Encontramos nesta velha fotografia do fotógrafo Noel de Magalhães figuras proeminentes da história da Régua, nos anos 30 e 40, que se destacaram pela sua intensa actividade cívica, cultural e humanitária. Nesta imagem, cruzamos o nosso olhar com o olhar de alguns dos melhores bombeiros: vemos os “patrões” Gastão Mirandela, António Guedes Castelo Branco, Álvaro Rodrigues da Silva e o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1949), o Comandante poeta.
Destaca-se de entre eles Camilo Guedes Castelo Branco (1868-1949) nascido e falecido na Régua. Este reguense, uma personalidade ímpar, destacou-se em vários domínios da sociedade. Na história, o seu nome ficou mais conhecido por ter exercido o cargo comandante dos bombeiros. Quem com ele conviveu, como Dr. Mário Bernardes Pereira, antigo presidente de direcção, dizia que a sua presença no quartel, situado então na Rua dos Camilos, criava uma atmosfera de respeito e afectividade. A sua dedicação ao voluntariado era de grande generosidade pelo que sua memória permanece viva. As novas gerações de bombeiros podem não ter saber tudo do seu percurso de vida e dos seus valores cívicos, mas já apreenderam que o seu mérito o eleva a categoria dos mais notáveis bombeiros da Associação. Não há ninguém que não deixe de sentir orgulho e respeito quando observa o seu retrato de comandante, garbosamente fardado, que figura numa das paredes do Museu.
Camilo Guedes Castelo Branco fez-se bombeiro aos 17 anos. Alistou-se no corpo activo em 1 de Maio 1889 e aí se manteve até 1949. Aprendeu com alguns dos notáveis bombeiros e fundadores da Associação e partilhou a amizade e muitas experiências com os comandantes os seus antecessores José Afonso de Oliveira Soares e Joaquim Sousa Pinto. Por vontade própria ficou a comandar os bombeiros até à sua morte. Tinha a provecta idade de 81 anos. O seu grande lema de socorro que ensinava aos seus bombeiros traduzia-se na divisa “Vida por Vida” que ele afirmava assim: “Para se salvar uma criatura de uma morte certa, todos temos a obrigação de sacrificar seja o que for, mesmo que sejamos nós próprios”.
Mas, a sua acção não se ficou apenas pela responsabilidade operacional dos seus bombeiros. Se a Associação não chegou a “morrer”, no início do século passado, deveu-se em muito à sua determinação. Para a manter viva e dinâmica trabalhou muito num momento em que atravessou uma grande crise. Durante os anos de 1910-1920, quando a Associação se encontrava sem meios económicos para manter abertas as portas do quartel, situado no Largo dos Aviadores, não descansou a mobilizou os bombeiros e a sociedade civil, para encontrar garantir a sua sobrevivência. A ideia de criar um grupo cénico composto por bombeiros para fazerem espectáculos de teatro deu resultados positivos. Com as receitas obtidas conseguiu angariar o dinheiro que necessitava e evitou que o Corpo de Bombeiros não fosse extinto e o seu pouco material que tinham devolvido à Câmara Municipal. Outra relevante acção que realizou como comandante foi a de ter montado no Asilo José Vasques Osório, em 1918, um hospital onde os bombeiros da Régua socorriam e prestavam cuidados de saúde aos doentes afectados pela gripe pneumónica.
A partir de certa altura, teve a ajuda dos seus filhos, a quem soube incutir a mesma paixão pelos bombeiros. O Jaime Guedes distinguiu-se como director, chegando a ser presidente da direcção e da assembleia-geral. Defendeu a construção de raiz de um quartel para os bombeiros, o que possível dar início quando fez parte de uma vereação da Câmara Municipal, em 1930, liderada pelo Dr. Mário Bernardes Pereira. O António Guedes sobressaiu como bombeiro, atingido o posto de “patrão”. Lourenço de Almeida Medeiros escolheu para seu 2º Comandante. Deixou o seu testemunho como bombeiro ao escrever as suas memórias que publicou no jornal “O ARRAIS”, evocando factos históricas esquecidos, relatos de incêndios urbanos e a acção de alguns homens coragem.
Mas, este homem distinguiu-se ainda como político, jornalista e escritor, mais dramaturgo e poeta. Como politico foi várias vezes o Administrador do Concelho, nomeado pelo partido republicano. Soube influenciar a vida cultural e política da sociedade do seu tempo pela defesa moderada dos ideais da república (aderiu com o Dr. Antão de Carvalho que foi primeiro presidente de câmara da Régua republicano e Ministro da Agricultura) e fez parte do movimento social de apoio aos ex-combatentes portugueses, sendo o presidente da Junta Patriótica do Norte.
Como dramaturgo, uma sua peça de teatro fez sucesso representada por um grupo de actores amadores. A opereta “As Andorinhas”, musicada por Almeida Saldanha, alcançou êxito onde foi levada a cena, desde o antigo Salão Recreativo, na Régua, até ao Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Apreciada pelos reguenses chegou a ser representada por três gerações: avós, pais e netos, “sempre com muito brio e entusiasmo, como se passassem uns aos outros um testemunho de ouro”.
