quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MEMÓRIA DOS NOSSOS BOMBEIROS

M. Nogueira Borges

Era uma vez uma criança nascida no ano em que dois dos maiores ditadores  da História se digladiavam nas estepes de Estalinegrado. Um ano em que se misturaram cobardia e coragem, traição e patriotismo, loucura e heroicidade. A sua  inocência não compreendia as aflições dos adultos nem o racionamento que o Avô impunha ao azeite para as jardas fritas.  Cresceu a ver os montes amarelecerem no Outono e reverdecerem na Primavera; os homens a subi-los e a descê-los alagados em suor e em cansaço. Era o tempo em que  se um pobre comia galinha ou estava esta ou ele doentes. A fome zunia pelos caminhos e pelos quelhos percorridos pelos pés descalços. Comiam-se azedas e amoras silvestres, figos lampos ou uvas ainda verdes roubadas nas estremas. A natureza enchia-se de signos que possuíam a maravilhosa simplicidade da criação. Os Verões secavam as terras e engorduravam as gentes, as sombras das folhas ou dos alpendres serenavam as sestas. Amavam-se os calços, mas vivia-se sem pressas; o ar rarefeito de uma indefinível felicidade, como se não se pertencesse a nenhum lugar, a relação entre o mundo e os outros fosse uma extensão do olhar. Os melros cruzavam voos e melodiavam nos bardos sem receios de caçadeiras; um rouxinol cantava, no abrandar do calor, para os lados do Fontão.  A paisagem surgia-lhe no olhar e  absorvia-a  com o sangue e o cérebro. Ignorante, praticava, inconscientemente, o velho princípio de que a humanidade cumpre-se no entendimento da terra e do ar.

Do alto de São Pedro via o rio a desenhar a curva do Salgueiral, e do lado de lá, em Riobom, no  Côto, os Avós paternos tentavam esquecer mortes roubadas na flor da idade. A Vila era a sua cidade, com carros para cá e para lá, sinaleiros de luvas brancas a abrir-lhes o caminho, lojas de cornetas de barro, harmónicas fado português, bombos, carros de bois e camionetas de madeira ; os balcões onde se apreçavam os tecidos para os vestidos das festas e as agências bancárias cujas portas se abriam ou fechavam para  poupanças ou necessidades.

A criança cresceu assim entre o alto de São Gonçalo e o Largo dos Aviadores quando o Avô que a criava decidia não esperar pela carreira e pedia ao Palhinhas que os levasse a casa.

Na hora em que, da Cumieira, a carrinha do Sousa trazia a boroa, e as mulheres com os filhos ao colo ou de canecos á cabeça corriam para a loja, ouvia no Rádio Alto Douro os discos pedidos para «os olhos castanhos do meu amor» ou para a «paixão da minha vida». Quando o sol, em Avões, dizia até amanhã, ajudava o Xico na rega da horta e molhava os espantalhos que estavam « todos aganados». No caminho da Senhora da Graça, a Margarida cantava Mariana lá da serra/Não saias da tua terra/Para seres americana/Ó tirana se és tão bela/Deixa o marujo ir á vela/Tem cautela Mariana. Estavam ainda distantes os anos da Memória: o tempo entre o que nos precede no entendimento e o que nos resta na recordação; a equação entre o que fomos e o que somos, que ninguém morre quando a sua lembrança permanece.

Com muita vida ainda para viver, mar para navegar e continentes para conhecer, adolescente à espera dos primeiros pêlos, percebeu rápido que nunca recuperaria  de um trauma de infância, como ferro em brasa no corpo e na alma; uma  marca de identidade, uma mancha inapagável, uma sombra vitalícia na história da sua existência.

Foi, pelo Caminho Velho abaixo, na companhia do Alberto, cortar o primeiro cabelo no fundo de Medreiros, matou a sede no jacto do jardim diante da Câmara, andou nos carrinhos da Alameda com o Socorro à porta, e espantou-se diante do quartel dos Bombeiros. Nunca mais esqueceu essa imagem.

Era novo e cheio de ilusão. Temia que as estrelas cadentes, nas noites de Agosto, incendiassem os  silvedos e os morouços, onde os caçadores, nas tardes de caça outonais, metiam os furões, e os homens dos capacetes dourados tivessem que vir no «descapotável vermelho» apagar as chamas vindas do céu.
Sim, era novo e inocente. Ignorava que os ossos do País estavam estampados nos olhos que se espiavam, nos silêncios repentinos que se faziam nas mesas de café, nos tarrafais escondidos da Pátria, nas lágrimas das casas esventradas, nos homens e mulheres perseguidos por não estenderem os braços ou recusarem os seus ideais.

