“A Régua nunca avaliou o seu grande talento, embora o estremecesse carinhosamente”
Pina de Morais (Noticias do Douro, 1948)
Quando visitei, pela primeira vez, o Museu dos
Bombeiros da Régua surpreendeu-me ver exposto um retrato de Antão de Carvalho
na galeria dos sócios beneméritos. Confesso que desconhecia, por completo, que
tivesse qualquer afinidade pessoal ou institucional de relevância na história
da associação.
O que eu sabia da biografia do Dr. Antão Fernandes
de Carvalho em nada o relacionava com factos ou acontecimentos da história da
Corporação dos Bombeiros. Sabia que era natural de
Vila Seca de Poiares, onde nasceu em 1871 e que se tinha formado em Direito
pela Universidade de Coimbra. Proprietário rural e viticultor exercera com fama
a profissão de advogado
e desempenhara funções políticas relevantes,
entre as quais, as de Presidente da
Câmara do Peso da Régua, Deputado da Nação e Ministro da Agricultura.
Conhecia-lhe
referências da sua acção como paladino do Douro, o mais combativo, reivindicativo
e devotado defensor regional, e o fervor pelas ideias do regime republicano, o
qual que representou politicamente na Régua ainda no tempo da monarquia. Coubera-lhe
a missão de, no dia 10 de Outubro de 1910, em substituição do monárquico
presidente da câmara ler, no salão nobre dos Paços do Concelho, com a
assistência de muito povo, forças militares, autoridades civis e representantes
de associações locais – aqui, quase de certeza, estariam presentes os directores
da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários - o texto de proclamação da
República.
Com a
queda da monarquia, Antão de Carvalho assumiria a presidência da câmara da
Régua e, no cumprimento dessas suas funções, suspeitei eu que tivesse concedido
significativo auxílio e cooperação à Corporação de Bombeiros, fundada em 28 de
Novembro de 1880 e, agora, comandada por um intelectual de mérito, José Afonso
de Oliveira Soares. Embora distinguida por “Real Associação” pelo Rei D. Luís,
na instituição o espírito republicano sentia-se presente em muitos associados e
bombeiros que professavam os ideais do novo regime. Por certo, estes bombeiros
voluntários esperavam que Antão de Carvalho fomentasse mais apoio, já que careciam
de materiais para os fogos e de instalações apropriadas para a sua sede e o
quartel.
A ter
assim acontecido, o que eu não tinha a certeza, estava estabelecido o elo de
ligação de Antão de Carvalho e o Corpo de Bombeiros para que, mais tarde, fosse
distinguido o como Sócio Benemérito. O meu entendimento precisava de ser
confirmado com um testemunho credível, mas as pesquisas foram infrutíferas. Com
valor e interesse encontrava uma carta manuscrita pela D. Zélia Carvalho, sua
irmã, a agradecer a gratidão dos bombeiros pelas dávidas e, no Salão Nobre, estava
uma pintura do retrato do cunhado António Fernandes Carvalho.
De qualquer
forma, sentia-me orgulhoso por esta figura histórica de importância nacional,
dotado de valores e de humanismo, o activista militante na defesa de região
duriense, estar presente na história dos bombeiros. Sinceramente até deixei de
considerar importante saber qual terá sido o seu contributo para com os
bombeiros mas, para mim, estaria relacionado com a sua acção como presidente da
câmara, no período de 1915-1925, Julgava eu - e bem, afinal - que poderia ter
prestado à corporação uma valiosa colaboração institucional, assim garantindo
às populações a protecção e o socorro de bens e vidas.
Mas quando
eu menos esperava, ao consultar edições antigas do jornal Notícias do Douro, encontrei
a justificação para que aquele retrato de Antão de Carvalho estivesse guardado
no museu dos bombeiros. O essencial estava narrado numa notícia que dava o seu
falecimento, no dia 13 de Agosto de 1948. Assim, nestes termos simples: “...que à Presidência do snr. Dr. Antão
ficou devendo valiosos serviços, entre os quais, quais a instalação do seu
quartel da Rua dos Camilos.”
