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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As palavras de Camilo de Araújo Correia



Quando encontrei esta fotografia do Dr. Camilo de Araújo Correia (1925-2007) - médico, escritor e antigo presidente da direcção dos bombeiros da Régua - perdida das folhas do seu álbum, fora do seu sítio devido e do seu tempo, amontoada com outras que descoravam num velho armário cheio de poeira, tive necessidade de refazer o seu passado e escrever-lhe a sua história.

Sem nada mais saber, comecei por arrumá-la no seu tempo e enquadra-la no seu espaço. De imediato procedi, como se faz nas investigações, à identificação das pessoas que escutavam as palavras de Camilo de Araújo Correia. Encontravam-se na sua mesa presentes pessoas conhecidas no meio da sociedade reguense e dos bombeiros, a começar pelo Eng. Álvaro Mota, presidente da câmara da Régua, Dr. Aires Querubim Governador Civil de Vila Real, Rodrigo Félix, presidente da direcção Federação dos Bombeiros de Vila Real, Guedes de Moura, Inspector Regional dos Bombeiros do Norte e o Comandante Carlos Cardoso dos Santos (1922-2007).

Para começar a sua história, faltava apenas saber o que faziam aquelas pessoas em volta de uma mesa, num dos salões do quartel dos bombeiros da Régua. Pouco me ajudaram as buscas nos meus arquivos. Acreditei na sorte de encontrar publicadas as palavras que Camilo de Araújo Correia lia nesse momento, socorrendo-se da ajuda de um papelinho, a sua prótese da memória, como lhe gostava chamar.

Não satisfeito pelos resultados demorei-me em mais pesquisas na esperança de reencontrar as memórias que pudessem reconstituir esse momento. Os velhos jornais “O Arrais” da época não divulgaram qualquer notícia do acontecimento fotogrado. Ainda pensei que me pudessem valer as lembranças de pessoas amigas, mas não deram mais informações. Contudo, ao reler o opúsculo dedicado ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos, da autoria do Manuel Igreja, fui surpreendido pelo relato alusivo ao momento histórico que fotografia documentava e pela transcrição das palavras lidas nessa cerimónia por Camilo de Araújo Correia.



Como estes novos elementos, podia dizer que tinha desvendado o passado esquecido que a fotografia, só por si, não podia revelar. A agradável leitura do discurso de homenagem de Camilo de Araújo Correia, se é assim que lhe posso chamar, deu-me os pormenores que interessavam m para concluir as memórias perdidas e esquecidas nas cores da fotografia. Essa deliciosa crónica – posso a entender como tal - tinha sido escrita para a homenagem ao amigo Carlos Cardoso dos Santos, pelos 31 anos de brilhante e abnegado desempenho ao comando dos bombeiros da Régua. Uma homenagem que, como ele sublinhou, nunca poderia faltar.

Marcada para o dia 3 de Março de 1990, a homenagem ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos teve o significado de reconhecimento ao cidadão reguense que, por vontade própria, deixava o seu lugar no comandado dos bombeiros da Régua. O modesto programa abriu com uma sessão solene no salão nobre dos Paços dos Concelho, onde não faltaram os bombeiros, os grandes amigos e as entidades oficiais. Mas, o momento mais emocionante para todos, foi quando o velho comandante passou a última revista aos bombeiros, formados na entrada principal do quartel. Nesse adeus ao comandante, conta-se que viram lágrimas de tristeza nos rostos dos bombeiros.

Depois de servido o almoço de confraternização, coube ao Dr. Camilo de Araújo Correia fazer, e muito bem, o papel de orador principal, para distinguir a brilhante acção humanitária do homenageado. Como seu velho amigo conhecia-lhe o seu carácter e a sua personalidade. Mantinham laços de amizade desde o tempo, em que fora médico no hospital e mais tarde presidente da direcção dos bombeiros. Pelo que só podia sair-lhe do coração, o maior e melhor elogio de gratidão que era merecedor o Comandante Carlos Cardoso dos Santos, que aqui transcrevemos:



“Estivesse onde estivesse, a fazer fosse o que fosse, eu viria a esta homenagem ao senhor Carlos Cardoso dos Santos, pelos seus 31 anos de brilhante e abnegado comando dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

E viria, vencendo distâncias e afazeres, porque não sou apenas um reguense devoto dos seus bombeiros e grato a quem, ao longo de tantos anos, os disciplinou e dirigiu nos tempos difíceis caminhos da protecção e salvação do próximo. E nós sabemos que essa dificuldade pode ir do sacrifício familiar ao sacrifício da própria vida. Viria porque também sou um velho amigo e um inabalável admirador do forte temperamento altruísta do senhor Carlos Cardoso dos Santos.

