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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O Zé Pinto institucional - 2

Adérito Rodrigues

Nas linhas anteriormente expostas procurámos mostrar a dedicação de um Homem que se devotou aos outros (não se pretendeu dizer que sr. Zé Pinto fosse o maior de todos, tão somente que foi um Grande Homem), a exemplo de muitos mais, que se dedicaram e continuam a dedicar-se à causa voluntária, ajudando o seu semelhante no dia-a-dia, desde que sejam solicitados para o efeito.

Será de introduzir nesta crónica que a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, a par com a Associação dos Amigos do Hospital D. Luiz I, é uma Associação referenciada neste Ano Internacional do Voluntariado, sito na cidade do Peso da Régua, que deverá despertar as consciências para a disponibilidade e a cooperação com o seu semelhante.

Essas pessoas que labutaram em proveito direto dos seus concidadãos, foram uns genuínos Voluntários - na verdadeira aceção da palavra - marcaram-nos com seus feitos, que conservamos na memória e que nos levam a suspirar por um passado que ocorreu e que, nos dias de hoje, nem sempre se cumprem da forma que julgamos a mais adequada.

Dostoievski, no seu livro “Os Irmãos Karamazov”, diz-nos que “…não existe nada mais elevado, mais forte, são e bom para a vida do futuro que alguma boa recordação...”. É salutar não esquecermos as ligações que tivemos, não relegarmos para um plano inferior as boas lembranças que se fixaram na nossa memória, as recordações dos bons afetos. Jamais a ausência de alguém nos pode forçar a um arrasador abandono, a um esquecimento interior, a uma rejeição das emoções que nos humanizaram.

O quarteleiro Zé Pinto esteve sempre disponível para todo e qualquer ser - fosse o mais rico ou o mais necessitado -, sempre solidário e sempre generoso, mas a vida não lhe foi condescendente, ao inverter-lhe a época, pois o 25 de Abril não o bafejou, com o virar de mais uma página da nossa história, já que não lhe proporcionou os aumentos que os do ativo tiveram, vendo-se obrigado a viver com a reforma reduzida que lhe pagavam.

A vida desse nosso conterrâneo teve aspetos bem representativos e gratificantes, apesar de, por vezes, o estado de saturação o atingir, se considerarmos que as horas de trabalho não eram contabilizadas como são hoje, já que ele tinha que estar disponível, desde que alguém o chamasse.

Nas várias conversas que fomos mantendo na década de convívio que tivemos, o sr. Zé Pinto chegou a confidenciar-me que, muitas vezes, se sentia extremamente cansado com tanta correria, pois as viagens à Capital do Norte não eram nada do que são hoje, atendendo ao imenso tempo que se demorava na viagem e à constante rotatividade - ida e volta. Quem, como ele, percorreu os velhos caminhos que nos levavam à cidade do Porto, tem plena certeza de que essas viagens fatigavam qualquer pessoa, mesmo que fosse um “bom acelera”. Era um tempo longo que se perdia na estrada, com curvas e contra-curvas e o inconveniente de termos que atravessar lugarejos, aldeias ou cidades.

Sei, também, que o nosso Amigo Zé Pinto, para colmatar essa situação de cansaço, diversas vezes, levava o filho mais novo, o Quim, para o substituir na condução da ambulância, no regresso, a fim de poder descansar um pouco durante a viagem.

Tempos impensáveis e não aplicáveis nos dias de hoje, onde impera um horário de trabalho e as condições são muitíssimo mais benévolas do que as de outrora.

Nos quarenta anos de trabalho nos Bombeiros teve noites que ainda vinha a caminho e já estava o telefone a tocar, para que fosse outra vez ao Porto e quem atendia o telefone era a Dª Antónia, pela ausência do quarteleiro. Outras vezes estava ele a acabar de se deitar e tocava o telefone para ir levar um doente. Foi uma vida de muito sacrifício e em que a Dª Antónia também cooperou nessa azáfama.

A canseira que o casal foi tendo pelos tempos fora, não se ficou só por aqui, também tinham um orgulho enorme no Quartel dos Bombeiros e tudo faziam para que o aspeto fosse o mais deslumbrante e apresentável possível. Era comum as pessoas quererem visitar as instalações e as viaturas nas Festas do Socorro e o casal Melo tinha orgulho em mostrar o quartel, pelo que “limpavam os capacetes, ficava tudo a reluzir, todos limpinhos, e a minha sogra andava de joelhos a encerar a casa toda. As pessoas ficavam encantadas com a limpeza do quartel. O meu sogro tinha muita vaidade nisso”.

No dia 16 de Agosto, dia grande das Festas em honra da Nª Srª do Socorro, aquando do regresso da procissão e “a Nª. Srª. vinha para cima, da Capela do Asilo das Crianças para o Peso, só quando saía o último bombeiro é que ele ia comer, apesar dos apelos constantes da mulher para ir comer”.

Se o casal tinha vaidade em ter as instalações devidamente limpas e arrumadas, também o sr. Zé Pinto não deixava de ter um enorme orgulho na limpeza das viaturas, poderemos dizer até que, talvez, uma certa obsessão, pois, no dizer da nora, era de um cuidado extremo. Eis as palavras que o definem:

O meu sogro tinha aquela coisa com ele, não confiava a maca a ninguém. Ele é que a conduzia e não metia um carro dentro do quartel sem ser lavado. Sempre tudo lavado! Não descansava! Estava a gente, muitas vezes, à espera para comer e ele, sem lavar a ambulância, não descansava. Tinha uma paixão muito grande pela Associação, pelos Bombeiros, pelas viaturas e gostava de ter tudo arrumadinho, tudo no respetivo lugar.

