quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O Zé Pinto institucional

Adérito Rodrigues

Neste terceiro apontamento sobre a vida do sr. Zé Pinto irei abordar aspetos que se prendem com a vida institucional deste Bombeiro,  o qual entrou para a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua por meados dos anos 30, do século passado, com vinte e poucos anos e, tal como já dissera anteriormente, aí se manteve quase quatro décadas, tendo saído por motivos de força maior, ou seja, por razões de saúde.

Com a elaboração desta crónica pretendia-se, também, pesquisar algo sobre o antigo quartel ou recolher algumas fotos do quarteleiro que a família pudesse ter, o que, infelizmente, não veio a concretizar-se, já que as familiares com quem falei não se lembram, nem têm conhecimento desse edifício, como também não possuem fotos do quartel velho ou do sr. Zé Pinto ainda nele.

Seria mais um documento valioso ou registo histórico para o património dos Bombeiros do Peso da Régua, mas, perante a resposta de uma familiar . . .

“- Não me lembro do quartel velho, desse quartel só sei o que o meu sogro e a minha sogra disseram, já não sou desse tempo”... nada se pode fazer.

Já numa publicação do Arquivo dos Bombeiros, que saiu no Jornal “Arrais”, em 12 de Fevereiro de 2009, se pode ver uma referência ao homem em causa, sendo documentado o artigo com uma foto - “onde ao centro se destaca um dos nossos grandes quarteleiros, o conhecido e saudoso Zé Pinto...” -, aquando da cheia de 1962, a qual incomodou as gentes da então Vila da Régua, já que foi a terceira maior que o Rio Douro teve. Lá estava o quarteleiro com o seu boné (julgo que será quico) e de galochas, a ajudar na recuperação dos haveres das pessoas, conjuntamente com outros bombeiros.

Nesta situação, como em muitas outras, que não faltaram, o sr. Zé Pinto cumpriu o lema “Vida por Vida”, que é o espírito mobilizador duma Associação Humanitária de Bombeiros.

Eram voluntários que se dedicavam de alma e coração à causa nobre de auxiliar o seu próximo, gastando horas e dias em prol duma comunidade necessitada.

Como se sentiriam os bombeiros perante um drama daqueles, quando todas as pessoas eram sobejamente conhecidas?

Muitas das casas à beira-rio eram da gente mais pobre e eram casas fracas, feitas só de tábuas ou, então, de tabique, onde imperava a pobreza, para não dizermos a miséria, e os parcos haveres que possuíam, lá se iam na corrente ou ficavam debaixo de água.

Foi assustador e metia medo tal grandeza de água, pelas correntes que o rio fazia, mesmo encostado às casas, e foi, sem dúvida alguma, uma desgraça que aconteceu às gentes da Régua, que, felizmente, não teve repetição comparável até aos dias de hoje. A situação posterior mais problemática de cheia do Douro foi em fevereiro de 1979 e o rio ficou-se pela Rua João Franco, pois só inundou o rés-do-chão, quase chegando ao 1º andar.

Uma situação inimaginável para os dias de hoje, a vivida nesse ano de 1962, como também uma realidade inatingível para alguns dos mais novos.

Não havia os atuais recursos técnicos, nem as equipas da Proteção Civil ou os militares dos quartéis circunvizinhos, nem as barragens para conter algum do ímpeto das águas do rio, nem os meios de comunicação facilitadores da nossa vida moderna.
A Dª Antónia foi, sem dúvida, uma vez mais, o braço direito do marido. Para corroborar esta tese, e para se comprovar a colaboração dessa senhora, passo a narrar um episódio supremo, de profundo altruísmo, aquando da cheia de 1962 - “era o fim do mundo na Régua” (no dizer da Dª Glória, nora) -, em que a “Antoninha dos Bombeiros” teve que entrar em ação e no salão, ao lado do Salão Nobre, num fogão grande que havia lá, para o aquecimento, onde passou dias a confecionar imensas panelas de sopa, para que os bombeiros pudessem vir comer algo quentinho, depois de longas horas a batalhar contra as intempestivas águas deste rio dourado, a procurar retirar os bens das casas atingidas pela cheia.

Como documentação e para relembrar as pessoas, apresento uma foto do nosso querido e saudoso quarteleiro, Zé Pinto, acompanhado pela sua extremosa esposa, Dª Antónia - “Antoninha dos Bombeiros”, junto do edifício da Casa do Douro, quando ele já se encontrava aposentado (foto 1).