Se admitirmos que uma pessoa volta a nascer, quando começa a trabalhar, exercendo a sua profissão que escolheu, pode dizer que sou natural do Hospital D. Luiz I e amigo do senhor Carlos Cardoso dos Santos, desde que nasci…  (…)



E foi com todo esse altruísmo, amadorismo e capacidade de relação, largamente exercidos no Hospital D. Luiz I, que o senhor Carlos Cardoso dos Santos apareceu nos Bombeiros Voluntários da Régua. Não admira, pois, que os 31 anos do seu comando tenham sido de negável eficácia e brilhantismo. E é por isso que aqui estamos com o ruído dos nossos aplausos e o silêncio da nossa gratidão.

O calor do meu brinde não ficara completamente explicado se não lhe dissesse que passei pela Direcção dos Bombeiros da Régua, ao que julgo, por influência ou, pelo menos, franca concordância do senhor Carlos Cardoso dos Santos. Mal chegado de uma penosa mobilização em Moçambique, pode dizer-se que foi uma partidinha dos meus amigos. Uma simpática e honrosa partidinha, devo confessar.

Peço licença para que o meu brinde seja extensivo à esposa do senhor Carlos Cardoso dos Santos e às esposas de todos os bombeiros. No peito de todas a sirene só deixa de tocar, quando o marido regressa a casa molhado, cansado…mas feliz”.

As palavras de Camilo de Araújo Correia, sejam elas no estilo de um discurso de homenagem ou de uma sua elegante crónica, como mais preferirem, deixa qualquer um de nós ainda comovido pela ternura dos sentimentos e do brinde feito ao velho comandante que, acredito tenha sido celebrado com vinho fino! Como são merecedores os grandes homens que viveram para fazer a paz e o bem. Elas são como que o retrato do comandante de corpo inteiro e fardado a rigor, para sempre. E, ao mesmo tempo, guardam um sentimento de admiração que ficou do primeiro dia em que se conheceram…no velho hospital da Régua, ainda instalado no Solar dos Lemos e ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia.

Para muitos, se calhar, esta foi a primeira oportunidade de recordarem este grande comandante e mais um discurso inesquecível de Camilo de Araújo Correia e entenderem o testemunho dos seus ideais com nitidez e mais paixão. Mas, para quem sempre os admirou, este momento permitiu um reencontro destes dois grandes homens na história dos bombeiros da Régua.


(Clique nas imagens acima para ampliar)
Com eles já na Eternidade, cada um de nós deve agora olha-lhos como símbolos de fraternidade e reconhecer-lhe gratidão.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O patrão Álvaro: coragem e valentia


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Ao lado do velho pronto – socorro Ford, o patrão Álvaro Rodrigues da Silva olha-nos com a nostalgia de um velho herói que a Câmara Municipal do Peso da Régua agraciou com a Medalha de Ouro (de valor e altruísmo), durante as cerimónias solenes das Bodas de Ouro da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua – os primeiros 50 anos de existência – celebradas em 30 de Novembro de 1930.

Nascido na Régua em 17 de Julho de 1873, o Álvaro Rodrigues da Silva foi um dos melhores bombeiros. Talvez de sempre. Conviveu com muitos bombeiros da velha que, é como quem diz, com os homens que criaram a corporação. Entrou muito jovem no corpo de bombeiros e, durante muito anos, serviu-o devotamente. Ser bombeiro era uma das suas paixões. Por mérito pessoal atingiu o posto de patrão, que hoje corresponde ao de chefe. Os companheiros apreciavam o seu talento para a chefia e elogiavam-no por ser um poço de valentia - um bombeiro destemido - e muito competente.

Considerado um cidadão simples e honrado, fez toda a sua vida a trabalhar como serralheiro, numa oficina que tinha montada no rés-do-chão de uma casa, a meio da Rua General Alves Pedrosa, hoje conhecida como Rua da Alegria. Faleceu em 12 de Fevereiro de 1952, com a idade de 78 anos, reconhecido meio social reguense como um homem que, ao serviço dos bombeiros, se tornou um dos seus primeiros heróis.

Foi o herói que, em 1930, o presidente da câmara Dr. Mário Bernardes Pereira quis homenagear. O edil, ao lado da distinta benemérita D. Branca Martinho, escolhida para presidir ao acto, e da população que enchia o Salão Nobre dos Paços do Concelho, num eloquente discurso reconheceu que o patrão Álvaro, num justo somatório de brilhantes valores individuais, destacava-se pelo seu espírito altruísta e paixão ao voluntariado. A emoção levou-o a pedir aos presentes que “diante da sua farda devíamos todos descobrir-nos com respeito”.

O patrão Álvaro não era homem que trabalhasse para ouvir elogios. Quem o conhecia, sabia que era um bombeiro que gostava de servir a sua terra e sua corporação. Sentia-se mais à vontade, pela sua maneira de ser, nos teatros das operações de qualquer tragédia humana quer elas fossem causadas por fogos, cheias do rio, acidentes ou calamidades naturais. E, por mais graves que fossem, sempre as enfrentou sem medo. Ele sabia que, quando a sirene tocava, os perigos não seriam obstáculo para deixar de salvar vidas e bens.