A vida desgastante que o quarteleiro viveu, também lhe apresentou alguns casos engraçados e que ele próprio lembrava e comentava, achando-lhes alguma graça.

Naquele tempo, os bombeiros faziam o transporte dos doentes na ambulância, mas também dos mortos, quando os enfermos se finavam nos hospitais. Uma das situações que o sr. Zé Pinto vivenciou tem a ver com uma viagem a Valdigem, a fim de levar um doente falecido. A viúva (o homem já estava morto), uma senhora do povo, quase ao chegar à localidade, pediu-lhe:

“- Óh senhor, toque muito, toque muito, para saberem que vai aqui o meu marido”.

Pretendia a pobre viúva que o bombeiro tocasse a sirene da ambulância, mas qual a intenção concreta, ninguém o saberá, a não ser que queria que soubessem que o morto ia ali. Acho a situação um pouco macabra...

O Sr. Zé Pinto explicou aos seus familiares a situação que viveu e dizia que dentro da infelicidade a que foi chamado, levar um morto, dava-lhe agora o riso pela situação que viveu. A senhora queria que soubessem que ia ali o marido morto!

Ainda no cumprimento da sua missão, referirei um outro episódio em que o sr. Zé Pinto se viu envolvido no cumprimento do seu dever. Ao transportar uma senhora grávida para o hospital, a paciente apresentou sinais de ter que dar à luz num momento inesperado. Como a senhora manifestava todos os sinais de ter começado em trabalho de parto, não havia outra solução que não a de o parto ser na ambulância. O bebé acabou por nascer dentro da ambulância e foi o “nosso” quarteleiro quem assistiu a senhora, mais um bombeiro que ia com ele. Após a situação ter ficado resolvida, quiseram os pais da criança que o Bombeiro Zé Pinto fosse o padrinho da criança.

Aproveito para narrar um relato ocorrido no edifício dos Bombeiros. Havia um senhor, de nome Viana, um homem engraçado e divertido, que ia trabalhar/ajudar os Bombeiros. Ele não era bombeiro, mas ia auxiliar na limpeza dos capacetes e das botas, num lugarzinho lá atrás, onde arranjavam tudo.

Há, contudo, uma história com esse tal Viana, deveras surpreendente, que a Dª Glória Vieira (nora do sr. Zé Pinto) me contou.

- “Um dia deram um peru ao meu sogro e ele chamou o Viana. Deu-lhe uma garrafa com bagaço e pediu-lhe que embebedasse o peru com o bagaço, para depois se matar. Aquilo é que foi. Bebeu ele a aguardente e cortou a cabeça ao bicho com o machado dum bombeiro. Em vez de embebedar o peru, embebedou-se ele e o peru nunca mais morria”.

- Ah desgraçado, o que tu fizeste” – disse-lhe o quarteleiro.

Como se pode ver por estas pequenas narrativas a vida de bombeiro não era só sacrifício, também tinha algumas cenas engraçadas, que acabavam por amenizar a árdua tarefa que lhes era investida.

Será de referir, já que se fala em comida, que a Dª Antónia era uma mestra na cozinha e, segundo a opinião de alguns, esta senhora fazia uns petiscos muito afamados, assim se pronunciam alguns, que na altura eram frequentadores do bar dos Bombeiros.

Fecho esta série de crónicas, onde foi referido o quarteleiro Zé Pinto, mencionando a atribuição da medalha de mérito e sacrifício (foto 1 ), no ano de 1970, que a Direção de então lhe atribuíra, quando ele já tinha mais de trinta anos dedicados à causa do voluntariado da Associação Humanitária dos Bombeiros desta cidade. Os responsáveis de então entenderam conceder-lhe essa condecoração pelos feitos realizados, e quem lhe fez a imposição da medalha foi o também saudoso Joaquim Lopes, pai do Ângelo Maria, meu amigo e colega no Liceu de Lamego (foto 2).

Procurei relembrar a vida dum Homem, que, muito embora tivesse ficado no anonimato, mostrou-nos uma faceta de dignidade e competência. Que Deus o mantenha na Sua Paz.


O ZÉ PINTO institucional - 2
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 22 de Setembro de 2011
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Imagens e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão. Clique nas imagens acima para ampliar.

O Zé Pinto institucional

Adérito Rodrigues

Neste terceiro apontamento sobre a vida do sr. Zé Pinto irei abordar aspetos que se prendem com a vida institucional deste Bombeiro,  o qual entrou para a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua por meados dos anos 30, do século passado, com vinte e poucos anos e, tal como já dissera anteriormente, aí se manteve quase quatro décadas, tendo saído por motivos de força maior, ou seja, por razões de saúde.

Com a elaboração desta crónica pretendia-se, também, pesquisar algo sobre o antigo quartel ou recolher algumas fotos do quarteleiro que a família pudesse ter, o que, infelizmente, não veio a concretizar-se, já que as familiares com quem falei não se lembram, nem têm conhecimento desse edifício, como também não possuem fotos do quartel velho ou do sr. Zé Pinto ainda nele.

Seria mais um documento valioso ou registo histórico para o património dos Bombeiros do Peso da Régua, mas, perante a resposta de uma familiar . . .

“- Não me lembro do quartel velho, desse quartel só sei o que o meu sogro e a minha sogra disseram, já não sou desse tempo”... nada se pode fazer.

