sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Memórias do Serviço de Transporte de Doentes nos Bombeiros da Régua: As pandemias da gripe espanhola à gripe A


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Em 3 de Março 1968, os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua (BVPR) recebiam uma nova ambulância Mercedes Benz, modelo 220 D, para melhoraria do seu modesto serviço de transporte de doentes, à qual foi dado o nome de "Nossa Senhora da Conceição", em homenagem a D. Sílvia Ferreira, grande benemérita da instituição.

Nessa data, o corpo de bombeiros dispunha em actividade regular de uma velha ambulância. Esse veículo já não satisfazia as exigências de um serviço quase permanente e do aumento extraordinário da população, motivado pela fixação, na cidade, de muitos trabalhadores (e suas famílias), contratados para a construção da Barragem de Bagaúste.

A cerimónia da bênção e baptismo da nova ambulância decorreu no Largo da Igreja Matriz. Procedeu ao acto litúrgico o reverendo Avelino Branco, pároco local. Além de muito público, esteve presente o Corpo Activo, o comandante Carlos Cardoso dos Santos e a Direcção. A madrinha da viatura foi D. Margarida da Glória Mesquita e Costa Vieira de Castro, esposa do presidente da Direcção, pelo Dr. José Lopes Vieira de Castro (1968-1969), que os sócios haviam escolhido em acto eleitoral muito participado – e conturbado – no qual foi derrotada uma lista alternativa liderada pelo Dr. Fernando Bandeira.

No final, a nova viatura e as demais existentes nos bombeiros da Régua desfilaram pelas ruas da cidade até às Caldas do Moledo. Assim, pretenderam os bombeiros agradecer a generosa contribuição da população para a compra da moderna unidade móvel, avaliada em 200 contos, valor incomportável para a associação, na sua totalidade, devido à limitação de recursos financeiros.

A ambulância em causa deixou de prestar serviço há muitos anos e não teve a sorte de alguém a ter reservado para peça de museu. Outro destino teve a velha ambulância Mercedes Benz, modelo 180 D, adquirida em 1958 pela direcção sob a presidência do Dr. Júlio Vilela. Depois de deixar o activo e, apesar de degradada, continuou a fazer parte do património da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. Considerada peça rara, de momento aguarda recuperação total para os seus cromados ainda voltem brilhar.Essa bonita viatura tinha uma célula sanitária muito elementar constituída por duas macas, uma delas desmontável. O seu principal objectivo era o transporte, ao contrário do que acontece com as ambulâncias dos nossos dias, dotadas de equipamentos para os mais variados fins de assistência. Por exemplo, se solicitado o seu serviço para uma transferência de hospital, era assegurada a colocação de soro e oxigénio, situação para a qual estava preparada. Dado que o estrado da maca é amovível e abre o encosto do banco traseiro permitia, caso fosse necessário, transformar-se rapidamente em transporte de pessoal, com capacidade para sete bombeiros.

Quanto à primeira ambulância que existiu no Corpo de Bombeiros da Régua, sabemos pelas memórias escritas de António Guedes (nascido em 1894), antigo chefe, que era uma viatura marca Rolly-Pillan, cujo chassis foi oferecido pelo benemérito José Vasques Osório. Quem chegou a vê-la circular, descreve-a como sendo "uma caranguejola esquinuda, de um branco duvidoso e conforto ainda mais duvidoso".

Actualmente os bombeiros da Régua dispõem de dez ambulâncias para o serviço de transporte de doentes preparadas ao nível de Suporte Básico de Vida, número considerado suficiente para responder às actuais necessidades da população do concelho, mesmo em situações mais complexas, caso da primeira pandemia de gripe do século XXI que, desde Maio último, aumenta o número de pessoas afectada pelo vírus H1N1.

Lembramos que no início do século passado, mais precisamente na primavera de 1918, aquando da pandemia de gripe espanhola, também conhecida por pneumónica, os bombeiros da Régua desempenharam um papel importante no apoio sanitário aos infectados.

Quando esta se "manifestou na vila e nas imediações, a corporação dos bombeiros instalou postos de socorro e um hospital apropriado para o qual ela conduzia, nas suas macas, as pessoas atingidas pela epidemia", relata, numa carta de 30 de Agosto de 1928, o sócio fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro, ao tempo presidente da Comissão Administrativa do concelho do Peso da Régua.