Fez jornalismo numa época difícil, de tumultos, motins e muita agitação social na região duriense. Fundou e dirigiu os jornais “A Folha”, “O Dissidente” e “Cinco de Outubro”. Nas páginas dos dois últimos, os paladinos Douro escreverem artigos de opinião a reclamarem uma solução para os problemas dos viticultores durienses. Parece que os tempos de crise se repetem, os lavradores do Douro sofrem actualmente uma crise social idêntica. Há sinais de preocupação que no pensamento do escritor Miguel Torga mereceram esta profunda reflexão: “O Douro necessita de ser olhado pela nação como o seu Olimpo sagrado, o chão bendito que produz a única riqueza de somos senhores exclusivos: o Porto que o mundo assim conhece e saboreia, imita em todas as latitudes sem nunca o igualar. Mas esse carinho pátrio tem de começar pelo oficiante de mãos calosas que espreme os xistosos até os fazer ressumar. É ele, nunca presente nos salões dos congressos, nunca farto de banquetes oficiais, nunca tido nem achado nas reformas e nos decretos, que deve ser chamado à ribalta para expor as suas necessidades e formular as suas queixas. Para desdobrar diante dos olhos da justiça o sudário da sua crucificação. Porque se nas Sagradas Escrituras tudo começa pelo Verbo, no livro da pedra da nossa região bem amada a lição é outra. Aqui, no princípio era o homem: o homem duriense.”
Mas, na verdade, foi como poeta que mostrou o seu maior génio criativo. Deixou uma obra editada, o livro de poesia “Fraternalis Dolor”, um inédito com o título “Arias Sertejanas” e muita poesia dispersa em jornais. Abordou nos seus versos a figura dos soldados da paz e a beleza cénica região duriense. Na poesia “O bombeiro” evoca o seu lado anti-herói, onde há o dever de salvar das chamas do fogo uma criança. Numa outra, a “Marcha da Régua”, gravada na voz de Sandra Botelho, fala dos encantos da paisagem vinhateira da sua terra natal.
No livro “Lira Familiar” (de 1976), João de Araújo Correia inseriu uma poesia “Instantâneo VI”, de Camilo Guedes Castelo Branco, publicada no “Jornal da Régua, em 1937 e assinada com o pseudónimo de Gil Vaz, em que foca o autor do livro. Em nota final, desse livro, o escritor duriense acrescentou a seu respeito um insuspeito elogio: “Poeta lírico de altíssimo talento, pedem colectâneas, há muitos anos, os seus dispersos. Com eles se poderia formar um delicado ramo de flores”. Correspondeu-se também com o poeta Guerra Junqueiro que lhe dirigias as cartas chamando-o de “caro colega”.
Umas breves notas da sua biografia foram escritas por Manuel António, correspondente local do extinto jornal “O Comércio do Porto” que, por traduzirem a grandeza moral deste homem, se passam a citar: “Nasceu em Peso da Régua, numa casa do Adro do Cruzeiro, em 14 de Março de 1868. Desempenhou sempre as funções de notário – adjunto, sendo funcionário distinto e sabedor. Poeta, jornalista e escritor dramático, colaborou em todos os jornais que se publicaram nesta vila e em alguns diários de Lisboa e Porto. Em 1890 fundou na Régua, juntamente com o poeta Hamilton de Araújo, um semanário literário intitulado “A Folha”, que teve pouca duração. Mais tarde fundou “O Dissidente” e depois “O Cinco de Outubro”, de feição republicana moderada. Por duas vezes, e durante alguns anos, na vigência de ministérios de concentração desempenhou com muito brilho e a contento de todos, as funções de administrador do concelho tendo, com a sua política de apaziguamento, terminado com as violências políticas que por vezes aqui se praticavam. Criatura deveras bondosa e modesta, falava primorosamente e sempre de improviso. Alguns dos seus discursos constituíram verdadeiras jóias literárias. Publicou um livro de versos intitulado “Farternalis Dolor” e deixou escrito um outro livro denominado “Arias Sertanejas”, que não chegou a publicar. Escreveu centenas de poesias e sonetos em vários jornais do País, e todos esses versos dispersos, uma vez compilados, dariam uma obra valiosa. Autor de várias obras teatrais, expressamente escritas para o “seu teatro”, foi também autor da linda opereta “As Andorinhas”, com música do falecido e talentoso maestro lamecense Almeida Saldanha, cujo centenário a cidade de Lamego vai em breve comemorar. Esta peça teve muitas dezenas de representações, não só nesta vila como no Porto, Chaves, Lamego, etc., tendo-lhe a critica tecidos os maiores elogios. Bombeiro voluntário deste a idade dos 17 anos. E quando, há muitos anos já, a Associação esteve em riscos de soçobrar, por absoluta falta de recursos, organizou um corpo cénico com elementos da Corporação, o qual dava uma récita mensal e assim conseguiu manter a Corporação. Essas récitas efectuavam-se num armazém da Rua José Vasques Osório, onde hoje está instalado o Asilo e que foi devidamente adequado a casa de espectáculos. Sem isso, a velha e gloriosa Corporação teria deixado de existir. Mais tarde, e quando as finanças da Corporação já estavam nova e firmemente consolidadas, graças a essas récitas, por sua iniciativa distribuía a Corporação, no dia 28 de Novembro, dia do seu aniversário, um bodo a 50 pobres dos mais necessitados desta freguesia. Em 1918, quando da epidemia da pneumónica, por sua iniciativa e ainda com o produto desses espectáculos, foi montado no Asilo Vasques Osório um bem apetrechado hospital onde todos os doentes pobres atacados desse epidemia foram carinhosamente tratados. Possuía várias condecorações e faleceu com 81 anos de idade, em 25 de Agosto de 1949 ainda à frente do Comando da Corporação que tanto amou e tão bem soube servir.”