Já numa publicação do Arquivo dos Bombeiros, que saiu no Jornal “Arrais”, em 12 de Fevereiro de 2009, se pode ver uma referência ao homem em causa, sendo documentado o artigo com uma foto - “onde ao centro se destaca um dos nossos grandes quarteleiros, o conhecido e saudoso Zé Pinto...” -, aquando da cheia de 1962, a qual incomodou as gentes da então Vila da Régua, já que foi a terceira maior que o Rio Douro teve. Lá estava o quarteleiro com o seu boné (julgo que será quico) e de galochas, a ajudar na recuperação dos haveres das pessoas, conjuntamente com outros bombeiros.

Nesta situação, como em muitas outras, que não faltaram, o sr. Zé Pinto cumpriu o lema “Vida por Vida”, que é o espírito mobilizador duma Associação Humanitária de Bombeiros.

Eram voluntários que se dedicavam de alma e coração à causa nobre de auxiliar o seu próximo, gastando horas e dias em prol duma comunidade necessitada.

Como se sentiriam os bombeiros perante um drama daqueles, quando todas as pessoas eram sobejamente conhecidas?

Muitas das casas à beira-rio eram da gente mais pobre e eram casas fracas, feitas só de tábuas ou, então, de tabique, onde imperava a pobreza, para não dizermos a miséria, e os parcos haveres que possuíam, lá se iam na corrente ou ficavam debaixo de água.

Foi assustador e metia medo tal grandeza de água, pelas correntes que o rio fazia, mesmo encostado às casas, e foi, sem dúvida alguma, uma desgraça que aconteceu às gentes da Régua, que, felizmente, não teve repetição comparável até aos dias de hoje. A situação posterior mais problemática de cheia do Douro foi em fevereiro de 1979 e o rio ficou-se pela Rua João Franco, pois só inundou o rés-do-chão, quase chegando ao 1º andar.

Uma situação inimaginável para os dias de hoje, a vivida nesse ano de 1962, como também uma realidade inatingível para alguns dos mais novos.

Não havia os atuais recursos técnicos, nem as equipas da Proteção Civil ou os militares dos quartéis circunvizinhos, nem as barragens para conter algum do ímpeto das águas do rio, nem os meios de comunicação facilitadores da nossa vida moderna.
A Dª Antónia foi, sem dúvida, uma vez mais, o braço direito do marido. Para corroborar esta tese, e para se comprovar a colaboração dessa senhora, passo a narrar um episódio supremo, de profundo altruísmo, aquando da cheia de 1962 - “era o fim do mundo na Régua” (no dizer da Dª Glória, nora) -, em que a “Antoninha dos Bombeiros” teve que entrar em ação e no salão, ao lado do Salão Nobre, num fogão grande que havia lá, para o aquecimento, onde passou dias a confecionar imensas panelas de sopa, para que os bombeiros pudessem vir comer algo quentinho, depois de longas horas a batalhar contra as intempestivas águas deste rio dourado, a procurar retirar os bens das casas atingidas pela cheia.

Como documentação e para relembrar as pessoas, apresento uma foto do nosso querido e saudoso quarteleiro, Zé Pinto, acompanhado pela sua extremosa esposa, Dª Antónia - “Antoninha dos Bombeiros”, junto do edifício da Casa do Douro, quando ele já se encontrava aposentado (foto 1).

Era inverno e os dias corriam frios! “Foi uma trabalheira desgraçada para os bombeiros” (disse-me a nora), já que as ruas ribeirinhas da Régua ficaram submersas, completamente inundadas, chegando a água muito próximo do 1º andar na Rua da Ferreirinha, havendo, a meio da rua, por baixo de uma das varandas, o registo desse fenómeno excepcional.

Pelo referido registo poderemos concluir, indubitavelmente, como a então Vila da Régua ficara inundada, com as suas ruas, as mais chegadas ao rio, completamente intransitáveis pelo descomunal volume de água, onde a única ajuda possível era a ação dos Bombeiros e de alguns populares (familiares, amigos ou conhecidos), todos Voluntários, que se esforçavam por recuperar, o máximo que pudessem, os bens que ficaram dentro das casas e que só era possível retirar com a ajuda de barcos.

Quantos barcos rabelos não terão andado nessas operações de resgate de bens e pessoas?!

Se atendermos aos primeiros anos de trabalho deste nosso bombeiro, sabendo-se que rebentou a 2ª Guerra Mundial – 1939/1945, um período mau de vida para os povos da Europa, facilmente deduziremos que o “nosso” quarteleiro teve situações bem difíceis, deveras dramáticas, mas que teve que equacionar.

Era o tempo em que o trabalho executado se cumpria sem horários, sem regalias... e, desde que fosse necessário sair com uma viatura, eis que o quarteleiro tinha que estar disponível para tudo e para todos, nada comparável aos tempos de hoje, em que se cumprem as formais horas de trabalho e, depois, cada um vai para sua casa ou à sua vida.

Foi esse o historial do sr. Zé Pinto, fruto dos tempos em que viveu, em que batalhou, tendo trabalhado até à Revolução de Abril e, quando a condição social da sociedade portuguesa começava a melhorar, como consequência desse Abril de 1974, viu-se “empurrado” para uma nova realidade, a de reformado - já que foi obrigado a abandonar o seu posto, por motivos de saúde (um ataque cardíaco) - e, na altura, a respetiva remuneração era fraca, dado que o seu vencimento também tinha sido reduzido outrora, a exemplo da grande maioria dos portugueses que viveram e labutaram nos tempos da ditadura.

Quando a vida se apresentava com melhores dias, já que os vencimentos do pessoal ativo tiveram significativos aumentos, a saúde traiu-o, impedindo-o de manter a sua ocupação profissional.