Um outro testemunho é de o António Guedes, antigo Chefe no Corpo de bombeiros da Régua, publicado no jornal “O Arrais”, de 20 de Junho de 1978, num artigo intitulado "Bombeiros Voluntários: Recordações", que descreve como ele e outros bombeiros viveram, sem alarmismos, os momentos mais críticos deste nefasto acontecimento:

"Mais tarde, quando da pneumónica, montamos um improvisado hospital na casa onde hoje está o Asilo Vasques Osório, o qual ficou sob a direcção do médico da nossa Corporação, Sr. Dr. Luís António de Sousa.

Ainda não existiam ambulâncias na Corporação, e éramos nós bombeiros, que com macas portáteis, íamos buscar os doentes a suas casas e os transportávamos para o hospital.
Há que frisar o facto de nenhum de nós se ter contagiado com aquela terrível doença, certamente devido à desinfecção a que éramos sujeitos, sempre que chegávamos com qualquer doente.

Recordo-me muito bem que, dessa desinfecção, constava um 'medicamento', um 'antibiótico' muito agradável, que era o Vinho do Porto. O primeiro gole seria para bochechar e deitar fora e o restante conteúdo do cálice (bem grande, por sinal) era para ingerir.

E de todos esses homens da velha guarda resto eu apenas, ralado de saudades pelo falta daqueles bons companheiros, os quais com o meu pequeno contributo, conseguiram conquistar a auréola, a fama de eficiência e valentia que ainda hoje enaltecem os Voluntários da Régua."

Desconhecemos quantas pessoas esta gripe, mais conhecida por pneumónica, vitimou no concelho do Peso da Régua, mas sabe-se que, de norte a sul do país, terá provocado perto de 150 mil casos mortais.

Eram tempos de alguma improvisação em que os bombeiros não tinham, como hoje, preparados os seus planos de contingência.
A ser verdade – e não temos razões para duvidar – os efeitos do Vinho do Porto, como poderoso desinfectante, talvez pelo seu teor alcoólico, terá resultado em 1918 como uma boa medida de prevenção ao vírus da gripe! - Peso da Régua, Agosto de 2009, José Alfredo Almeida.

  • Post's anteriores deste blogue sobre os Históricos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua - Aqui!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.

  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão no Google - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão no Escritos do Douro - Aqui!
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão no ForEver Pemba - Aqui!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Sinais de incêndios na Régua

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As sirenes dos carros de fogo dos bombeiros da Régua que invadiram a Rua João de Lemos, pelas 12. 40 Horas, no dia 21 de Junho de 1995, anunciavam o desaparecimento de um antigo estabelecimento do comércio tradicional, A Inovadora, mais conhecida por Casa Fortunatos, por ser esse o nome dos seus conceituados donos.

Este incêndio teve início no escritório do Grémio dos Vitivinicultores do Douro, instalado no 1.º andar do prédio, depois de saírem todos os funcionários para o almoço. As portas da casa A Inovadora também tinham encerrado. Quando deram o alerta para os bombeiros, o fogo tinha-se propagado rapidamente pelos soalhos de madeira e forros do telhado. Os bombeiros comandados pelo 2º Comandante Manuel Gouveia rapidamente chegaram, descendo a Rua Serpa Pinto, com dois carros de combate carregados de água - o Mercedes Baribbi - que usaram com as agulhetas no ataque ao fogo, enquanto não ligavam as mangueiras de alta e baixa pressão às bocas da rede pública. Os bombeiros recorreram aos aparelhos respiratórios para entrar nas instalações, só que era impossível a circunscrever o fogo mas, algumas horas depois, tinham o fogo dominado. Durante a tarde, o fogo reacendeu-se e o velho prédio de finais do século XIX acabou todo em ruínas.

Os prejuízos pela perda do edifico, do seu recheio e das mercadorias do estabelecimento foram contabilizados como elevados pelos seus proprietários. Comentavam que o valor do seguro não dava para indemnizar todos os danos que foram causados, como consta no relatório de ocorrência, por um curto-circuito nas instalações eléctricas no escritório do Grémio.

