À memoria de António Rafael de
Magalhães
Quando havia a tradição do teatro
amador alguns dos principais espectáculos fizeram-se no Teatro dos Bombeiros da
Régua.
O Teatro dos Bombeiros pouco tinha
como sala de espectáculos. Por assim dizer, não era mais que uma improvisada sala
do rés-do-chão do quartel, hoje baptizado com o nome do benemérito Delfim Ferreira,
situado na Avenida Antão de Carvalho que, por volta de 1950, não passava ainda de
uma modesta construção em estado muito inacabado.
As pessoas na Régua sempre tiveram uma
devoção pelo teatro. Os antigos apreciavam-no num salão que ficava na Rua 1º. de
Dezembro, mas umas das maiores cheias do rio Douro destruiu-o e acabou com o
culto das artes cénicas e, durante muito anos, a Régua não teve mais nenhuma sala. Depois, surgiu o Salão Recreativo,
ao cimo da antiga Rua das Vareiras, que depois de muitos sucessos, foi
abandonada e esquecida lentamente como sala digna e respeitável de espectáculos
culturais. Quem sabe, diz que aí se fizeram exibições notáveis de peças de teatro
e representaram actores com nome consagrado a nível nacional.
Hoje as coisas não são assim. A
cidade não tem sequer uma casa para a reapresentação teatral. Os actores profissionais
deixaram de aparecer nos palcos da Régua. Os actores amadores perderam o gosto pela
figuração. O teatro deixou de fazer parte da vida cultural da cidade. Restam
para estudo, as memórias desse antigo teatro. Algumas encontram-se historiadas nas
crónicas de João de Araújo Correia, publicadas nos seus livros e, algumas,
pelos antigos jornais.
Mas, há mais memórias do teatro amador
que se fez na Régua para serem contadas. Por exemplo, está por narrar o sucesso
que fizeram as sucessivas representações da peça “O Milagre do Cruzeiro”, opereta
de quatro actos e um quadro, com letra e música da autoria de António Rafael de
Magalhães.
A sua primeira representação desta
opereta aconteceu no dia 18 de Outubro de 1950, no palco do Teatro dos
Bombeiros da Régua. Embora fosse anunciada para ser levada à cena uma semana
antes dessa data, na verdade não chegou a acontecer por ter adoecido um dos
actores. Na sua primeira representação, a opereta obteve um extraordinário
êxito, o que obrigou a fazerem sete representações consecutivas e, a última,
teve lugar no palco do Cine-Teatro Avenida. Chegou também a ser representada no
Teatro do Casino Afifense, em Tabuaço no Teatro Luís de Freitas e em Favaios no
Teatro António Augusto Assunção, sempre com as casas cheias de espectadores e aplausos
merecidos para quem a escreveu e a representou.
A opereta foi escrita para satisfazer
um pedido de um grupo de jovens que tocavam na “Orquestra Reguense” dirigida
pelo professor José Armindo Ribeiro. Pretendiam representar uma peça de teatro
inédita, para com o dinheiro das receitas do espectáculo comprarem novos
instrumentos musicais. O autor aceitou o pedido e, em contrapartida, exigiu que
uma parte daquelas receitas deveria ser em benefício de uma instituição
humanitária carenciada, os Bombeiros Voluntários.
O tema do enredo dessa opereta é
simples de contar. Para quem não o conhece faz-se o seu resumo para compreender
o motivou tanto sucesso. Segundo o seu autor, baseava-se na vida da aldeia.
Como figura dominante da acção está uma menina órfã, a bondosa Joaninha,
recolhida e amparada por uma virtuosa madrinha, a Senhora Morgada, que sendo
sensível à miséria e dor alheias, recebe a estima de toda a gente da aldeia,
muito especialmente dos pobres que visitita com frequência para lhes levar o
seu óbulo acompanhado de lenitivas palavras. A paixão que nasce num encontro
com o mestre-escola Fernando, vai prendê-los nas teias do mais puro amor. Outra
personagem, o Álvaro, filho do fidalgo dos Cabris, moço alentado da aldeia,
lembrou-se de dirigir olhares pecaminosos e palavras intencionais à Joaninha,
numa das visitas de devoção ao Alto do Cruzeiro que o maldoso e antipático João
Ferreiro aproveitou para os seus turvos intentos, disparando um tiro de morte
sobre Álvaro, de forma a que a justiça terrena culpasse com causador do
homicídio, o apaixonado de Joaninha. A partir desse momento, esta tragédia
despedaça o coração de Joaninha que sofre de luto, dor e desolação. Dirige-se
ao Alto do Cruzeiro a implorar protecção do Senhor que sempre a tem ouvido…mas
em vez de suplicar exige de Deus, impõe em seu favor. Já resignada aceita o
sofrimento e confessa-se pecadora e pede ao Senhor a sua morte. Ao cair
inanimada aparecem lá do céu os Anjos que levantam o seu corpo débil e
trazem-lhe um clarão de esperança que dissipa o negrume de tamanha
infelicidade. O crime é desvendado, e renasce um amor eterno.
