Bem me lembro que num Agosto de há mais de trinta anos eu fui por aí fora a caminho da Srª da Lapa, em dia de romaria grande. Às tantas desviei-me da estrada de Moimenta e enfiei pela estradinha da Soutosa, estradinha pouco expedita, na Serra de Leomil. Foi então que dei de caras com a aldeia de Nacomba, coisa inesperada mas, ainda assim, com algum relevo nas miudezas do mapa.
Nacomba surgiu-me a deslado, meio aconhegada num desses vales que dão as águas e dão o ser aos requebros da Serra de Leomil.
Nacomba era um povoado de casas velhas e humildes, casas de telha vã com todo o negror do tempo e da fuligem.
À distância de todos estes anos passados, é crível que um ou outro emigrante tenha feito ali uma casa mais arrebicada, a dar algum sainete às gentes do lugar, aos caminhos lastrados de mato galego, mesmo àquele chão onde se imbricam as leiras de sementio.
E bem me lembro que quando li o conto “Os Cegos de Nacomba”, de João de Araújo Correia, logo me deu no goto esta frase admirável: Meia dúzia de casas perdidas na unhada que Nosso Senhor dera num monte.
Esta frase, tão metafórica e tão sintética, ficou-me a vida inteira, a dizer-me, só por si, da omnipotência e da omnisciência de Deus, Nosso Senhor.
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Bem me lembro ainda das antigas carregações do vinho na casa agrícola de meus pais, nos subúrbios da Régua. As carregações eram uma festa aos meus olhos de rapazinho descuidado. Eram carros e mais carros de bois, cada qual com sua pipa bem arrochada; e eram os carreiros, os matulas de armazém, os serventes beberrões e eram, principalmente, os bois, sempre a esmoerem palha milhã e inçados de mosquedo. Por esse tempo os carros de bois eram os carros de aluguer e o pecúlio entesoirado fazia com que os carreiros levassem vida bem regalada. Pode dizer-se, até, que os bois eram afagados com amor. Livres de andaços ou mazelas, nédios, bem nutridos, cheios de carnes e untuosidades, eram umas estampas de bom porte e boa galhadura, coisa digna de se ver e eram também a vaidade dos carreiros.
Imagine-se agora uma junta de bois a dormir no eido, numa noite de lua cheia, noite profunda e silenciosa de Estio.
Imagine-se que vamos até à janela a ver o sereno irreal da noite enluarada e a ver a junta de bois assim amodorrada.
João de Araújo Correia dá-nos esse quadro. É como se fossem dois versos na sublimação de um poema:
Duas medas de carne fulva untadas de luar.
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Lembra-te homem que és pó e em pó te hás-de tornar.
Mas, na hora de prestar contas no outro mundo, quem fala são, muitas vezes, os preconceitos e as mundanidades.
Luxos, bonitezas, fidalgos ou cavadores, obtusos ou letrados, ricaços ou mendicantes, celerados ou preguicentos, ao fim e ao cabo todos dormirão o sono da eternidade polvorenta. Quem no-lo diz é João de Araújo Correia. Diz esta belíssima frase tão judicativa como sentenciosa:
Tanto voam para sempre os que têm asas de prata no caixão, como os que se remedeiam no voo com as asas das omoplatas.
- Manuel Braz de Magalhães, Fev/2013
Clique na imagem para ampliar. Texto de Manuel Braz de Magalhães. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.