Era, assim, o fim da famosa A Inovadora que se encontrava de portas abertas no comércio reguense, desde 1934. O Cimo da Régua, como foi sempre conhecido o centro urbano, perdia uma casa comercial das mais antigas no ramo das fazendas, tecidos, roupas de homem, senhora, crianças e outras miudezas. Perdia-se um estabelecimento apreciado pela clientela, que marcava a diferença pelo seu grande balcão em madeira, os graciosos armários onde se expunham as novidades, os velhos metros de medir os tecidos, o atendimento familiar dos seus caixeiros, a salvação do “ bom dia minha senhora”, à mistura com os desabafos pessoais, a presença das figuras aprumadas e cavalheirescas do velho Sr. Antoninho Fortunato e do sobrinho Manuel David. Eram, os velhos tempos dos comerciantes reguenses que tinham como melhor estratégia de marketing para vender, o sorriso franco na cara.

A Casa dos Fortunatos – A Inovadora que nunca se impusera como nome comercial conhecido - fechava para sempre as portas à sua clientela. A rua ficava mais triste e sombria. O comércio local continuava a empobrecer. E, as restantes antigas casas comerciais da rua - como a do Hipólito, dos Pombinhos, da Fortuna, do Borrajo e a mercearia do Zé Pinto e, outras já desaparecidas, como a Formosura Reguense, do Valente Velho - que tinham feito da Régua uma terra de prósperos negócios, sentiam as primeiras dificuldades com o aparecimento de uma nova concorrência comercial. Os anos em que se distribuía mais beneficio e a produção do vinho se vendia a bons preços escasseavam. Com menos rendimentos, as pessoas não gastavam tanto dinheiro no comércio local, o que se reflectia nas vendas, ao apresentarem piores lucros. As oportunidades dos comerciantes fazerem grandes fortunas já não eram como no antigamente. Por isso, nos nossos dias, o negócio dos Fortunatos teria mais dificuldades de resistir ao comércio que se passou a fazer na Régua. A clientela mudou os seus hábitos de compras. Surgiram, como ia acontecendo noutros lugares, as grandes superfícies comerciais, como o Pingo Doce, o Lidl, o Intermarché, o Dia e inúmeras lojas de chineses, para quem o rosto das pessoas nada importa ou significa.

As marcas deste incêndio são visíveis na cidade, passados que são 14 anos da tragédia. O edifício mantém-se em ruínas para tristeza dos que passam nesta rua. As velhas paredes de xisto resistem ao passar dos anos. Na padieira da porta principal, o anúncio da casa permanece intacto, talvez que à espera que um milagre a faça ressurgir das cinzas.

Este incêndio fez-nos reviver as memórias dos tempos que os bombeiros da Régua eram chamados para os incêndios pelas diferentes badaladas do sino da Igreja do Cruzeiro. Como o assunto é desconhecido, recordamos a crónica de Joaquim Pires (pseudónimo do escritor reguense Dr. João de Araújo Correia), publicada no “O Arrais”, em 6 de Março de 1980, que nos fala de uma curiosa lista de “Sinais dos Incêndios”, usada para dar a saber aos bombeiros onde havia o fogo:

“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os sinais rezam como Signaes.

Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…

Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.

No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.

Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?

Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.

Como de facto. A tabela rezava assim:

  • 4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
  • 5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
  • 6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
  • 7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
  • 8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
  • 9 badaladas – Fora de Vila.
  • Para parar - 5 badaladas.

Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas. É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga”.

Esse tempo da Régua antiga, dos nossos bisavôs, que o escritor nos evoca já passou. Comove-nos ao falar de algumas ruas velhas e, faz-nos acreditar, que não se pode compreender o presente sem se conhecer o nosso passado. Os bombeiros da Régua modernizaram os seus alarmes de aviso para os incêndios. Os fogos exigem mais perícia e rápida prontidão. Como sinal de incêndio ainda usam o som estridente da sirene instalada no seu Quartel Delfim Ferreira. Mas, muitas vezes, recorrem ao aviso por meio de mensagens escritas difundidas pelo telemóvel que possui cada bombeiro. A cidade deixou de saber, assim, quando há um fogo. Se não fossem ainda os fumos e as chamas mais activas, as pessoas desconheciam onde fogo deixa os seus rastos de tragédia.

