Adérito Rodrigues
Nas linhas anteriormente expostas procurámos mostrar
a dedicação de um Homem que se devotou aos outros (não se pretendeu dizer que
sr. Zé Pinto fosse o maior de todos, tão somente que foi um Grande Homem), a exemplo
de muitos mais, que se dedicaram e continuam a dedicar-se à causa voluntária,
ajudando o seu semelhante no dia-a-dia, desde que sejam solicitados para o
efeito.
Será de introduzir nesta crónica que a Associação
Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, a par com a Associação
dos Amigos do Hospital D. Luiz I, é uma Associação referenciada neste Ano
Internacional do Voluntariado, sito na cidade do Peso da Régua, que deverá
despertar as consciências para a disponibilidade e a cooperação com o seu
semelhante.
Essas pessoas que labutaram em proveito direto dos
seus concidadãos, foram uns genuínos Voluntários - na verdadeira aceção da
palavra - marcaram-nos com seus feitos, que conservamos na memória e que nos
levam a suspirar por um passado que ocorreu e que, nos dias de hoje, nem sempre
se cumprem da forma que julgamos a mais adequada.
Dostoievski, no seu livro “Os Irmãos Karamazov”,
diz-nos que “…não existe nada mais
elevado, mais forte, são e bom para a vida do futuro que alguma boa recordação...”. É salutar não esquecermos as ligações que tivemos, não relegarmos
para um plano inferior as boas lembranças que se fixaram na nossa memória, as
recordações dos bons afetos. Jamais a ausência de alguém nos pode forçar a um
arrasador abandono, a um esquecimento interior, a uma rejeição das emoções que
nos humanizaram.
O quarteleiro Zé Pinto esteve sempre disponível para
todo e qualquer ser - fosse o mais rico ou o mais necessitado -, sempre
solidário e sempre generoso, mas a vida não lhe foi condescendente, ao
inverter-lhe a época, pois o 25 de Abril não o bafejou, com o virar de mais uma
página da nossa história, já que não lhe proporcionou os aumentos que os do
ativo tiveram, vendo-se obrigado a viver com a reforma reduzida que lhe
pagavam.
A vida desse nosso conterrâneo teve aspetos bem
representativos e gratificantes, apesar de, por vezes, o estado de saturação o
atingir, se considerarmos que as horas de trabalho não eram contabilizadas como
são hoje, já que ele tinha que estar disponível, desde que alguém o chamasse.
Nas várias conversas que fomos mantendo na década de
convívio que tivemos, o sr. Zé Pinto chegou a confidenciar-me que, muitas
vezes, se sentia extremamente cansado com tanta correria, pois as viagens à
Capital do Norte não eram nada do que são hoje, atendendo ao imenso tempo que
se demorava na viagem e à constante rotatividade - ida e volta. Quem, como ele,
percorreu os velhos caminhos que nos levavam à cidade do Porto, tem plena
certeza de que essas viagens fatigavam qualquer pessoa, mesmo que fosse um “bom
acelera”. Era um tempo longo que se perdia na estrada, com curvas e
contra-curvas e o inconveniente de termos que atravessar lugarejos, aldeias ou
cidades.
Sei, também, que o nosso Amigo Zé Pinto, para
colmatar essa situação de cansaço, diversas vezes, levava o filho mais novo, o
Quim, para o substituir na condução da ambulância, no regresso, a fim de poder
descansar um pouco durante a viagem.
Tempos impensáveis e não aplicáveis nos dias de
hoje, onde impera um horário de trabalho e as condições são muitíssimo mais
benévolas do que as de outrora.
Nos quarenta anos de trabalho nos Bombeiros teve
noites que ainda vinha a caminho e já estava o telefone a tocar, para que fosse
outra vez ao Porto e quem atendia o telefone era a Dª Antónia, pela ausência do
quarteleiro. Outras vezes estava ele a acabar de se deitar e tocava o telefone
para ir levar um doente. Foi uma vida de muito sacrifício e em que a Dª Antónia
também cooperou nessa azáfama.
A canseira que o casal foi tendo pelos tempos fora,
não se ficou só por aqui, também tinham um orgulho enorme no Quartel dos
Bombeiros e tudo faziam para que o aspeto fosse o mais deslumbrante e
apresentável possível. Era comum as pessoas quererem visitar as instalações e
as viaturas nas Festas do Socorro e o casal Melo tinha orgulho em mostrar o
quartel, pelo que “limpavam os capacetes, ficava tudo a reluzir, todos limpinhos, e a
minha sogra andava de joelhos a encerar a casa toda. As pessoas ficavam
encantadas com a limpeza do quartel. O meu sogro tinha muita vaidade nisso”.
No dia 16 de Agosto, dia grande das Festas em honra
da Nª Srª do Socorro, aquando do regresso da procissão e “a Nª. Srª. vinha para cima, da
Capela do Asilo das Crianças para o Peso, só quando saía o último bombeiro é
que ele ia comer, apesar dos apelos constantes da mulher para ir comer”.