Era inverno e os dias corriam frios! “Foi uma trabalheira desgraçada para os bombeiros” (disse-me a nora), já que as ruas ribeirinhas da Régua ficaram submersas, completamente inundadas, chegando a água muito próximo do 1º andar na Rua da Ferreirinha, havendo, a meio da rua, por baixo de uma das varandas, o registo desse fenómeno excepcional.

Pelo referido registo poderemos concluir, indubitavelmente, como a então Vila da Régua ficara inundada, com as suas ruas, as mais chegadas ao rio, completamente intransitáveis pelo descomunal volume de água, onde a única ajuda possível era a ação dos Bombeiros e de alguns populares (familiares, amigos ou conhecidos), todos Voluntários, que se esforçavam por recuperar, o máximo que pudessem, os bens que ficaram dentro das casas e que só era possível retirar com a ajuda de barcos.

Quantos barcos rabelos não terão andado nessas operações de resgate de bens e pessoas?!

Se atendermos aos primeiros anos de trabalho deste nosso bombeiro, sabendo-se que rebentou a 2ª Guerra Mundial – 1939/1945, um período mau de vida para os povos da Europa, facilmente deduziremos que o “nosso” quarteleiro teve situações bem difíceis, deveras dramáticas, mas que teve que equacionar.

Era o tempo em que o trabalho executado se cumpria sem horários, sem regalias... e, desde que fosse necessário sair com uma viatura, eis que o quarteleiro tinha que estar disponível para tudo e para todos, nada comparável aos tempos de hoje, em que se cumprem as formais horas de trabalho e, depois, cada um vai para sua casa ou à sua vida.

Foi esse o historial do sr. Zé Pinto, fruto dos tempos em que viveu, em que batalhou, tendo trabalhado até à Revolução de Abril e, quando a condição social da sociedade portuguesa começava a melhorar, como consequência desse Abril de 1974, viu-se “empurrado” para uma nova realidade, a de reformado - já que foi obrigado a abandonar o seu posto, por motivos de saúde (um ataque cardíaco) - e, na altura, a respetiva remuneração era fraca, dado que o seu vencimento também tinha sido reduzido outrora, a exemplo da grande maioria dos portugueses que viveram e labutaram nos tempos da ditadura.

Quando a vida se apresentava com melhores dias, já que os vencimentos do pessoal ativo tiveram significativos aumentos, a saúde traiu-o, impedindo-o de manter a sua ocupação profissional.

Dada a conjuntura política que se vivia, o sr. Zé Pinto não teve férias nesse longo período de quarenta anos, como também não teve sábados, não teve domingos, nem tão pouco teve feriados, tinha que estar ao serviço dos outros - os doentes -, dadas as constantes viagens, fossem pelos vários lugares da região ou ao Hospital Central do Porto, para transportar os enfermos, que podia consistir em ir levá-los ou, então, ir buscá-los.

Foi uma vida de dedicação à causa, colocando o serviço sempre à frente da sua vida ou qualquer opção que pretendesse concretizar.

Perante toda esta lealdade e consagração não houve um reconhecimento dos mais notáveis da Organização, enquanto o sr. Zé Pinto foi vivo e reformado, e hoje é tarde, dado que muitos deles já “partiram” e, também, o próprio Zé Pinto. Essa amargura levou-a ele para o Além, muito embora não mostrasse grande azedume com tal facto, mas alguma mágoa sentia, pois, como diz o povo, “quem não se sente não é filho de boa gente”.

Quando uma Organização tem nos seus quadros um elemento que lhe consagra quatro décadas exemplares de laboração (pelo que sabemos e pelo que nos dizem os que com ele conviveram), as quais foram interrompidas por motivos de saúde, e se esquece de enobrecer os préstimos do seu funcionário, muito mal procede e não pode dizer-se que valoriza os seus.

Se fosse um qualquer “graúdo” seria louvado e até agraciado, mas como não era um dos da “elite” deles, Zé Pinto ficou esquecido e relegado para um segundo plano, depois de passar a reformado. Viveu feliz com a esposa, os familiares e os amigos, que não lhe faltaram.
Como complemento desta primeira parte da crónica, apresento duas fotos do quarteleiro Zé Pinto: uma,  foto 2, junto dum velho carro de incêndio com um colega bombeiro, vestido com a farda de trabalho (fato-macaco); outra, foto 3, frente ao quartel e acompanhado por 2 amigos / colegas bombeiros, encostados à velhinha ambulância.

Duas belas peças de museu, as viaturas que podemos observar!  
(continua)
O ZÉ PINTO institucional 
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 15 de Setembro de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)


Imagens e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão. Clique nas imagens acima para ampliar.

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