio Fernando e despedaça o coração de Joaninha. É que um tiro, também inesperado, atingiu e matou o fidalgo, ele que momentos antes tinha trocado umas palavras azedas com Fernando.

Joaninha, como louca foge de casa e dirige-se ao Cristo do Cruzeiro e implora-lhe a morte como único alívio para a sua dor, para o seu coração desfeito! Tomba inanimada e o bom Deus manda os anjos levantar o seu corpo débil e iluminar-lhe o caminho por onde, novamente, a felicidade viria.

Foi milagre!!!! E no fim daquele trágico dia brilhou a luz da verdade! Soaram as “Avé Marias”.

Este último quadro, tal com estas últimas palavras, fazem crer que o autor Rafael Magalhães, era um homem de devoção e de fé. De facto, era de uma religiosidade singular, intimista de todo e entendia que qualquer prece, qualquer diálogo com Deus, devia acontecer com muito respeito e total privacidade.
E é crível também que o autor da opereta, ao passar diariamente na rua Pedro Verdial, tenha encontrado ali uma fonte de inspiração, fosse no palavreado das mulheres do soalheiro, fosse nos janelões gradeados da velha cadeia onde os detidos, desirmanados do mundo e da razão, tinham olhos libertos e afoitos a todo o largo da concha reguense.

Já agora, traga-se aqui aos cenários, duas ou três personagens que ficaram para sempre na memória de quem as viu em cena. Pontificava a Teresa Chocalheira, serviçal da Sr.ª Morgada. Parecia o diabo à solta num mundo de milagres, mas não se servia de impropérios descabidos nem usava termos estapafúrdios. O seu fraseado eram só chalaças, sarcasmos e ironias, respostas na ponta da língua de mais a mais com assentimento e aprovação da patroa, a Sr.ª Morgada. Também o oficial de diligências, figura bem delineada e tão bem desempenhada pelo inconfundível Teixeirinha (lembram-se?). Diante da Teresa Chocalheira e diante das provas que incriminavam o assassino do fidalgo mostrava-se muito confuso, hesitante e inseguro, cheio de embaraços a fazer as suas partes gagas. Novelas, o regedor ou António, o perdido eram dois figurantes que nos diálogos e na postura se revelaram com muita desenvoltura tal como o João ferreiro, a disfarçar as sobras dos seus maus humores.

No final da opereta, final da história, surgiam duas figuras de anjos na beatitude milagrosa do cenário e um coro de vozes cantou uma Avé-Maria.

Diga-se, agora, que muita gente tem dito que “O Milagre do Cruzeiro” devia voltar à cena. Acho que não... Os tempos são outros e se mudou o mundo também mudaram as circunstâncias. Nos tempos que correm, tempos confusos e destemperados, o “milagre” não teria cabimento nem aceitação. Deixe-mo-lo no pó dos arquivos.

Enquanto isso, venho eu à boqueira do palco do velho Teatro dos Bombeiros da Régua dar vazão aos cenários do sentimentalismo.
Manuel Braz de Magalhães, Janeiro de 2013

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA)  Também publicado no semanário regional "O Arrais", edição de 23 de Janeiro de 2013. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Memórias do Comandante Lourencinho

Num aditamento ao texto que escrevi há três ou quatro semanas e que aqui se publicou, eu disse que o mesmo ia ser escrito no português da minha escola. Pois o texto de hoje obedece aos mesmos princípios, seja pela idade que vou tendo, seja pelo respeito aos bons dicionários que tenho na biblioteca. Adiante…

Depois da escola que me ensinou a ler Camilo ou o sermonário do padre António Vieira, continuei os estudos na Faculdade de Medicina do Porto, rés-vés o hospital de Stº. António. Foi por esse tempo que conheci o senhor Lourenço Pinto Medeiros, o Lourencinho, de boa memória. Também por esse tempo, nas férias grandes ou pequenas, eu deixava para trás o casão da Faculdade e vinha para a casa paterna, ou avoenga, casa de quinta, no lugar de Remostias. No Porto ficavam os livros de estudo, anatomias, patologia geral, embriologia, obstetrícia, propedêuticas, e por aí fora, todos eles em repouso e entregues a si mesmos, como se cada qual fosse uma leira de terra em pousio.