Se o casal tinha vaidade em ter as instalações
devidamente limpas e arrumadas, também o sr. Zé Pinto não deixava de ter um
enorme orgulho na limpeza das viaturas, poderemos dizer até que, talvez, uma
certa obsessão, pois, no dizer da nora, era de um cuidado extremo. Eis as
palavras que o definem:
“O meu sogro tinha aquela coisa com ele, não
confiava a maca a ninguém. Ele é que a conduzia e não metia um carro dentro do
quartel sem ser lavado. Sempre tudo lavado! Não descansava! Estava a gente,
muitas vezes, à espera para comer e ele, sem lavar a ambulância, não
descansava. Tinha uma paixão muito grande pela Associação, pelos Bombeiros,
pelas viaturas e gostava de ter tudo arrumadinho, tudo no respetivo lugar.”
A vida desgastante que o quarteleiro viveu, também
lhe apresentou alguns casos engraçados e que ele próprio lembrava e comentava,
achando-lhes alguma graça.
Naquele tempo, os bombeiros faziam o transporte dos
doentes na ambulância, mas também dos mortos, quando os enfermos se finavam nos
hospitais. Uma das situações que o sr. Zé Pinto vivenciou tem a ver com uma
viagem a Valdigem, a fim de levar um doente falecido. A viúva (o homem já
estava morto), uma senhora do povo, quase ao chegar à localidade, pediu-lhe:
“- Óh senhor, toque muito, toque muito, para
saberem que vai aqui o meu marido”.
Pretendia a pobre viúva que o bombeiro tocasse a
sirene da ambulância, mas qual a intenção concreta, ninguém o saberá, a não ser
que queria que soubessem que o morto ia ali. Acho a situação um pouco macabra...
O Sr. Zé Pinto explicou aos seus familiares a
situação que viveu e dizia que dentro da infelicidade a que foi chamado, levar
um morto, dava-lhe agora o riso pela situação que viveu. A senhora queria que
soubessem que ia ali o marido morto!
Ainda no cumprimento da sua missão, referirei um
outro episódio em que o sr. Zé Pinto se viu envolvido no cumprimento do seu
dever. Ao transportar uma senhora grávida para o hospital, a paciente
apresentou sinais de ter que dar à luz num momento inesperado. Como a senhora
manifestava todos os sinais de ter começado em trabalho de parto, não havia
outra solução que não a de o parto ser na ambulância. O bebé acabou por nascer
dentro da ambulância e foi o “nosso” quarteleiro quem assistiu a senhora, mais
um bombeiro que ia com ele. Após a situação ter ficado resolvida, quiseram os
pais da criança que o Bombeiro Zé Pinto fosse o padrinho da criança.
Aproveito para narrar um relato ocorrido no edifício
dos Bombeiros. Havia um senhor, de nome Viana, um homem engraçado e divertido,
que ia trabalhar/ajudar os Bombeiros. Ele não era bombeiro, mas ia auxiliar na
limpeza dos capacetes e das botas, num lugarzinho lá atrás, onde arranjavam
tudo.
Há, contudo, uma história com esse tal Viana,
deveras surpreendente, que a Dª Glória Vieira (nora do sr. Zé Pinto) me contou.
- “Um dia deram um peru ao meu sogro e ele
chamou o Viana. Deu-lhe uma garrafa com bagaço e pediu-lhe que embebedasse o
peru com o bagaço, para depois se matar. Aquilo é que foi. Bebeu ele a
aguardente e cortou a cabeça ao bicho com o machado dum bombeiro. Em vez de
embebedar o peru, embebedou-se ele e o peru nunca mais morria”.
- “Ah desgraçado, o que tu fizeste” –
disse-lhe o quarteleiro.
Como se pode ver por estas pequenas narrativas a
vida de bombeiro não era só sacrifício, também tinha algumas cenas engraçadas,
que acabavam por amenizar a árdua tarefa que lhes era investida.
Será de referir, já que se fala em comida, que a Dª
Antónia era uma mestra na cozinha e, segundo a opinião de alguns, esta senhora
fazia uns petiscos muito afamados, assim se pronunciam alguns, que na altura
eram frequentadores do bar dos Bombeiros.
Fecho esta série de crónicas, onde foi referido o
quarteleiro Zé Pinto, mencionando a atribuição da medalha de mérito e
sacrifício (foto 1 ), no ano de
1970, que a Direção de então lhe atribuíra, quando ele já tinha mais de trinta
anos dedicados à causa do voluntariado da Associação Humanitária dos Bombeiros
desta cidade. Os responsáveis de então entenderam conceder-lhe essa
condecoração pelos feitos realizados, e quem lhe fez a imposição da medalha foi
o também saudoso Joaquim Lopes, pai do Ângelo Maria, meu amigo e colega no
Liceu de Lamego (foto 2).
Procurei relembrar a vida dum Homem, que, muito
embora tivesse ficado no anonimato, mostrou-nos uma faceta de dignidade e
competência. Que Deus o mantenha na Sua Paz.
O ZÉ PINTO institucional - 2
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 22 de Setembro de 2011
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Imagens e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão. Clique nas imagens acima para ampliar.