O último grande incêndio na Régua deu-se num outro velho prédio da cidade, situado no Largo do Cruzeiro, numa noite de Dezembro de 2008. Houve pessoas que só souberam dele pela manhã quando se sentia no ar um forte cheiro a queimado e sobravam as paredes em derrocada. Foi doloroso olhar aquele cenário de destruição que tinha atingido, no seu rés-do-chão, um requintado salão de chá da cidade, a Flor do Adro, um inesquecível espaço de bem-estar e de convívio social, muito frequentado pelas últimas gerações de reguenses.

Não resisto em relembrar as memórias de alguém que, como nós, frequentou esse lugar ao revelar com emoção um sentimento geral: “sempre que lá passarmos, vamos recordar aquele muro cheio de gente, de copo na mão, de sorriso nos lábios, onde se falava de tudo. Podem fazer parecido, igual... jamais. Que dias e noites ali passamos. Dias felizes e noites fantásticas. Nunca esquecerei esses momentos. Nunca repetirei essas alegrias e vivências. Agora, façam o que quiserem daquelas cinzas. Está lá a história de muita gente. E gente boa”.

A casa A Inovadora e o salão de chá A Flor do Adro já não existem. Os bombeiros não conseguiram salva-las da morte nas chamas do fogo. Mas pouco importam que não existam. Aqueles lugares fizeram as nossas vivências citadinas mais felizes. Ficam para sempre vivas enquanto existirem nas memórias das pessoas que escolheram a beleza da cidade da Régua para viverem.

Mas, os sinais de incêndio deixam-nos uma lição: a cidade precisa de ter o seu centro urbano tratado e urgentemente reabilitado. - Peso da Régua, Agosto de 2009, José Alfredo Almeida.

- Outros textos publicados neste blogue sobre os Bombeiros Voluntários de Peso da Régua e sua História:

  • Recordações da visita do Presidente da Républica General Ramalho Eanes - Aqui!
  • Memórias dos Bombeiros em Poiares com os Salesianos - Aqui!
  • As vidas que não se esquecem nos Bombeiros - Aqui!
  • Os bombeiros de escritório - Aqui!
  • Bombeiros Semi-Deuses - Aqui!
  • As "madrinhas" dos Bombeiros - Aqui!
  • A benção da Bandeira - Aqui!
  • Comandante Lourenço de Almeida Pinto Medeiros: Fidalgo e Cavaleiro dos Bombeiros da Régua - Aqui!
  • A força do voluntariado nos Bombeiros - Aqui!
  • A visita do Presidente da Républica Américo Tomás - Aqui!
  • Uma formatura dos Bombeiros de 1965 - Aqui!
  • O grande incêndio dos Paços do Concelho da Régua - Aqui!
  • 1º. de Maio de 1911 - Aqui!
  • Homens que caminham para a História dos bombeiros - Aqui!
  • Desfile dos veículos dos bombeiros portugueses - Aqui!
  • Os bombeiros no velho Cais Fluvial - Aqui!
  • O Padre Manuel Lacerda, Capelão dos Bombeiros do Peso da Régua - Aqui!
  • A Ordem Militar de Cristo - Uma grande condecoração para os Bombeiros de Peso da Régua - Aqui!
  • Os Bombeiros no Largo da Estação - Aqui!
  • A Tragédia de Riobom - Aqui!
  • Manuel Maria de Magalhães: O Primeiro Comandante... - Aqui!
  • A Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A cheia do rio Douro de 1962 - Aqui!
  • O Baptismo do Marçal - Aqui!
  • Um discurso do Dr. Camilo de Araújo Correia - Aqui!
  • Um momento alto da vida do comandante Carlos dos Santos (1959-1990) - Aqui!
  • Os Bombeiros do Peso da Régua e... o seu menino - Aqui!
  • Os Bombeiros da Régua em Coimbra, 1940-50 - Aqui!
  • Os Bombeiros da Velha Guarda do Peso da Régua - Aqui

- Link's:

  • Portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua (no Sapo) - Aqui!
  • Novo portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • Exposição virtual dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A Peso da Régua de nossas raízes - Aqui!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Memórias do 24.º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses

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Uma curiosa fotografia de um grande momento na história dos bombeiros da Régua, em que os fotógrafos, ao centro com Noel de Magalhães, a procurarem registar o acontecimento: a apresentação da guarda de honra, pelo Comandante Cardoso, ao Presidente da Republica General, Ramalho Eanes que, no dia 14 de Setembro de 1980, presidiu à cerimónia da sessão solene do 24.º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, realizado no Peso da Régua.