Dada a conjuntura política que se vivia, o sr. Zé Pinto não teve férias nesse longo período de quarenta anos, como também não teve sábados, não teve domingos, nem tão pouco teve feriados, tinha que estar ao serviço dos outros - os doentes -, dadas as constantes viagens, fossem pelos vários lugares da região ou ao Hospital Central do Porto, para transportar os enfermos, que podia consistir em ir levá-los ou, então, ir buscá-los.

Foi uma vida de dedicação à causa, colocando o serviço sempre à frente da sua vida ou qualquer opção que pretendesse concretizar.

Perante toda esta lealdade e consagração não houve um reconhecimento dos mais notáveis da Organização, enquanto o sr. Zé Pinto foi vivo e reformado, e hoje é tarde, dado que muitos deles já “partiram” e, também, o próprio Zé Pinto. Essa amargura levou-a ele para o Além, muito embora não mostrasse grande azedume com tal facto, mas alguma mágoa sentia, pois, como diz o povo, “quem não se sente não é filho de boa gente”.

Quando uma Organização tem nos seus quadros um elemento que lhe consagra quatro décadas exemplares de laboração (pelo que sabemos e pelo que nos dizem os que com ele conviveram), as quais foram interrompidas por motivos de saúde, e se esquece de enobrecer os préstimos do seu funcionário, muito mal procede e não pode dizer-se que valoriza os seus.

Se fosse um qualquer “graúdo” seria louvado e até agraciado, mas como não era um dos da “elite” deles, Zé Pinto ficou esquecido e relegado para um segundo plano, depois de passar a reformado. Viveu feliz com a esposa, os familiares e os amigos, que não lhe faltaram.
Como complemento desta primeira parte da crónica, apresento duas fotos do quarteleiro Zé Pinto: uma,  foto 2, junto dum velho carro de incêndio com um colega bombeiro, vestido com a farda de trabalho (fato-macaco); outra, foto 3, frente ao quartel e acompanhado por 2 amigos / colegas bombeiros, encostados à velhinha ambulância.

Duas belas peças de museu, as viaturas que podemos observar!  
(continua)
O ZÉ PINTO institucional 
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 15 de Setembro de 2011
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Imagens e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão. Clique nas imagens acima para ampliar.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MEMÓRIA DOS NOSSOS BOMBEIROS

M. Nogueira Borges

Era uma vez uma criança nascida no ano em que dois dos maiores ditadores  da História se digladiavam nas estepes de Estalinegrado. Um ano em que se misturaram cobardia e coragem, traição e patriotismo, loucura e heroicidade. A sua  inocência não compreendia as aflições dos adultos nem o racionamento que o Avô impunha ao azeite para as jardas fritas.  Cresceu a ver os montes amarelecerem no Outono e reverdecerem na Primavera; os homens a subi-los e a descê-los alagados em suor e em cansaço. Era o tempo em que  se um pobre comia galinha ou estava esta ou ele doentes. A fome zunia pelos caminhos e pelos quelhos percorridos pelos pés descalços. Comiam-se azedas e amoras silvestres, figos lampos ou uvas ainda verdes roubadas nas estremas. A natureza enchia-se de signos que possuíam a maravilhosa simplicidade da criação. Os Verões secavam as terras e engorduravam as gentes, as sombras das folhas ou dos alpendres serenavam as sestas. Amavam-se os calços, mas vivia-se sem pressas; o ar rarefeito de uma indefinível felicidade, como se não se pertencesse a nenhum lugar, a relação entre o mundo e os outros fosse uma extensão do olhar. Os melros cruzavam voos e melodiavam nos bardos sem receios de caçadeiras; um rouxinol cantava, no abrandar do calor, para os lados do Fontão.  A paisagem surgia-lhe no olhar e  absorvia-a  com o sangue e o cérebro. Ignorante, praticava, inconscientemente, o velho princípio de que a humanidade cumpre-se no entendimento da terra e do ar.

Do alto de São Pedro via o rio a desenhar a curva do Salgueiral, e do lado de lá, em Riobom, no  Côto, os Avós paternos tentavam esquecer mortes roubadas na flor da idade. A Vila era a sua cidade, com carros para cá e para lá, sinaleiros de luvas brancas a abrir-lhes o caminho, lojas de cornetas de barro, harmónicas fado português, bombos, carros de bois e camionetas de madeira ; os balcões onde se apreçavam os tecidos para os vestidos das festas e as agências bancárias cujas portas se abriam ou fechavam para  poupanças ou necessidades.

A criança cresceu assim entre o alto de São Gonçalo e o Largo dos Aviadores quando o Avô que a criava decidia não esperar pela carreira e pedia ao Palhinhas que os levasse a casa.

Na hora em que, da Cumieira, a carrinha do Sousa trazia a boroa, e as mulheres com os filhos ao colo ou de canecos á cabeça corriam para a loja, ouvia no Rádio Alto Douro os discos pedidos para «os olhos castanhos do meu amor» ou para a «paixão da minha vida». Quando o sol, em Avões, dizia até amanhã, ajudava o Xico na rega da horta e molhava os espantalhos que estavam « todos aganados». No caminho da Senhora da Graça, a Margarida cantava Mariana lá da serra/Não saias da tua terra/Para seres americana/Ó tirana se és tão bela/Deixa o marujo ir á vela/Tem cautela Mariana. Estavam ainda distantes os anos da Memória: o tempo entre o que nos precede no entendimento e o que nos resta na recordação; a equação entre o que fomos e o que somos, que ninguém morre quando a sua lembrança permanece.