O patrão Álvaro socorreu e salvou muitas vidas em perigo. Para as missões de socorro onde era chamado mostrava o génio da sua coragem e valentia. Conta-se que, em algumas delas, foi graças à sua presença, que se evitaram males e desgraças maiores. Conhecemos, pelos relatos das notícias, a seu grande e eficiente desempenho num salvamento e regaste de dois homens que haviam ficado soterrados no fundo de um poço, numa povoação do concelho de Santa Marta de Penaguião. Quando a convicção de todos era de que esses dois chefes de família estavam mortos, e bem mortos, o seu arrojo e estímulo para bombeiros abatidos de cansaço e desânimo, ficou conhecido ao proferir a seguinte expressão: “Mortos os vivos, daqui não sairemos sem os arrancar de lá de baixo”.

A firmeza do patrão Álvaro fez com que os bombeiros que comandava acreditassem a levar até ao fim o salvamento de duas vidas, que pensavam já perdidas, após longas 16 horas de trabalhos de remoção de terras. Melhor do que as nossas palavras, podemos consultar mais pormenores dessa missão de salvamento – ocorrida a 10 de Agosto de 1929 - nas memórias do Chefe António Guedes, publicadas no jornal “O Arrais”, onde esteve também presente, que aqui temos o gosto de transcrever:

(Clique na imagem para ampliar)
“Se a memória não me atraiçoa, foi em dois ou três de Agosto de 1929, fomos chamados para Laurentim, povoado situada a poucos quilómetros da Régua, onde dois homens haviam fica soterrados num poço de dezoito metros de profundidade e quando procediam ao trabalho de ampliação de uma mina no fundo do mesmo poço.

Seguimos imediatamente para lá, cerca das nove horas da manhã…

Eu e chefe Álvaro analisamos a situação e ficamos com uma vaga esperança dos homens se encontrarem ainda vivos – isto no caso de se refugiarem na mina, na ocasião em que se deu a derrocada. E essa esperança recrudesceu ao depararmos com um cano galvanizado, emergindo apenas dois ou três dedos do solo, pelo que passava quase despercebido. Estaria esse cano ligado à mina? Não custa nada experimentar. E assim, colocamos ali dois bombeiros a fornecer ar, por meio da bomba braçal nº2, ligada ao cano encontrado.

Estávamos presentes dois chefes – Álvaro Rodrigues da Silva e eu, e dois sub-chefes -Armando Vicente e Augusto Costa.

O serviço de salvamento ficou assim estabelecido: no poço, dirigindo e auxiliando os serviços de desaterro, ficaria um dos chefes durante duas horas, no fim das quais outro iria o outro substitui-lo. E, cá em cima, dirigindo e auxiliando os serviços de transporte e descarga de aterro, em sitio que não estorvasse, estavam dois sub-chefes.

Por volta das 11 e meia da manhã, fui abordado por uma simpática velhinha – mãe de um dos homens soterrados - que me disse que desejava falar como o Comandante. Mandei chamar o Chefe Álvaro, a quem como o graduado mais antigo, competia exercer as funções de comando, e a velhinha então, de mão erguidas e o enrugado rosto banhado em lágrimas, suplicou: -Tirem dali o meu filhinho…

O angustiante fervoroso pedido daquela velha e pobre mulher comoveu-nos, emocionou-nos profundamente e dirigimos-lhe palavras de conforto e de esperança. Mas eram muitas toneladas de terra e pedregulhos que era necessário remover e guindar para a superfície…
(…)

Veio a noite e o cansaço estava a apoderar-se de nós. Havia já alguns bombeiros feridos e outros com as palmas mãos transformadas numas chagas autênticas. As dez horas já tínhamos a certeza que os homens estavam vivos, pois que nos falaram através do abençoado cano. As onze hora e um quarto da noite tiramos daquele horrível buraco o primeiro homem. Vinha quase desfalecido e completamente encharcado e enlameado. Logo a seguir tirou-se o outro, que se apresentava em melhores condições físicas mas igualmente coberto de lama.

E chegou então – para mim - o momento mais comovente e emocionante deste drama. A simpática velhinha veio novamente procurar-nos, a mim e ao chefe Álvaro, para nos agradecer o “milagre” de lhes termos salvo o seu filho. Com lágrimas de alegria e reconhecimento…abraçou-nos e beijou-nos com emoção e sinceridade. Considerei-me compensado dos tormentos que naquele dia passei”.

Era assim, cumprida mais uma missão de socorro com sucesso que se ficou a dever a todos os bombeiros que souberam compreender o apelo do seu chefe num momento de desânimo.