A organização deste Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses que, se realiza para discutir os problemas e os anseios no associativismo e no voluntariado e eleger os seus directores para os órgãos, é já uma das páginas mais brilhantes da história da Associação.  

Pela primeira vez, uma a primeira Associação do distrito de Vila Real assumia a responsabilidade de organizar uma reunião magna dos bombeiros portugueses. Era uma decisão acertada da Direcção da AHBV do Peso da Régua, presidida pelo Dr. Aires Querubim – nesse ano nomeado Governador Civil do Distrito de Vila Real -  e do Comandante Cardoso que contou com o apoio inexcedível de Rodrigo Félix, um dirigente que valorizava o passado glorioso dos bombeiros, que se encontrava como presidente da Direcção da Federação dos Bombeiros do Distrito de Vila Real.

Em 1980, com a realização do Congresso, a Associação e os bombeiros da Régua ganharam notoriedade e reconhecimento no país. Cumprindo e respeitando o espírito dos fundadores, afirmava-se neste momento como pioneira, activa e orgulhosa do seu passado e um futuro cheio de ambição, no ano que comemorava o seu primeiro centenário.

Os bombeiros portugueses fizeram uma festa na cidade da Régua que ganhou colorido, um movimento anormal e mais animação turística, num tempo em que escasseavam os hotéis, os residenciais e até os restaurantes para receber tantas pessoas. Conhecendo bem algumas das dificuldades da logística, o Prof. Renato Aguiar, presidente da câmara, apoiou e acarinhou com todos os meios possíveis a iniciativa para que o maior número de participantes ficasse pela cidade. Na falta de alojamento, o Regimento de Infantaria do Porto emprestou colchões pneumáticos e cobertores para algumas dormidas.

Os trabalhos do Congresso decorreram no Cine -Teatro Avenida, nas imediações do Quartel Delfim Ferreira. As cerimónias religiosas da Missa Solene, celebrada em conjunto pelo Padre Vítor Melícias e pelo pároco da Régua, Luís Marçal, aconteceram no Largo Comendador Delfim Ferreira, em frente do Palácio da Justiça e do Hospital D. Luís. O Coral de Nossa Senhora do Socorro, superiormente dirigido pelo maestro José Armindo, esteve presente para animar com os seus cânticos. Estiveram representados quase todos os corpos de bombeiros nacionais, com os seus homens do comando nas filas da frente, como era o caso do Comandante Armando Cardoso Soares, da AHBV do Dafundo.
A população acompanhou e assistiu com entusiasmo e interesse às manifestações públicas dos bombeiros. As ruas da então vila da Régua encheram-se de pessoas para verem e aplaudirem quer os desfile apeado quer o motorizado.

O Congresso abriu com a presença do Presidente da República, General Ramalho Eanes. Os pormenores mais significativos da visita presidencial foram destacados na revista comemorativa, na crónica “Recordando a visita do Presidente da República General Ramalho Eanes”, assinada pelo saudoso jornalista Jaime Ferraz, director do “Noticias do Douro”, que disse o seguinte:

 “Quando o Congresso dos Bombeiros realizados nesta vila, de 10 a 14 de Setembro, tivemos a honra da presença do Primeiro Magistrado da Nação, General Ramalho Eanes que, além de presidir à sessão solene que todos devem estar recordados se realizou no Cine -Teatro Avenida no dia 14-9-80 bem como as outras solenidades, assistiu ao cortejo das corporações, numa tribuna, para o efeito erigida junto ao edifício da Casa dos Douro.

O Presidente da República, além da respectiva comitiva, fez-se acompanhar da sua esposa e sua presença no referido congresso foi umas das principais notas que se podem recordar e enaltecer.

Os bombeiros voluntários da Régua fizeram a respectiva guarda de honra com todo o seu corpo activo formado junto do Quartel, tendo depois o Presidente da República passado revista à Corporação, e felicitado o respectivo Comandante Carlos Cardoso dos Santos, pela forma como soube apresentar-se e que constituiu um dos pontos fulcrais da visita presidencial”.