A AHV prestou-lhe uma sentida homenagem, em 2007. Uma nova ambulância de socorro, que ia ser posta a serviço da comunidade, foi baptizada com o seu nome. Na cerimónia estiveram presentes os seus descendentes para testemunharem este singelo reconhecimento de uma nova geração de homens. As palavras de agradecimento que proferiu a sua bisneta Maria Teresa Castelo Branco comoveram os presentes. Vale a pena recordar o que disse: “Estou certa de que gestos como estes, ao contribuírem para consolidar laços com o passado, avivam no presente a necessidade de seguir a lição dos que deram algo de si à nobre causa dos soldados da paz, tal como fez a seu tempo, o meu bisavô, Camilo. Num tempo em que a amnésia colectiva nos parece afastar das nossas raízes, esta homenagem, para além de ser uma honra para a família, é pelo simbolismo, a prova que a corporação que V. Exª dirige, soube resgatar do esquecimento o exemplo de uma vida de entrega a uma causa nobre. Agradeço, pois, comovida, esta oportunidade de trazer até nós e sobretudo aos meus filhos a figura do meu bisavô Camilo Guedes Castelo Branco”.
A história do Corpo de Bombeiros da Régua não se faz de só pequenas coisas. Ela faz-se da vida e da obra de grandes homens, como era o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco, que com o seu exemplo, permite ter muito orgulho no passado e olhar o futuro ainda com mais ambição para os bombeiros do actual século.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida. (Nota: Peso da Régua, 29 de Junho de 2010: Este texto constitui uma versão revista e ampliada da anterior aqui publicada.)
O Bombeiro
No silencio da noite, de repente,
Erguem-se a voz estrídula dos sinos
num longo baladar
E a distância brilhou, sinistramente,
Um clarão, que tingiu a luz do luar
de laivos purpurinos.
“Fogo! Fogo!”-alguém diz com aflição.
E logo a pobre gente do lugar,
toda cheia de espanto e de canseira,
Pôs-se a correr, gritando, em direcção
da medonha fogueira.
O incêndio crepitava
e, batido do vento, devorava
Uma pequena casa arruinada.
E, perto, uma mulher d`olhar aflito
erguia as mãos ao céu calmo e infinito
a chorar e a gemer desesperada.
Ali, em meio da fogueira, tinha
essa mulher um filho, a criancinha
mais bonita da velha povoação,
e o fogo, em seu horrível avançar,
iria dentro em breve transformar
o seu pequeno corpo num carvão.
Metia dó a pobre mãe! Mas como
Salvar-lhe o louro e cândido filhinho,
se a labareda e o fumo,
num espantoso e horrível torvelinho,
ameaçam devorar rapidamente
quem se abeirar dessa fornalha ingente?
Podes chorar, mulher! ninguém te acode.
Chora, que és mãe; mas vê que ninguém pode
esse anjinho das chamas libertar.
Olha: em meio da tétrica fogueira
anda a morte, feroz e traiçoeira,
a acenar, a acenar…
Mas nisto, junto ao prédio incendiado
surge um homem soberbo de valor.
A multidão ansiosa solta um brado
de espanto e terror.
Ele caminha sempre com firmeza
e a intrepidez estóica dos heróis;
escala a casa em chamas com presteza,
escala a casa em chamas…e depois…
depois desaparece.
E a pobre mãe aflita cai de bruços
A murmurar baixinho, ente soluços,
Uma prece…
Na multidão, silêncio. Só se ouvia
um secreto rumor, que parecia
o palpitar de muitos corações…
Senhor! És pai e cheio de bondade!
estende lá do azul da imensidade
O teu olhar repleto de perdões!
E eis que em meio trágico do braseiro
surge a figura altiva do bombeiro
Trazendo ao colo o pequeno ser.
Passou…desceu…e dentro em pouco, ansioso,
depositava o fardo precioso
no regaço da pálida mulher.
- Poesia inédita do Comandante dos B V Peso da Régua, Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1940.
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