Sim. Era novo e ingénuo. Sonhava com os olhos da Marisol; com a voz do Joselito; não gostava que a Mãe cantasse o Ai Mouraria da Amália, parecia-lhe que chorava, e adormecia com os cães a desafiarem-se nos portões, os bufos dos gatos esbaforidos pelas ruelas e uma coruja no Cume a ecoar presságios.

Foi no Avenida que viu Sissi a  Jovem Imperatriz, e dedicou  o seu primeiro amor casto à Romy Schneider... Mais tarde, no Salão dos Bombeiros, no Baile das Vindimas, dançou o twist e corou como um tomate por trocar os passos do tango…  Era um tempo de sonho e aventura,  sedução e prazer; um tempo que lhe dava todo o tempo, que soprava sobre ele pelo estreito funil que ia do presente até ao futuro; ainda não tinha passado e vivia a dimensão das suas horas.

Essa criança cresceu e agora envelhece – sou eu…

Por escolha ou imposição sempre andei longe da nascença, recuperando-a, amiúde ou esparsamente, conforme a distância do chamamento. Passava, e passo, muitas vezes junto dos nossos Bombeiros, mas jamais esqueci uma sua IMAGEM: o Senhor Zé Pinto à porta do Quartel, encostado, com um pé no estribo, a um carro, um cigarro na mão. Mais tarde cumprimentei-o, ali para os lados de Godim, onde me deslocava para visitar queridos amigos conhecidos na minha comissão militar em África. Nunca fui das suas relações. O meu conhecimento com ele, contudo, foi total.

Explico:

Acho que todos, na vida, nos cruzamos com pessoas de quem não gostamos: uma cara de petulância, um ar de bolsa farta, um olhar de cima a espezinhar os outros, um falar de vaidade insuportável, que repele qualquer vontade de contacto. Há casos em que nos enganamos, é certo, e o gelo transforma-se na reciprocidade da empatia, mas há fotografias que nenhum negativo consegue alterar em segundas provas. O Senhor Zé Pinto tinha a postura garbosa por pertencer aos Bombeiros; o orgulho de ser útil, num sorriso de cativante modéstia, que é sempre a marca das almas generosas; cativava o olhar e fomentava a simpatia dos passantes; tinha um rosto de bom carácter na honradez do fato macaco.
Eu falo assim porque o mundo está cheio de basófias,  ingratos que esquecem a prosperidade que conseguiram à custa dos assalariados e do sistema que os defende, e, agora, têm o descarinho intolerável de escarnecerem de uma sociedade em estado de necessidade, que vai buscar sempre aos mesmos os sacrifícios da salvação.

Muitos honestos e simples tiveram, têm e terão os Bombeiros da nossa e de todas as terras. Homens que por um pedaço de nada arriscam a orfandade e a viuvez de quem fica. Sujeitos à traição numa qualquer Serra, numa curva de estrada, num morro inacessível, num cavado sem fuga, numa casa em labaredas, numa dedicação de fraternidade. Pessoas destas não gananciam milhões, são felizes na ajuda, não vêm em nenhuma lista da FORBES, não precisam de fingir solidariedades – ELES SÃO A VERDADEIRA HUMANIDADE. Não fingem à pobreza – combatem-na; não se desculpam com a escassez de meios – suplantam-nos; não se encolhem no perigo – dominam-no; não se esquecem dos que morrem – choram-nos; não se assustam perante o cordão umbilical – erguem a vida; não se importam do esquecimento – deixam escrito o exemplo.
Numa altura em que, nesta cidade, se vai realizar um Congresso de Bombeiros, saibamos lembrar todos aqueles que se bateram com alma e suor, raiva e generosidade em defesa da comunidade.

Na pessoa do dr. José Alfredo Almeida, rato de biblioteca na procura de tudo que respeita à Corporação a que preside, numa dádiva que chega a comover pela raridade nestes tempos de egoísmo, que alia a cultura ao entusiasmo da partilha, e que, sorrindo às dificuldades, se abalançou, em parceria com a editora Mosaico, na escrita de um livro para este acontecimento nacional, o meu brado de admiração.

É bem verdade que as grandes heranças são os gestos que não se esquecem, as obras que se deixam nos alicerces da eternidade, os sorrisos de carinho e os olhares de amor. Recordei-me de tudo o que deixo escrito ao ver uma foto antiga em que está o SENHOR ZÉ PINTO.  Há seres humanos que são parte da iconografia de uma sociedade e de uma geração. ELE É-O.
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Memória dos nossos Bombeiros
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 8 de Setembro de 2011
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- Texto de autoria de M. Nogueira Borges. Imagens e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão com a anuência simultânea de M. Nogueira Borges. Clique nas imagens acima para ampliar.

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