Com muita vida ainda para viver, mar para navegar e continentes para conhecer, adolescente à espera dos primeiros pêlos, percebeu rápido que nunca recuperaria  de um trauma de infância, como ferro em brasa no corpo e na alma; uma  marca de identidade, uma mancha inapagável, uma sombra vitalícia na história da sua existência.

Foi, pelo Caminho Velho abaixo, na companhia do Alberto, cortar o primeiro cabelo no fundo de Medreiros, matou a sede no jacto do jardim diante da Câmara, andou nos carrinhos da Alameda com o Socorro à porta, e espantou-se diante do quartel dos Bombeiros. Nunca mais esqueceu essa imagem.

Era novo e cheio de ilusão. Temia que as estrelas cadentes, nas noites de Agosto, incendiassem os  silvedos e os morouços, onde os caçadores, nas tardes de caça outonais, metiam os furões, e os homens dos capacetes dourados tivessem que vir no «descapotável vermelho» apagar as chamas vindas do céu.
Sim, era novo e inocente. Ignorava que os ossos do País estavam estampados nos olhos que se espiavam, nos silêncios repentinos que se faziam nas mesas de café, nos tarrafais escondidos da Pátria, nas lágrimas das casas esventradas, nos homens e mulheres perseguidos por não estenderem os braços ou recusarem os seus ideais.

Sim. Era novo e ingénuo. Sonhava com os olhos da Marisol; com a voz do Joselito; não gostava que a Mãe cantasse o Ai Mouraria da Amália, parecia-lhe que chorava, e adormecia com os cães a desafiarem-se nos portões, os bufos dos gatos esbaforidos pelas ruelas e uma coruja no Cume a ecoar presságios.

Foi no Avenida que viu Sissi a  Jovem Imperatriz, e dedicou  o seu primeiro amor casto à Romy Schneider... Mais tarde, no Salão dos Bombeiros, no Baile das Vindimas, dançou o twist e corou como um tomate por trocar os passos do tango…  Era um tempo de sonho e aventura,  sedução e prazer; um tempo que lhe dava todo o tempo, que soprava sobre ele pelo estreito funil que ia do presente até ao futuro; ainda não tinha passado e vivia a dimensão das suas horas.

Essa criança cresceu e agora envelhece – sou eu…

Por escolha ou imposição sempre andei longe da nascença, recuperando-a, amiúde ou esparsamente, conforme a distância do chamamento. Passava, e passo, muitas vezes junto dos nossos Bombeiros, mas jamais esqueci uma sua IMAGEM: o Senhor Zé Pinto à porta do Quartel, encostado, com um pé no estribo, a um carro, um cigarro na mão. Mais tarde cumprimentei-o, ali para os lados de Godim, onde me deslocava para visitar queridos amigos conhecidos na minha comissão militar em África. Nunca fui das suas relações. O meu conhecimento com ele, contudo, foi total.

Explico:

Acho que todos, na vida, nos cruzamos com pessoas de quem não gostamos: uma cara de petulância, um ar de bolsa farta, um olhar de cima a espezinhar os outros, um falar de vaidade insuportável, que repele qualquer vontade de contacto. Há casos em que nos enganamos, é certo, e o gelo transforma-se na reciprocidade da empatia, mas há fotografias que nenhum negativo consegue alterar em segundas provas. O Senhor Zé Pinto tinha a postura garbosa por pertencer aos Bombeiros; o orgulho de ser útil, num sorriso de cativante modéstia, que é sempre a marca das almas generosas; cativava o olhar e fomentava a simpatia dos passantes; tinha um rosto de bom carácter na honradez do fato macaco.
Eu falo assim porque o mundo está cheio de basófias,  ingratos que esquecem a prosperidade que conseguiram à custa dos assalariados e do sistema que os defende, e, agora, têm o descarinho intolerável de escarnecerem de uma sociedade em estado de necessidade, que vai buscar sempre aos mesmos os sacrifícios da salvação.

Muitos honestos e simples tiveram, têm e terão os Bombeiros da nossa e de todas as terras. Homens que por um pedaço de nada arriscam a orfandade e a viuvez de quem fica. Sujeitos à traição numa qualquer Serra, numa curva de estrada, num morro inacessível, num cavado sem fuga, numa casa em labaredas, numa dedicação de fraternidade. Pessoas destas não gananciam milhões, são felizes na ajuda, não vêm em nenhuma lista da FORBES, não precisam de fingir solidariedades – ELES SÃO A VERDADEIRA HUMANIDADE. Não fingem à pobreza – combatem-na; não se desculpam com a escassez de meios – suplantam-nos; não se encolhem no perigo – dominam-no; não se esquecem dos que morrem – choram-nos; não se assustam perante o cordão umbilical – erguem a vida; não se importam do esquecimento – deixam escrito o exemplo.
Numa altura em que, nesta cidade, se vai realizar um Congresso de Bombeiros, saibamos lembrar todos aqueles que se bateram com alma e suor, raiva e generosidade em defesa da comunidade.

Na pessoa do dr. José Alfredo Almeida, rato de biblioteca na procura de tudo que respeita à Corporação a que preside, numa dádiva que chega a comover pela raridade nestes tempos de egoísmo, que alia a cultura ao entusiasmo da partilha, e que, sorrindo às dificuldades, se abalançou, em parceria com a editora Mosaico, na escrita de um livro para este acontecimento nacional, o meu brado de admiração.