Foi nesse
quartel, uma velha casa sem condições, onde os carros e as ambulâncias mal
cabiam, que os bombeiros estiveram instalados, desde 1923 até 1954. Tiveram de
esperar muito tempo, nesse local, para abrirem as portas do novo quartel, uma
construção de raiz, projectada por arquitecto famoso, mas conseguiram realizar
o objectivo que ficará por concretizar nos mandatos de Antão de Carvalho na
presidência da Câmara.
Quando morreu
Antão de Carvalho, o Douro e a Régua ficaram de luto. As principais
instituições que ele estivera ligado, como a Câmara Municipal, a Casa do Douro
e o Grémio dos Vitinicultores, colocaram bandeira a meia haste. O mesmo fez a
Associação Humanitária em sinal de respeito pela perda do seu distinto Sócio
Benemérito. Os directores e um piquete de bombeiros fizeram-se representar nas
cerimónias fúnebres. Os bombeiros carregaram com a sua urna aos ombros até ao
pronto-socorro Buick que a transportou para Vila Seca de Poiares, onde o seu corpo
foi repousar, por alguns momentos, na velha casa de família, a Casa Amarela. Por
fim, sempre acompanhado pelos bombeiros, o cortejo retomou o caminho em
direcção do cemitério de Poiares e aí foi sepultado.
“O Dr. Antão de Carvalho ocupa um lugar primancial na galeria dos grandes homens de todos os tempos que o Douro tem tido”- Júlio Vasques (A Defesa do Douro,1930)
Antão de Carvalho não morreu, se pensarmos que ficou a
sua obra que construiu com empenho cívico, determinação, inteligência e muita
paixão a pensar no bem colectivo. Como o mais carismático e eminente dos
paladinos do Douro fez parte de elite social, económica, cultural e política que
dirigiu um movimento de defesa dos lavradores do Douro: a disciplina da
produção, o aumento dos preços e o escoamento do vinho do Porto. Ele foi líder
principal de uma reforma institucional do sector vitinícola duriense. Na sua
casa, no Largo Sacadura Cabral, nº61, na Régua, redigiu as bases e depois o
contra-projecto que criou na Régua, em 1932, uma organização associativa para
representar interesses da lavoura, a Federação Sindical dos Vitinicultores do
Douro - Casa do Douro.
Os
amigos chamaram-lhe o “João das Regras” do Douro e que representava a “Voz do
Douro”.Pina de Morais, escritor nascido em Valdigem seu contemporâneo, com quem
conviveu na defesa da mesma causa, definiu-o como um “Jurista Romântico”.
Escreveu numa brilhante crónica, depois da sua morte, a lamentar a sua perda
irreparável para o Douro, onde sintetizou a razão do qualificativo: “Jurista romântico escrevi eu. Era de
facto um jurista romântico, pois aliava a estrutura rígida da lei, o romantismo
dos homens de 1820 e o seu sonho infinito que nimba as almas que se dão
inteiramente ao torrão onde nasceram.”
O
escritor João de Araújo Correia traçou-lhe o génio nestas palavras: “Pertencia a uma raça hoje extinta à
superfície da terra portuguesa. Era orador. Como advogado, tinha desenvolvido o
verbo congenial na prática forense. Fora da teia eleva-o à sublimidade num
comício em prol do Douro. Tão orador era, que não sabia escrever. Só sabia
ditar.” (..) Antão de Carvalho, homem de palavra tão fácil, que subia com ela
ao céu da fantasia numa tertúlia de gente positiva, manteve-se no foro e na
política sem o mínimo desvio. Foi
ministro sem deixar de ser jurisconsulto. Se se desgarrava, durante uma
conversa, nunca se desgarrou a inquirir testemunhas nem a rezar o credo democrático”
O seu
talento e a sua paixão pelo Douro mereceram do autor do romance Sangue Plebeu,
onde evoca o motim de 1915, em Lamego, esta nota de apreciação: “Teria uma biografia brilhante,
excepcional, se tivesse ficado nos grandes meios ao serviço do seu país. Tanto
melhor para o Douro, porque este não teve nunca, que eu saiba, quem puzesse
tanto coração, quem se identificasse e vibrasse com as suas alegrias e sofresse
com as suas dores…”
A paixão
pelo Douro e à sua terra natal, à Régua foi o estado de alma permanente de
Antão de Carvalho que o próprio exarou no seu testamento público: “Coerente com os princípios morais, sociais
e políticos que dominaram a minha agitada vida e pelos quais indefectivelmente
lutei, afirmo, neste solene momento, a minha concordância com a moral cristã na
República e o meu anseio de que esta se adapte ao imperativo do progresso, em
marcha para uma mais perfeita e justa organização social. No isolamento em que
actualmente vivo, tenho sempre presentes no espírito e no coração esta sagrada
Região Duriense e a linda terra da Régua, bem como acima de tudo a modesta
aldeia em que nasci, dando por bem empregados o trabalho e sacrifícios de toda
a ordem que durante anos lhe consagrei.