Percebemos o que sentiu o chefe António Guedes quando estava terminada a operação de salvamento. Há um sentimento de felicidade que o contagiava pela alegria sentida no rosto de uma mãe, agradecida aos bombeiros que tinha salvo a vida do filho. As suas comoventes palavras mostram a grande satisfação pelo dever cumprido, apesar dos tormentos e aflições de muitas horas de trabalho exaustivo, sem descanso nem alimentação, sob o sol escaldante de um dia de Agosto.

E, também percebemos porque o patrão Álvaro tornou, sem o querer, num herói amável e inesquecível.

Quase 80 anos passados sobre esse acontecimento faz todo sentido recorda-lo como um exemplo do ideal romântico de “Vida por Vida”, o lema que deve estar sempre presente no coração dos actuais bombeiros.

O milagre conseguido por aqueles bombeiros, sob o comando do patrão Álvaro, é uma das páginas mais brilhantes e sublimes da história da Associação, ainda molhadas pelas lágrimas de alegria de uma velha mãe. E, são essas lágrimas que, por anos que passem, nos fazem lembrar – sobretudo as gerações mais jovens de bombeiros - a lição de coragem e valentia do nosso voluntário patrão Álvaro.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Régua com os bombeiros de Ermesinde


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Em 1 de Maio de 1960, os bombeiros de Ermesinde foram recebidos na vila do Peso da Régua num ambiente de festa.

Eram aguardados na Rua da Ferreirinha, junto à famosa Garagem Janeiro, pelos bombeiros da Régua, numa impecável formatura, pelos directores da associação Alfredo Baptista e Augusto Mendes de Carvalho e pela população que queria assistir à entrega do diploma de sócio - honorário, distinção concedida pelos bombeiros de Ermesinde.

Esta brilhante cerimónia celebrava o princípio de uma união e amizade entre as duas corporações que, desde essa data, é mantida e consolidada com contactos permanentes.

Os bombeiros de Ermesinde, na sua primeira vinda à Capital do Douro, mostravam a sua determinação em unir os homens paz do litoral com os do interior. Fizeram representar-se por uma delegação que incluía o presidente da direcção Adélio de Oliveira e o Comandante Capas Peneda. Para que a cerimónia revestisse de maior brilho, os directores pediram aos associados com viatura própria, para integrarem a caravana com destino à Régua.

O brilho não faltou de nenhum dos lados. Os bombeiros da Régua, sentindo-se honrados com o gesto altivo, acolheram os seus camaradas de Ermesinde e com uma recepção que, seu presidente da direcção, considerou como grandiosa. Como reconhecimento pela honra recebida, aos bombeiros da Ermesinde foi entregue uma medalha privativa da associação reguense, colocada solenemente no seu estandarte, pelo Comandante Carlos Cardoso.

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A cerimónia continuou depois no salão nobre do quartel. Os discursos proferidos salientaram a importância dos laços de união entre as duas associações e, sobretudo, entre os homens que abraçam a causa do voluntariado. Pelas palavras do Comandante Capas Peneda veio o maior elogio de solidariedade. Confessou emocionado que os bombeiros da Régua podiam estar em Ermesinde como estivessem na sua casa. Ora, na verdade, é isso que hoje acontece quando lá vamos. Somos recebidos pelo actual presidente da direcção Artur Carneiro e pelo Comandante Carlos Teixeira como amigos especiais, onde temos sempre um lugar na mesa de honra. Da nossa parte, quando eles nos visitam, damos-lhe as mesmas atenções. Assim, a amizade entre as duas corporações resiste ao tempo e a distância que nos separam!

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Mas esta fotografia aviva as memórias da Régua nos anos 60. Além da oficina dos Janeiros, na rua da Ferreirinha estavam estabelecidos os grandes armazéns e algumas das principais lojas de comércio. Como artéria principal era movimentada e ligava, através da chamada ponte do Bate – Estacas, o centro da vila à vizinha freguesia de Godim. E, servia como a saída e a entrada dos veículos que percorriam a velha estrada nacional nº108 entre a Régua e Ermesinde, um percurso com sinuosos 94 km de distância.

A Régua, nesse tempo, vivia fechada em si e nas suas belas paisagens e pelos cenários de ruralidade que as mãos do homem transformaram em verdadeiros monumento naturais. Os grandes negócios faziam-se no sector dos vinhos.