Foi este o milagre…!!!
É um retrato de uma época e de um
país rural que valorizava os valores de Deus, Pátria e Família, vulgarizados
como os pilares de uma sociedade em tornou do qual se movia o regime político do
Governo de Salazar.
No livrinho de apresentação, o autor
da opereta apresentava-a com um juízo mais modesto e de recorte poético. Expressava
que se inspirou num cenário de uma paisagem primaveril campestre de uma aldeia
rural, assim descrita: “já com prados
verdejantes e enfeitados de boninas, malmequeres, e papoilas. As searas
prometendo bom ano de pão! Sentia-se a frescura que a viração espalhava o aroma
agreste das relvas e o perfume das flores...; aqui um regato de água cantante;
além um rebanho dilacerando as ervas tenras e frescas; acolá, no cimo do monte
dominando a brancura duma capelinha realçada por um sol rutilante e creador! De
vez em quando uma brisa ténue fazia murmurar a folhagem do arvoredo e aves,
chilreando, davam largas ao seu contentamento! Mas era preciso começar e por
isso curvei-me para esta mansão florida.(…). O resto, aquilo que não podia
abarcar com as mãos, trouxe-o nos olhos e ouvidos”.
A história dessa peça encantou a
sociedade reguense dos anos 50. Outros tempos…! Quem a conheceu e a viu
representar compreende que hoje ela não se adapta as realidades sociais e às vivências
humanas do nosso tempo. Já não há quem se emocione com uma história assente nos
valores morais e na beleza idílica das aldeias e muito menos são os que acreditam
na fé religiosa como recompensa pelos castigos terrenos e na celestina descida dos
Anjos para desfazer as injustiças humanas.
Vivemos em outros tempos e outros
valores. Apesar de tudo, “O Milagre do Cruzeiro” era o melhor do teatro de
amadores que parecer falta ao quotidiano de uma cidade que desperta para o
turismo e aos reguenses que querem fugir ao tédio e a rotinas da vida. A
opereta agradou mais tanto pela simplicidade da sua história como pela interpretação
dos actores amadores, alguns dos quais encarnam perfeitamente a sua personagem,
entre eles o Fernando Vasques de Carvalho, Maria Esmeralda de Almeida, Alzira
de Sousa, José Ferreira Gado, Maria Amélia Pinto Reinaldo Miranda, António
Teixeira e António Braz Magalhães e o Fernando Braz Magalhães. As músicas
originais sobressaíram e entraram com facilidade no ouvido, não fossem executadas
pela famosa - mas também já extinta - Orquestra Reguense. A “Marcha da Régua”,
uma das muitas músicas que se cantava na opereta, veio a tornar-se o hino da
cidade, tocado em festas e em representações oficiais. Os cenários vistosos e coloridos,
trabalhados pelo brio de um técnico profissional, do Teatro Sá da Bandeira, do
Porto, o credenciado Gaspar Leorne, ajudaram no sucesso e fizeram cativar o
público.
O velho Teatro dos Bombeiros da Régua
desapareceu e, no seu lugar, não há nada que o recorde. O teatro amador acabou
por desaparecer e não há pessoas com vontade de o voltar a representar. Assim,
o ditaram as novas modas culturais da sociedade reguense. Com poucas condições,
nesse tempo, o quartel foi o único espaço cultural que, na pequena vila da Régua,
aproximava as pessoas e lhes permitia os serões e convívios mais divertidos e
animados.
Desde então, a Régua muito mudou. Se
a missão principal dos bombeiros da Régua permanece igual há mais de um século,
o seu quartel uma verdadeira obra-prima da arquitectura, que agrada ao olhar mais
atento pela beleza de granito da sua imponente fachada principal, deixou de ser
o lugar privilegiado para se fazer teatro amador. Perdeu-se a benigna tradição de
naquele num palco improvisado se verem actuar os grandes actores amadores da
nossa terra.
- José Alfredo
Almeida*, Setembro de 2011.
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O velho Teatro dos Bombeiros da Régua
O Milagre do Cruzeiro
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 20 de Outubro de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Clique nas imagens acima para ampliar. Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2011. As fotos acima foram cedidas por Fernando Magalhães, filho do autor desta peça teatral.
- *O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.