O meu funeral
será feito à vontade do meu testamenteiro, dos adiante nomeados, que aceitar
desempenhar o respectivo cargo. Desejo no entanto, que ele seja modesto e
simples, espelho do que fui em vida, sem convites ou sugestões e que o meu
corpo vá repousar no jazigo de família, ereto no cemitério de Poiares, deste
concelho, junto de meus pais e irmãos, como tal considerando o meu bom cunhado
António, passando se assim entenderem, na ridente aldeia de Vila Seca, onde
nasci, estando ou não depositado algum tempo na velha “Casa Amarela”, relíquia
familiar, ou na formosa capelinha de que minha irmã Zélia é desvelada
protectora.
Será a ronda do
morto sem descanso como na atormentada vida se viu.”
Razão terá,
certamente, João de Araújo Correia, que no artigo “Dois Paladinos” (in Comércio
de Porto, de 30-10-65), faz uma enérgica apologia aos históricos defensores da
região: “ O Douro, sempre em crise
latente, podia contar com os seus paladinos. Confiava neles, secundando-os com
os seus vivos e assinaturas. Hoje, se não tiver alguém que o alumie, não sabe
donde lhe vem o mal nem de que lado lhe virá o remédio”. Como é verdade
quando diz que o Douro de hoje precisa de o voltar a escutar sobre as eterna
questão duriense: “Sempre que o Douro
sofre, com vinhos por vender ou à espera de pagamento, vou ao cemitério do Peso
entrevistar Júlio Vasques. Subo ao cemitério de Poiares para conversar como Dr.
Antão de Carvalho. Fora de fantasia, é capaz de me apontar o bom caminho…”.
Se hoje
a sociedade esquece ou ignora os seus melhores, aquele retrato de Antão de
Carvalho evoca as memórias de um homem singular que deixou marcas que perduram
no nosso tempo. Agora que os lavradores do Douro vivem outra grave crise e que
a Casa do Douro por ele idealizada, se encontra quase à beira do fim, percebemos
quanto importante e necessário foi este homem para a região duriense, para
todos nós que dependemos da economia do vinho.
Aquele seu
retrato está no lugar certo, no lugar daqueles se entregam ao bem, num exemplo
de dedicação, altruísmo e generosidade incessante para com o seu semelhante,
valores e princípios que Antão de Carvalho defendeu apaixonadamente na sua
passagem muito intensa pela vida Significa também dos bombeiros gratidão a um
benemérito que em muitos pequenos gestos, tão pequenos que não ficaram registados em nenhum lugar, a não
ser numa página de um jornal, mas que tanto significaram para os bombeiros.
Quem sabe, se não foi graças, a essa velha casa adaptada a Quartel que lhes
permitiu o sonho de construírem um quartel, nesses difíceis anos 30 no Douro e
no país, que é o mais belo edifício da cidade do Peso da Régua.
Se os
bombeiros devem muito a Antão de Carvalho, a Régua e região duriense devem-lhe
muito mais – ele que foi o maior defensor do Douro e do Vinho do Porto.
- *José Alfredo Almeida, Março de 2012
Parte 1
Parte 2
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.
Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado nas edições do semanário regional "O Arrais" de 22 e 29 de Março de 2012. Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado nas edições do semanário regional "O Arrais" de 22 e 29 de Março de 2012. Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
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