É bem verdade que as grandes heranças são os gestos que não se esquecem, as obras que se deixam nos alicerces da eternidade, os sorrisos de carinho e os olhares de amor. Recordei-me de tudo o que deixo escrito ao ver uma foto antiga em que está o SENHOR ZÉ PINTO.  Há seres humanos que são parte da iconografia de uma sociedade e de uma geração. ELE É-O.
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Memória dos nossos Bombeiros
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 8 de Setembro de 2011
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- Texto de autoria de M. Nogueira Borges. Imagens e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão com a anuência simultânea de M. Nogueira Borges. Clique nas imagens acima para ampliar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Os Bombeiros – Zé Pinto socialmente


Adérito Rodrigues

Tal como dissera no artigo anterior, vou tecer algumas considerações sobre a vida de um reguense, que muito embora não fosse um homem de grande estatura, foi um Grande Homem, já que dedicou 4 décadas da sua vida (envolvendo a família, muitas vezes) à causa social e à “sua” Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, que hoje é centenária e a vaidade/orgulho dos reguenses. No entanto, esta Associação nada teria sido sem os homens que dedicaram as suas vidas a essa nobre causa do Voluntariado.

Quem foi, afinal, o Sr. Zé Pinto? Era conhecido por toda a gente como o “Zé Pinto dos Bombeiros”, pois foi quarteleiro e condutor nos Bombeiros da Régua, durante variadíssimos anos, no entanto, seu nome era José Melo, muitos nem saberão isto, nascido a 10/01/1915. Estava casado com a Dª Antónia Rosa Carvalho, também conhecida por “Antoninha dos Bombeiros”, que ainda está viva, com 95 anos, vivendo no Porto, em casa da filha, Dª Mª Odete.

O casal teve três filhos - Bártolo, Mª Odete e Joaquim, que viveram nesta cidade -, e ainda conheceu os 4 netos, o mesmo não acontecendo com os 6 bisnetos, pois são “rebentos” mais modernos.

O Sr. Zé Pinto era um apaixonado pela sua atividade, disso todos temos a certeza, muito embora já esteja esquecida a sua ação. A paixão que ele tinha por aquela casa, o Quartel dos Bombeiros, era muito grande e causou-lhe imensa tristeza a separação forçada a que se viu sujeito.

Todavia o “nosso” Zé Pinto não iniciou a sua atividade laboral diretamente nos Bombeiros, muito antes de entrar para tal função, ainda foi guarda-fiscal e só depois é que ingressou na Associação dos Bombeiros, onde ficou quase 40 anos.

Viu-se forçado a ir para a reforma perto dos 60 anos e com um longo percurso de trabalho, dado que teve um ataque cardíaco, surgiu-lhe uma angina de peito, problemática que lhe veio complicar o resto dos dias da vida, até que Deus o chamou a Si, em 14/12/1987, com 72 anos, situação que vivi muito de perto.
Com uma nova situação de vida - a reforma, procurou arranjar alguns entretenimentos para compensar o vazio do dia. Era regular apreciador de um bom jogo de futebol, bem como de uma boa tarde passada na pesca. Ia para o rio, a fim de poder “queimar” o tempo, já que as horas eram longas e nada do que fizera poderia ser de novo desempenhado. Ao menos isso, poder passar o tempo com amigos, porque a mágoa, o afastamento da sua paixão, mantinha-se no seu âmago.
Trazia os peixes que retirava das águas do Douro, mas, como solidário, distribuía-os pelos vizinhos. Não tive esse privilégio de poder comer peixes pescados pelo Sr. Zé Pinto, já que, quando o conheci, a condição física não lhe permitia grandes deslocações ou longas ausências. É assim a vida que nos vai acontecendo, permite-nos alguns factos, mas impede-nos para outros. Parece que no Céu, o Deus Supremo, nos esquece . . .

O conhecimento que tive com o sr. Zé Pinto foi a partir de 1978, quando fui habitar para o Bairro Columbano, na Rua da Lousada, nesta cidade. Ele vivia no 1º andar e eu no 2º e muitas vezes parei no princípio do varandim a cavaquear com ele e com a esposa, a Dª Antónia, nem como com outros vizinhos, com quem mantinha uma boa relação.

Era um tempo em que as amizades se privilegiavam, as boas vizinhanças se preservavam e os bons momentos de convívio e confraternização se desfrutavam numa total plenitude. Que saudades desses tempos!

Ao domingo tinha uma função específica, verificar a tensão arterial ao Sr. Zé Pinto. Como tinha um aparelho para monitorizar esses valores, eu próprio me voluntariei a tal tarefa, sabendo do “calvário” que ele tinha com os valores elevados, o que o atormentava demasiado.
Sendo um homem hipertenso, tinha, sempre, valores bastante elevados, andando a mínima pelos 10 e a máxima superior a 17. Rara era a ocasião em que o valor mínimo baixasse e o valor máximo não subisse, apesar do tratamento que fazia e do cuidado que a esposa tinha com os temperos na alimentação.

Uma vez, quando cheguei a casa do Sr. Zé Pinto, aconteceu-me uma situação engraçada. Ele tinha uma oferta para me dar. Era uma bola da minha terra. Como tinham estado lá em casa uns familiares e, provavelmente, foram a Lamego, entendeu que seria uma boa oferta para me dar. Depois de devidamente monitorizada a tensão arterial, decidiu-se a oferecer-me uma saca, onde estava a dita bola.

- Não é para lhe pagar, mas como vem aqui todos os domingos . . .

Fiquei surpreendido e sem reação, já que não esperava nada, não tão pouco queria o que quer que fosse, acabando por responder-lhe:

- Se voltar a fazer algo semelhante, pode ter a certeza que nunca mais entro na sua casa. Se venho aqui é porque quero, pela amizade que nos une, não tem nada que me pagar ou que me agradecer. Levo a oferta para não ser indelicado consigo, mas não volte a repetir a cena.