Gostava de trazer comigo, a boa companhia do tratado de Fisiologia, só para continuar os estudos em dias feriados… O funcionamento do corpo humano, os seus segredos e interrogações, até alguns milagres, tudo isso me fascinava e tudo isso chegou a ser tema de amenas conversas com o Lourencinho, ali na tabacaria de meu pai, na rua de Serpa Pinto.

Era nas férias grandes, naquelas manhãs ou tardes de um verão canicular que muitas vezes eu deixava para trás a meia-encosta de Remostias, toda ela com sucessivos quadros de uma natureza aprimorada, e vinha por aí abaixo até ao centro da Régua, mesmo no Agosto que dia- a-dia se ia chegando às vindimas, já com tantos e tantos cachos aflorados de oiro e de pintor. Feito vádio, modo de dizer, vinha até à Régua, eu e o tratado de Fisiologia, a fazermos uma pousada na tabacaria de meu pai. Era ali que se encontrava quase sempre o Lourencinho, sempre bem vestido, fato de bom talhe, gravata a condizer, sapatos brilhantes de bom lustro.

Na tabacaria, no espaço destinado ao público, havia um banco corrido de três ou quatro lugares, encimado por um largo espelho de cristal e ladeado por duas estantes expositoras, coisa rara e talvez única em qualquer outro estabelecimento da Régua. Meu pai, um diletante, de mais a mais com um apurado sentido da cultura, entendeu que o comércio de tabacos por junto, era negócio de toma lá dá cá, negócio nada marralheiro e a pedir algum espaço de descanso e de convívio.

O banco, sendo corrido, naturalmente rectangular, passou a ser um círculo de diálogo e de cultura. Era o banco do Lourencinho, afora um ou outro freguês que nele descansasse de uma longa caminhada. Sentado no banco o Lourecinho fazia horas e fazia-as diariamente, cioso de algum sossego, sei lá se de alguma secreta solidão e a deitar contas à vida. Fumava cigarros atrás de cigarros e olhava a rua com olhos distantes, mesmo inexpressivos, como se a retina estivesse virada para dentro de si mesmo.

Tirando os dias de feira, o quotidiano da rua era o habitual, um sobe e desce de automóveis, carros de bois, carretas de mão e gente que ia à sua vida, novos e velhos, cada qual integrado no andamento do mundo.

Muitas vezes eu subia ao andar da Associação Comercial a estudar Fisiologia. Depois vinha fazer horas de espera junto do Lourencinho que logo me perguntava: - Então, já estudou? Continue… continue, não desista. Conversávamos então sobre vários aspectos da fisiologia humana, coisas que ele gostava de ouvir e que lhe ateavam um fogo de curiosidades. De espanto em espanto, como que se deslaçava nele uma qualquer timidez que, se não era medular era própria da sua postura intimista.

O bombeiro Lourencinho, já comandante da Corporação, não era atreito a exibicionismos nem a protagonismos, muito menos a fogo de vistas. Mas amava os bombeiros no seu todo e gostava de se sentar no banco da tabacaria a conversar com meu pai.

Assim enraizado, é crível que fosse o Lourencinho quem convenceu meu pai a escrever uma qualquer peça de teatro, peça que, levada à cena, poderia render dinheiro bastante para dar seguimento às obras do quartel.

E, de facto, meu pai escreveu a letra e a música da opereta O Milagre do Cruzeiro que, logo na estreia, foi um sucesso, um acontecimento artístico a despertar por aí além muito entusiasmo e muitos aplausos.

Foi uma sugestão do Lourencinho? Talvez… talvez... isto nos animosos tempos que já lá vão e nos bons propósitos de um espaço que já não é.
- Manuel Braz de Magalhães
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 7 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.