E, muitas ajudas aos bombeiros vinham das firmas de vinhos, como a da casa comercial inglesa Sandeman que, em 18 de Junho de 1893, ofereceu a quantia de 25 mil réis. Ainda hoje é assim…

Algumas memórias e vivências desses velhos tempos são evocadas na notável crónica “A Botica do Anastácio”, de Joaquim Pires (pseudónimo do escritor Dr. João de Araújo Correia), publicada no jornal “O Arrais”, em ficamos a conhecer o quotidiano de ilustres bombeiros reguenses:

“A Régua actual, tornemos a dizer, não é muita antiga. Nasceu com a Companhia Velha, cujo edifício e armazém, à beira do nosso rio, são uma espécie de quartel-general do país vinhateiro. Era à Régua o foro de capital do Douro.
Mas, por hoje, vamos lá recordar a botica do Anastácio, situada na Rua dos Camilos, defronte da antiga loja do Valente Novo. Loja que mudou de nome português para nome francês, mudando o proprietário. Deus lhe perdoe!
A botica do Anastácio! Já toda a gente lhe chamava farmácia. Mas, o meu pai, amigo de termos velhos ainda lhe chamava botica. Assim como chamava Rua da Bandeira à Rua dos Camilos, porque os terrenos, por ali situados, tinham pertencido aos Portocarreiros, fidalgos da Bandeirinha, lá em baixo, na cidade do Porto.
A Régua não é muito antiga. Mas, já se pode ir falando da Régua de ontem aos actuais reguenses. Como tudo quanto nasceu, também, a Régua vai envelhecendo.
A botica do Anastácio é de ontem. É do tempo em que não havia clubes ou só havia um clube. É do tempo em que os mentideiros, os soalheiros, os centros de cavaco, eram as farmácias ou mercearias. Memorável ponto de reunião foi a botica do Anastácio - como lhe chamava meu pai. Memorável clube improvisado.
Anastácio, de pé, do lado de dentro do mostrador, deitava aos contertúlios, de vez em quando, uma palavra mansa.
Era homem calmo, correcto, farmacêutico limpo e honesto como não havia segundo. Receita aviada por ele saía das suas mãos como obra-prima em forma de garrafa, hóstias ou pomada. Morreu bastante novo, com uma diabete quase fulminante.
Contertúlios reunidos à noite eram aí meia dúzia. Além de meu pai, conto o Dr. Vasques Osório, mais conhecido por Doutor Galego, por ser filho de Domingos, galego de nação; Joaquim Lopes da Silva, homem de grande tino comercial, uma energia oriundo de Ovar; Cardoso Mirandela, então ajudante de notário, homem esperto e positivo; Joaquim de Sousa Pinto, merceeiro bem disposto, dedicado comandante de bombeiros; Joaquim Penhor, a quem chamavam o Tio Rico, e outros.
Conversavam sobre a política do tempo, contavam anedotas recessas, etc.
Tio Rico morava lá em cima, no Poeiro, numa casa que veio a ser residência paroquial. Creio que vivia com mulher e cunhadas. E, como não tivesse filhos, deixou a casa ao Cardoso Mirandela, sobrinho dele por afinidade.
A Régua não é muito antiga. Mas, como se vê, começa a ter que contar”.

Como bem conta o escritor reguense, pela botica do Anastácio passaram muitos homens que fizeram a história da Régua e, em especial, dos seus bombeiros voluntários.

Ficamos a saber que, por volta dos anos 30, nessa tertúlia estavam presentes o Comandante Joaquim Sousa Pinto (1927-30), um dos fundadores da associação, o Chefe Cardoso Mirandela e o pai do escritor que foi bombeiro (António Correia), que gostavam de dar dois dedos de conversa sobre a política do seu tempo…!

Bons tempos dessa Régua de ontem!

Hoje, passados quase 50 anos, quase tudo mudou na Régua.

Os costumes das pessoas e os horizontes da cidade são bem diferentes. As pessoas deixaram de reunir nas tertúlias. A cidade, que nasceu e cresceu nas margens do rio Douro, uma vez mais procura através dele novas formas de desenvolvimento, como é o caso do turismo. Chegam ao cais fluvial milhares de turistas atraídos pelos encantos naturais, pelo vinho generoso, único no Mundo, pelos rituais das vindimas e, ultimamente, pelas descobertas proporcionadas pelo “Museu do Douro”, onde se pode visitar a exposição dedicada à vida de um homem genial - a razão e o sentimento - como foi o escocês Barão de Forrester.

Enfim, a Régua como concelho desde 1837 e os seus bombeiros voluntários, a partir de 1880, estão voltados para o futuro e continuam a crescer ao compasso de um mundo em mudança, mas assente em quatro pilares basilares: o vinho, a paisagem, o turismo e a cultura.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O João dos Óculos a caminho da Eternidade

Se é muito difícil escrever sobre a morte de um homem é mais complicado escrever sobre a morte de um bombeiro em serviço numa missão de socorro, como sucedeu ao João Gomes de Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos, no violento incêndio ocorrido na Casa Viúva Lopes, na da Régua, no dia 8 de Agosto de 1953.