O Sr. Pinto ficou de tal forma surpreendido com o meu comportamento, que mais parecia que cometera um crime. Sentiu-se profundamente embaraçado, não queria que me aborrecesse, só pretendia ser simpático, reconhecido, dar-me um sinal de simpatia e agradecimento, só que, para amigos, isso não era necessário. Atitude de um homem humilde, bom e generoso, que reconhecia o valor intrínseco de uma amizade. Só Grandes Homens reagem assim.

Continuámos amigos e permaneci nas visitas a sua casa, a fim de lhe controlar a tensão arterial, enquanto lhe foi necessário monitorizar os valores arteriais, para poder ir andando mais ou menos sossegado com o regime de vida.

Foi da boca deste homem que ouvi algumas coisas interessantíssimas a respeito da Régua, já que vivera sempre na então vila e conhecia bem a realidade local. Coisas do passado ou coisas mais recentes, que se foram vivendo na vila e que ele testemunhara e que transmitia verbalmente.

Uma das várias informações que me deixou e que recordo com grata satisfação e saudade, prende-se com a passagem na ponte de ferro, que hoje está em obras. Muita gente pensa que aquela ponte foi feita para a passagem do comboio, o que é errado, já que nela passavam as pessoas e os carros de bois com a carga e pagavam um cruzado por tal feito, naquela altura. Moeda que já não conheci, pois a moeda mais pequena que manipulei foi o tostão - dez centavos – a décima parte dum escudo. Para as pessoas mais novas poderei adiantar que dois escudos equivalem a 0,01€ - (um cêntimo).

Foram histórias antigas e engraçadas que me foi transmitindo, que eu registei e que, às vezes, me vão aflorando à memória, num misto de saudade e de prazer, por poder reviver uma pessoa que me deu belos momentos de convívio. Muitas outras vivências poderiam ser contadas, pois são várias as que se conviveram, mas como o espaço do jornal não é infinito, remeto-me somente a estas, para mim as mais marcantes.
Como nota final, não quero deixar de agradecer às familiares do Sr. Zé Pinto pela colaboração disponibilizada - a filha - Dª Mª Odete, a nora - Dª Glória Vieira (viúva do filho Bártolo) e a neta - Dª Catarina / a 1ª pessoa a ser contactada e que desde logo se disponibilizou a ajudar na cedência de material, fotos e  algumas das informações, para a elaboração do trabalho.
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Os Bombeiros – Zé Pinto socialmente
Jornal "O Arrais", quinta feira, 11 de Agosto de 2011
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Pequena nota - Enquanto editava este excelente texto do Sr. Adérito Rodrigues, recordei com imensa saudade que o casal D. Antónia - Sr. Zé Pinto foi, durante alguns bons anos, vizinho de meus queridos e saudosos Pais no 'Prédio Columbano' em Godim - Peso da Régua. - J. L. Gabão.
Clique nas imagens acima para ampliar. Leia-se a 1ª. parte "Os Bombeiros – Abordagem pessoal"  neste blogue. Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2011.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Os Bombeiros – Abordagem pessoal

Adérito Rodrigues

Após uma curta conversa com o atual Presidente da Direção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, meu estimado amigo Dr. Alfredo Almeida, sabendo-me um leitor atento dos seus artigos sobre a referida Associação e respetivos arquivos, que tem vindo a divulgar semanalmente, e um apoiante incondicional desse relembrar do passado, sugeriu-me que escrevesse algo sobre os Bombeiros.

Prontamente acedi ao pedido e adiantei-lhe que, inicialmente, faria uma abordagem generalista e pouco abrangente, mais sob um aspeto de vivência pessoal, e, posteriormente, versaria o meu ponto de vista num formato mais específica, falando de um elemento da citada Associação Humanitária, que trabalhou em prol dos Bombeiros, durante um período elevado de anos, numa totalidade de quase quatro décadas, e com quem convivi, muito em particular, quase uma década, na Rua da Lousada, nesta cidade.

Afinal, o que são os Bombeiros e como se ganha o gosto por uma Associação Humanitária de Bombeiros e por aqueles sujeitos operacionais? Como compreender aquela missão de altruísmo e o pleno conhecimento do perigo que estão a correr, mas que os não persuade a recuar?

Como documentário destas minhas palavras, apresento uma foto que reproduz um exercício de simulacro dos Bombeiros do Peso da Régua, no ano de 1955 (data escrita na foto), sabendo-se que o bombeiro era Claudino Clemente e a criança ao colo é o filho mais novo do quarteleiro, o Quim Melo, que foi funcionário da Casa do Douro.

Quando miúdo, tive o privilégio de apreciar, muito de perto, toda a movimentação do quartel dos Bombeiros Voluntários de Lamego, outrora no topo da Avª. 5 de Outubro, do lado direito, mesmo em frente ao Jardim. Tendo nascido e vivido, até pouco mais dos 20 anos, naquela cidade e como a casa dos meus pais ficava a uns escassos 500 metros do referido quartel, era fácil a corrida até “aos bombeiros”, assim dizíamos entre nós.

Quando a sirene tocava, era ponto assente que todos nós - miúdos, rapazotes ou jovens de tenra idade - corríamos para o quartel, a fim de se saber onde era o incêndio.

Havia um código, na altura, que nos permitia saber, de imediato, para onde seguiriam os Bombeiros nos seus “carros da bomba”, assim os chamávamos.