Para a história, o acontecimento ficará ainda assinalado pelo aniversário dos 50 anos da Liga dos Bombeiros Portugueses. O Presidente da República, General Ramalho Eanes, compreendendo o significado histórico, reconheceu na Régua os valiosos serviços públicos da Liga, ao condecorar o seu estandarte com o Grau de Membro Honorário da Ordem Militar de Cristo.

No Congresso da Régua que elegeu o Comandante Manuel de Almeida Manta para Presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses – as principais conclusões diziam respeito à questão da protecção social dos bombeiros. Este assunto mereceu reflexão e veio a ser aprovada uma deliberação que determinava para “no mais curto espaço de tempo possível, se elabore, discuta e faça aprovar um Estatuto Social do Bombeiro Voluntário como garante dos direitos e deveres de verdadeiros Soldados da Paz”. 

Acontece que esse objectivo só veio a ser alcançado alguns anos mais tarde. Em primeiro lugar, com a criação de um Fundo de Socorro Social destinado ao auxilio imediato dos familiares dos bombeiros acidentados em serviço e à promoção de outras acções sociais, consagrado com a publicação da Portaria nº 237/87, de 28 de Março. E, logo de seguida, foi conseguido o pretendido Estatuto Social do Bombeiro, estatuído pela aprovação da Lei nº 21/87, de 20 de Junho.
Os bombeiros portugueses, na década dos anos 80, conheceram profundas e importantes mudanças na sua organização institucional. Depois do Congresso de Aveiro, começam a reconhecidas várias reivindicações aí exigidas como fundamentais para a melhoria do sector dos s bombeiros. O poder politico dava sinais positivos ao estabelecer as bases administrativas do sector dos bombeiros com a criação do “Serviço Nacional de Bombeiros” (Lei nº10/98, de 10 de Março, o DL nº 212/80, de 9 de Junho e o DL nº418/80, de 29 de Setembro), para a presidência do qual era nomeado, o Padre Vítor Melícias.

Algumas dessas transformações ainda foram discutidas nos debates do Congresso da Régua, que pode dizer-se que fez história ao marcar a viragem de um novo tempo na afirmação dos bombeiros portugueses. Essa circunstância deve ter contribuído para motivar a comparência de uma grande afluência de delegados de todo o país – bombeiros e directores - no Cine -Teatro Avenida, para participarem nos trabalhos e intervirem nos assuntos mais preocupantes.

Não admira que, decorridos 30 anos, este 24.º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, realizado pela AHBV do Peso da Régua, que encerrou com a presença do Senhor Ministro da Administração Interna, Dr. Eurico de Melo, esteja vivo na memória de muitos dos seus protagonistas, que acreditavam num futuro melhor para os bombeiros de Portugal.

Mas, esta fotografia tem outro valor histórico para os bombeiros da Régua. Ela capta ainda o Sr. Noel de Magalhães, a fotografar o momento histórico, um distinto director dos bombeiros da Régua, bisneto do 1º Comandante Manuel Maria de Magalhães, nascido em S. João da Pesqueira, em 12 de Outubro de 1921 que, pelo seu trabalho à causa do voluntariado, ao longo de várias décadas, foi reconhecido com o Crachá de Ouro, atribuído pela da Liga dos Bombeiros Portugueses, sob posposta da actual Direcção. Noel de Magalhães deixa o seu nome ligado aos bombeiros da Régua e a mais “obras de bem-fazer” como a Santa Casa da Misericórdia. O seu nome fica ligado à arte. Como fotografo amador de grande qualidade ele lega-nos algumas das melhores imagens do nosso Douro, num estilo cheio de “pureza e beleza da genuidade humana…sobretudo quando acontece o mistério da fé duriense, ou a transformação do suor em vinho, entre sorrisos dos rapazes e das mulheres, colhendo a novidade, que misturada com a alegria escorreu pelas pernas dos homens, em cada lagarada”.
Conta 88 anos e tem uma vida normal. Tivemos a sorte de o conhecer e o prazer de partilhar a sua amizade e aprender com os seus conselhos. As suas memórias ajudam-nos a reconstituir uma importante parte do passado dos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Julho de 2009, José Alfredo Almeida. Atualizado em Outubro de 2010.
















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