Quem ainda o conheceu como bombeiro deve saber porquê, mas quem como eu, apenas ouvi-o falar dele, interroga-se se não é absurdo e injusto um jovem homem, como ele era, perder a sua vida quando estava cumprir o dever de ajudar a salvar a vida e os bens do seu semelhante. Dizem que este é o risco de quem escolheu para o seu destino a divisa “vida por vida”. E, que Deus só escolhe e leva para junto si aqueles que mais ama. Se assim é, um deles, o melhor coração que encontrou no nosso seio, foi o do João dos Óculos.

Natural de Vila Pouca de Aguiar, veio cedo para a Régua com seus pais ganhar a vida. Por aqui, ficou até morrer no meio das chamas desse grande incêndio, quando tinha de idade 33 anos. Os companheiros tinham-no como um excelente amigo, apesar de ser um pouco triste e frio. Como o bombeiro nº 14 da associação reguense foi um fiel e dedicado servidor, sempre pronto a aparecer nas horas de perigo e maior aflição. Desempenhava a profissão de tipógrafo na famosa Imprensa Douro e, nos tempos livres, era sua alma artista que mais brilhava. Gostava de cantar e de tocar harmónica de beiços em que era exímio. A antiga Rádio Alto-Douro convidava-o para tocar o vasto reportório de músicas nos seus programas. Fazendo parte do Orfeão Reguense e da Orquestra Diabólica animou muitos espectáculos e festas.

A sua morte foi uma tragédia para todos. A começar pela família, a viúva D. Celeste Correia Figueiredo e os seus três filhos de tenra idade que, como se deve imaginar, lhes fez muita falta no seu sustento. Sabemos que sofreram dificuldades e privações na sua sobrevivência. À sua família valeram as ajudas em bens, alimentos e brinquedos que a direcção do Dr. Júlio Vilela sempre quis prestar, para os proteger da miséria em que ficaram. Os seguros de vida, nesse tempo, como ainda hoje, tinham valores reduzidos para compensar uma vida.
Como o passar dos tempos, a Régua não esqueceu o bombeiro João dos Óculos. A Câmara Municipal, presidida por Renato Aguiar, fez-lhe uma homenagem ao baptizar com o seu nome uma rua da cidade.

O escritor João de Araújo Correia, nas Bodas de Diamante da Associação (1955), lembrou-o assim, neste soneto:

“O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro

Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino…
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.

A sua associação -cândida amante -
Celebra hoje as Bodas de Diamante…
-Quase cem anos de existência honesta.

Um bom diante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.”

O triste acontecimento está bem gravado na memória colectiva. E, uma placa de mármore, no meio de uma parede do quartel, assinala em sua memória esse dia fatídico. E aviva o esquecimento do seu nome. Os bombeiros do presente têm um sentido de respeito e solidariedade pelos velhos camaradas. Não esquecem a perda deste homem. O João dos Óculos vive nas suas lembranças e nos seus medos… O seu exemplo de bombeiro sensibiliza-os como uma prova de abnegação, valentia e sacrifício.

O velho Chefe António Guedes nas suas memórias escritas no jornal “O Arrais”, em 25 de Janeiro de 1979, que esteve a combater incêndio com o João do Óculos, descreve-nos, com dor e nostalgia, o instante em que assistiu à sua morte, assim desta maneira:

“Passados tempos, a importuna sirene convoca-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes, desta vila, e ele para lá seguiu entre mim e o motorista.

Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam o prédio sinistrado.

À uma hora e meia da manhã um bombeiro pediu-me para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.

Mandei chamar outro bombeiro, para isso, mas o João estava ali próximo ofereceu-se para substituir o camarada.

O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este, de pouca espessura, aplicado no soalho o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.

O João tomou conta da agulheta estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.

Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinzas, que quase nos cegavam. A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra entalado por escombros, em cima de um tonel.

Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos se deixaram de ouvir. Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.
(…)

Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a ficar de evitar que ficasse carbonizado, o que se consegui. E, só as seis da manhã - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.

Pobre e infeliz João! Como senti a morte daquele pequeno e grande amigo pequeno e franzino, como era, tinha uma alma de gigante. Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.”

Nas cerimónias fúnebres, os bombeiros e o povo mostraram sentidas manifestações de desgosto e profundo pesar. As duas dezenas de corporações de soldados da paz, num sentimento de união, vindos de todo o país, associaram à dor e à mágoa dos que mais amavam este bombeiro… da Régua.

O corpo do João dos Óculos foi velado no quartel pela sua família e por uma guarda de honra permanente de bombeiros. Ao meio da tarde, o seu cortejo fúnebre saía em direcção ao cemitério do Peso. Os comerciantes, em sinal de respeito e de luto, encerravam as portas das suas lojas. Ao passar pela Av. Dr. Manuel de Arriaga “formou-se um apinhado de gente que assistia comovida à passagem do cortejo fúnebre”. Escreveram assim nas suas notícias os jornais da terra.