Se ouvíamos a sirene tocar, prolongadamente, uma só vez, sabíamos que o incêndio era na cidade e, depois de conhecermos o local, de imediato nos dirigíamos para esse lugar, na tentativa de perseguir os carros dos bombeiros, para podermos contemplar todo o aparato no combate ao incêndio; Se, entretanto, esse toque prolongado tinha uma quebra, se havia uma pequena interrupção, durante alguns segundos, sabíamos que esses dois toques significavam incêndio fora da cidade; Se a sirene fazia duas interrupções, ou seja, tocava três vezes, isso queria dizer que tinha havido um acidente de viação.

Falo dos anos 60, onde os jovens pouco ou nada tinham para entretenimento, ao contrário dos nossos jovens da atualidade, que têm uma enormidade de atividades de que podem desfrutar e das quais, muitas vezes, nada aproveitam. Foram imensas as vezes que fui até ao quartel dos Bombeiros, umas dezenas largas de vezes, e por lá me ia mantendo durante algum tempo, bem como os amigos que eu acompanhava, ouvindo as cenas que os Bombeiros contavam dos episódios que tinham vivenciado, quase sempre no rés-do-chão do edifício, onde se recolhiam as viaturas.

Pude constatar a relação humana e a sã camaradagem que existia entre os vários elementos, não se verificando as falsidades comuns das organizações atuais, nem o assumir das tutelas ou das graduações dos respetivos postos. Todos se respeitavam, todos se relacionavam e todos saudavelmente conviviam. Eram constantes os grupos a conversar, a trocar opiniões, a comentar um ou outro aspeto da vida de bombeiro.

Em algumas ocasiões íamos até ao salão, no 1º andar, onde podíamos ver as fotos de alguns Comandantes e de outras figuras gratas à Associação. Havia, também, nas paredes do salão, umas frases escritas em “letras gordas”, que se liam com relativa facilidade, dado o tamanho dos grafismos. Ainda hoje retenho uma frase, que me marcou pelo seu simbolismo: “É mais difícil comandar do que obedecer”, que será de Oliveira Salazar, segundo creio. Muitas outras frases havia nas paredes, no entanto não me aventuro a citá-las de memória, pois posso não cumprir cabalmente a função e adulteraria o sentido das mesmas.

Quando me deslocava para o Quartel dos Bombeiros e ao ouvir a sirene tocar, criava-se, em mim, como que um formigueiro, uma emoção forte, uma reação estranha. Ao pretender falar deste aspeto da minha vida de mais jovem e perceber esta relação/choque de aproximação aos Bombeiros, tentei saber qual a razão de tal comportamento e procurei a opinião do meu Médico de Família, Dr. José Alberto, meu estimado amigo desde os tempos de estudantes em Lamego, para que me explicasse a razão de tal fenómeno.

Em linguagem simples direi que o ouvir a sirene, como um estímulo, origina um desequilíbrio emocional, o qual poderá ser de alegria ou de tristeza, refletindo-se de várias maneiras. Tecnicamente chama-se somatização da emoção. Essa a razão porque sentia a referida reação.

Ainda nos dias de hoje, ao ouvir a sirene dos Bombeiros, sinto algo em mim que me inquieta ou me incomoda. O mesmo me acontece se me apercebo do aproximar de uma ambulância e caso vá de carro, tenho como primeiro ato, de instantâneo, acionar os quatro piscas e permitir a passagem a tal viatura, encostando o meu carro o mais possível à direita.

Tenho esta atitude de respeito pelo código, em primeiro lugar pelos Bombeiros, em segundo e, em último, por quem vai na própria viatura, contudo, este meu gesto é algo que não vejo acontecer, muitas vezes, na estrada. Não é o 1º, nem o 2º condutor que continua a acelerar – já tive a oportunidade de o presenciar - na tentativa de ir à frente da ambulância, a qual leva a marcha devidamente assinalada.

Esse respeito que mantenho pelos Bombeiros reflete-se nas amizades que sustento com muitos deles, já que tenho tido vários amigos Bombeiros.

Falei da minha relação e admiração pelos Bombeiros de Lamego, mas não posso deixar de registar que também Lamego tinha esse mesmo penhor pelos Bombeiros da então Vila do Peso da Régua. Foram duas as situações em que estes tiveram que “dar uma mãozinha” aos seus congéneres de Lamego, pois contribuíram com a cooperação dos seus homens em dois incêndios que deflagraram na minha Terra Natal.

O primeiro foi em 1911, mais concretamente na Rua de Almacave, dizimando a parte direita da rua; o outro momento de interação foi no ano de 1918, na outrora célebre rua dos sapateiros, que dá pelo nome de Rua da Olaria, a qual, dada a sua reduzida dimensão na largura da Rua, apresentava o perigo eminente de reduzir a cinzas as casas dos dois lados.

Duas circunstâncias em que as duas Associações cooperaram para evitar desgraças maiores, já que um incêndio é sempre algo maléfico, extremamente diabólico.

Para remate desta narração, enuncio que a crónica da próxima semana versará a pessoa de um bombeiro já falecido, com quem privei durante uns bons pares de anos, quando ele já estava aposentado, por termos vivido no mesmo prédio. Falo do Sr. José Melo, que toda a gente conhecia por Zé Pinto dos Bombeiros, que foi quarteleiro e condutor nos Bombeiros da Régua, durante variadíssimos anos.


Exibo uma foto com ele e a esposa, o Sr Zé Pinto e a Dª Antónia, de quem sinto saudades, pelo ótimo ambiente e relação que se viveu durante aqueles anos, em que coabitámos no mesmo Bairro.

Os Bombeiros – Abordagem pessoal
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 28 de Julho de 2011
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Clique nas imagens acima para ampliar. A 2ª. parte "Os Bombeiros – Zé Pinto socialmente" será publicada em breve neste blogue. Colaboração de texto do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2011.