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ar) As sirenes dos carros de fogo dos bombeiros da Régua que invadiram a Rua João de Lemos, pelas 12. 40 Horas, no dia 21 de Junho de 1995, anunciavam o desaparecimento de um antigo estabelecimento do comércio tradicional, A Inovadora, mais conhecida por Casa Fortunatos, por ser esse o nome dos seus conceituados donos.
Este incêndio teve início no escritório do Grémio dos Vitivinicultores do Douro, instalado no 1.º andar do prédio, depois de saírem todos os funcionários para o almoço. As portas da casa A Inovadora também tinham encerrado. Quando deram o alerta para os bombeiros, o fogo tinha-se propagado rapidamente pelos soalhos de madeira e forros do telhado. Os bombeiros comandados pelo 2º Comandante Manuel Gouveia rapidamente chegaram, descendo a Rua Serpa Pinto, com dois carros de combate carregados de água - o Mercedes Baribbi - que usaram com as agulhetas no ataque ao fogo, enquanto não ligavam as mangueiras de alta e baixa pressão às bocas da rede pública. Os bombeiros recorreram aos aparelhos respiratórios para entrar nas instalações, só que era impossível a circunscrever o fogo mas, algumas horas depois, tinham o fogo dominado. Durante a tarde, o fogo reacendeu-se e o velho prédio de finais do século XIX acabou todo em ruínas.
Os prejuízos pela perda do edifico, do seu recheio e das mercadorias do estabelecimento foram contabilizados como elevados pelos seus proprietários. Comentavam que o valor do seguro não dava para indemnizar todos os danos que foram causados, como consta no relatório de ocorrência, por um curto-circuito nas instalações eléctricas no escritório do Grémio.
Era, assim, o fim da famosa A Inovadora que se encontrava de portas abertas no comércio reguense, desde 1934. O Cimo da Régua, como foi sempre conhecido o centro urbano, perdia uma casa comercial das mais antigas no ramo das fazendas, tecidos, roupas de homem, senhora, crianças e outras miudezas. Perdia-se um estabelecimento apreciado pela clientela, que marcava a diferença pelo seu grande balcão em madeira, os graciosos armários onde se expunham as novidades, os velhos metros de medir os tecidos, o atendimento familiar dos seus caixeiros, a salvação do “ bom dia minha senhora”, à mistura com os desabafos pessoais, a presença das figuras aprumadas e cavalheirescas do velho Sr. Antoninho Fortunato e do sobrinho Manuel David. Eram, os velhos tempos dos comerciantes reguenses que tinham como melhor estratégia de marketing para vender, o sorriso franco na cara.
A Casa dos Fortunatos – A Inovadora que nunca se impusera como nome comercial conhecido - fechava para sempre as portas à sua clientela. A rua ficava mais triste e sombria. O comércio local continuava a empobrecer. E, as restantes antigas casas comerciais da rua - como a do Hipólito, dos Pombinhos, da Fortuna, do Borrajo e a mercearia do Zé Pinto e, outras já desaparecidas, como a Formosura Reguense, do Valente Velho - que tinham feito da Régua uma terra de prósperos negócios, sentiam as primeiras dificuldades com o aparecimento de uma nova concorrência comercial. Os anos em que se distribuía mais beneficio e a produção do vinho se vendia a bons preços escasseavam. Com menos rendimentos, as pessoas não gastavam tanto dinheiro no comércio local, o que se reflectia nas vendas, ao apresentarem piores lucros. As oportunidades dos comerciantes fazerem grandes fortunas já não eram como no antigamente. Por isso, nos nossos dias, o negócio dos Fortunatos teria mais dificuldades de resistir ao comércio que se passou a fazer na Régua. A clientela mudou os seus hábitos de compras. Surgiram, como ia acontecendo noutros lugares, as grandes superfícies comerciais, como o Pingo Doce, o Lidl, o Intermarché, o Dia e inúmeras lojas de chineses, para quem o rosto das pessoas nada importa ou significa.
As marcas deste incêndio são visíveis na cidade, passados que são 14 anos da tragédia. O edifício mantém-se em ruínas para tristeza dos que passam nesta rua. As velhas paredes de xisto resistem ao passar dos anos. Na padieira da porta principal, o anúncio da casa permanece intacto, talvez que à espera que um milagre a faça ressurgir das cinzas.
Este incêndio fez-nos reviver as memórias dos tempos que os bombeiros da Régua eram chamados para os incêndios pelas diferentes badaladas do sino da Igreja do Cruzeiro. Como o assunto é desconhecido, recordamos a crónica de Joaquim Pires (pseudónimo do escritor reguense Dr. João de Araújo Correia), publicada no “O Arrais”, em 6 de Março de 1980, que nos fala de uma curiosa lista de “Sinais dos Incêndios”, usada para dar a saber aos bombeiros onde havia o fogo:
“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os sinais rezam como Signaes.
Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…
Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.
No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.
Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?
Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.
Como de facto. A tabela rezava assim:
4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
9 badaladas – Fora de Vila.
Para parar - 5 badaladas.
Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas. É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga”.
Esse tempo da Régua antiga, dos nossos bisavôs, que o escritor nos evoca já passou. Comove-nos ao falar de algumas ruas velhas e, faz-nos acreditar, que não se pode compreender o presente sem se conhecer o nosso passado. Os bombeiros da Régua modernizaram os seus alarmes de aviso para os incêndios. Os fogos exigem mais perícia e rápida prontidão. Como sinal de incêndio ainda usam o som estridente da sirene instalada no seu Quartel Delfim Ferreira. Mas, muitas vezes, recorrem ao aviso por meio de mensagens escritas difundidas pelo telemóvel que possui cada bombeiro. A cidade deixou de saber, assim, quando há um fogo. Se não fossem ainda os fumos e as chamas mais activas, as pessoas desconheciam onde fogo deixa os seus rastos de tragédia.
O último grande incêndio na Régua deu-se num outro velho prédio da cidade, situado no Largo do Cruzeiro, numa noite de Dezembro de 2008. Houve pessoas que só souberam dele pela manhã quando se sentia no ar um forte cheiro a queimado e sobravam as paredes em derrocada. Foi doloroso olhar aquele cenário de destruição que tinha atingido, no seu rés-do-chão, um requintado salão de chá da cidade, a Flor do Adro, um inesquecível espaço de bem-estar e de convívio social, muito frequentado pelas últimas gerações de reguenses.
Não resisto em relembrar as memórias de alguém que, como nós, frequentou esse lugar ao revelar com emoção um sentimento geral: “sempre que lá passarmos, vamos recordar aquele muro cheio de gente, de copo na mão, de sorriso nos lábios, onde se falava de tudo. Podem fazer parecido, igual... jamais. Que dias e noites ali passamos. Dias felizes e noites fantásticas. Nunca esquecerei esses momentos. Nunca repetirei essas alegrias e vivências. Agora, façam o que quiserem daquelas cinzas. Está lá a história de muita gente. E gente boa”.
A casa A Inovadora e o salão de chá A Flor do Adro já não existem. Os bombeiros não conseguiram salva-las da morte nas chamas do fogo. Mas pouco importam que não existam. Aqueles lugares fizeram as nossas vivências citadinas mais felizes. Ficam para sempre vivas enquanto existirem nas memórias das pessoas que escolheram a beleza da cidade da Régua para viverem.
Mas, os sinais de incêndio deixam-nos uma lição: a cidade precisa de ter o seu centro urbano tratado e urgentemente reabilitado. - Peso da Régua, Agosto de 2009, José Alfredo Almeida.
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