Deste mundo, partia para sempre um ser humano que tivera uma morte penosa a praticar o bem, a quem se dava o último aceno com lágrimas de emoção e de saudade…!

Na inédita fotografia, o João dos Óculos estava ainda a caminho da Eternidade, onde Deus o chamou para voltar a olhar pelas nossas vidas, ganha mais sentido o angustiante silêncio dos bombeiros da Régua, fardados num luto de tristeza, seguindo os passos sagrados e as orações de fé do Padre Avelino Branco.

Afinal, como aqueles bombeiros, é no caminho entre esta e a outra vida intemporal que muitos homens percebem que é ainda possível viver num mundo sem egoísmo.

Aprendam, se querem ter melhores sentimentos, a grande lição de vida e de humanidade que nos deixou o bombeiro João Gomes de Figueiredo, o nosso João dos Óculos.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Dr. Júlio Vilela: um grande presidente de direcção



O homem que, em 3 de Dezembro de 1955, discursava no restaurante Borrajo, com o velho Comandante Lourenço de Almeida Medeiros, Pôncio Alves Janeiro, um dos proprietários da Garagem Janeiro e o Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, Joaquim Augusto Trindade Rodrigues todos em volta da sua mesa, era o distinto advogado, Dr. Júlio Vilela (1954-1963), um dos melhores presidentes que passou pela Direcção da AHBV do Peso da Régua.

Nesse dia, os bombeiros da Régua festejavam num jantar o 75.º aniversário (Bodas de Diamante) da Associação. O Dr. Júlio Vilela aproveitou a data para na presença dos membros dos órgãos sociais, do comandante Medeiros e seu do corpo activo, onde se destaca o bombeiro Joaquim Sequeira Teles e de alguns beneméritos, fazer um balanço do seu primeiro ano à frente da direcção dos bombeiros.

Na verdade, ele tinha motivos para estar satisfeito com os bons resultados. Abria, na história dos bombeiros da Régua, uma nova página, ao “inaugurar” o novo quartel, que se encontrava inacabado há mais de 25 anos. Realizavam um sonho que muitos não tinham conseguido realizar. Fechava para sempre o velho quartel que, desde 1923, funcionava sem condições numa exígua casa velha no Cimo da Régua. Até então, o edifício-sede estava reduzido a um esqueleto (embora fosse projecto do arquitecto Oliveira Ferreira prometesse uma obra grandiosa) mas, era considerado a forma definitiva de um sonho. A sua determinação conseguiu tornar o sonho numa realidade, ao deixar concluída a actual casa dos bombeiros.

Durante os nove anos que o Dr. Júlio Vilela liderou a direcção, os bombeiros da Régua tiveram uma fase de grande crescimento e de reconhecimento público. Ele, num curto espaço de tempo, conseguiu tornar a Associação cada vez maior e mais eficiente, o que ficou visível pela vasta obra que realizou. E, coube-lhe gerir com cuidado e respeito, a sucessão do velho comandante Lourenço Medeiros, que não foi nada fácil. Escolheu um homem para comandar os bombeiros, Carlos Cardoso (1959), que, com as suas novas ideias, apostou mais na formação dos bombeiros e na modernização dos equipamentos. Infelizmente, o Dr. Júlio Vilela só não fez mais pelos bombeiros porque a morte, de forma abrupta e cruel, lhe acabou aos 52 anos de vida uma brilhante carreira e o seu meritório percurso como um dedicado director associativo.

O Dr. Júlio Vilela foi um cidadão conhecido e respeitado. Quem o conheceu e com ele conviveu admirou-o pelas qualidades morais. Era também um bon vivant, e sobretudo um excepcional advogado, apreciado pelo seu verbo fácil e eloquente. Foi um dos mais famosos do seu tempo, com grande fama na comarca da Régua. Politicamente foi um verdadeiro democrata e um militante activo e envolvido mas causas sociais. Para além, do seu trabalho nos bombeiros colaborou e ajudou a crescer o clube de futebol da sua terra. Admirado pela sociedade do seu tempo, não deixava de conviver com as pessoas mais simples e os pobres, que ouvia atentamente e ajudava. Politicamente foi um verdadeiro democrata. Um desses amigos, era o engraxador “Porrório”, que lhe vendia a cautela da lotaria, entre o contar de anedotas de fazer corar e sorrir e, quando lhe pedia, oferecia-lhe os seus fatos ainda em bom estado e até pares de sapatos.

Faleceu há 47 anos, em 5 de Agosto de 1963. Passando estes longos anos, os bombeiros não esquecem o Dr. Júlio Vilela, a quem já prestaram simples homenagens de gratidão. A primeira aconteceu, ainda em 1963, ao ser descerrada uma sua fotografia, que se encontra exposta na sala-museu. A outra deu-se em 2005, ao baptizar-se o carro de incêndios urbanos com o seu nome, em que foi “padrinho” o irmão Abeilard Vilela.

O enaltecimento de seu carácter humano e fraterno está exposto no seu “In Memoriam”, escrito por alguém que só se identificou pelas iniciais A.D. no suplemento do jornal “Vida por Vida”, de Agosto de 1963, que aqui transcrevemos:

“Inesperadamente, sem que nada pudesse supor o trágico desenlace, finou-se o Dr. Júlio Vilela, prestigioso Presidente da Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua, distinto causídico e reguense altamente cotado pelos seus dotes de bonomia e inteligência, pela sua modéstia que não conseguia ocultar um espírito brilhante – e pelo bairrismo doseado de sensatez e boa compreensão.

A Régua perdeu um dos seus filhos mais queridos e um dos seus mais votados servidores. Sem alardes, sem vaidades balofas, dentro daquela simplicidade de bon vivant que era apanágio, o Dr. Júlio Vilela tinha dentro de si, bem à vista, a alma de um grande reguense. Manifestou-a sempre. Mas, se outros elementos não houvesse a justificar esta asserção, bastaria considerarmos a sua actuação na presidência dos bombeiros, a sua perseverança, a sua boa vontade, o seu senso directivo, o seu amor à Corporação. Já antes de ser director, o Dr. Júlio era um bom amigo dos bombeiros da sua terra. Das suas palavras, das suas atitudes, ressumava, cristalina, sem pretensões, sempre de forma irrefutável, a sua dedicação. Depois, foram nove anos de efectivo esforço, numa colaboração íntima com os seus companheiros de direcção, e durante esse tempo a Corporação conseguiu uma posição brilhante nunca atingida, que a classificou entre as primeiras do país, dentro da sua esfera de acção.

Bastava isto para justificar a gratidão e amizade que lhe devotam os reguenses. Mas nem só isto valia; nem o mais que o Dr. Júlio Vilela tenha feito por qualquer forma, a favor da sua terá. A alma do povo, desde povo rude, humilde e chão, tem rasgos de perspicácia e de compreensão que se não encontra em todas as esferas. E o povo da Régua admirava no Dr. Júlio Vilela o homem probo e simples, inteligente e bom amigo, que tinha uma palavra suasória ou dito de espírito para animar quem quer que fosse – ou um gesto de solidariedade para auxiliar um desventurado.”

Os homens passam e as instituições ficam… mas ficam as marcas dos homens. As marcas do Dr. Júlio Vilela são notórias. Aquele elogio, pode parecer um louvor de circunstância, mas a simplicidade e autenticidade daquelas palavras correspondem à sua personalidade. Em boa verdade, só podem pecar por defeito, isto é, não desvendarem a verdadeira grandeza do homem que foi, sobretudo, um advogado de boas causas...! Aquelas que mais fizeram prosperar a sociedade reguense.

Para os bombeiros da Régua, a memória do Dr. Júlio Vilela está viva. Não dizemos isto só por dizer…! O Dr. Júlio Vilela fará sempre parte de uma obra constante e colectiva, erguida para o bem da Régua. E do seu povo…! Mas, só é possível, como ele dizia, fazer mais e melhor com a soma de todos.     
- Peso da Régua, Outubro de 2009, José Alfredo Almeida. Revisto e atualizado em Outubro  de 2010. 

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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A passagem do testemunho

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Foi uma cerimónia emotiva, o momento da passagem de testemunho de Carlos Cardoso dos Santos a Fernando de Almeida (1990-1996), que em 12 de Agosto de 1990, tomava posse como comandante dos Bombeiros Voluntários da Régua.

Além dos convidados oficiais, onde se destacava o Eng. Álvaro Mota, presidente da Câmara Municipal e o Senhor Padre Luís Marçal Gouveia, esteve presente o velho comandante para, com muita devoção e carinho, para apadrinhar o seu sucessor e colocar-lhe as divisas na sua farda azul. Com este solene e distinto acto, o velho comandante fechava um ciclo nos bombeiros do Peso da Régua. As três décadas do comando de Carlos de Cardoso dos Santos foram de grande estabilidade no Corpo de Bombeiros. As várias direcções que o acompanharam, ao longo de 31 anos, deram o melhor para o engrandecimento da associação, deixando um trabalho positivo no melhoramento do quartel e na modernização do parque de viaturas de incêndios e de saúde.

Ao assumir novas funções de comandante, Fernando de Almeida que, até essa data, era o presidente da direcção (1988-1990), teve de abdicar desse seu cargo social. A sua desistência provocou a demissão de todos elementos dos órgãos sociais. E, perante, a situação foram convocadas, nos termos estatutários, as eleições.
Imediatamente duas listas de associados apresentaram as candidaturas: a liderada por José Manuel Moura e outros elementos da direcção anterior e uma alternativa, chefiada pelo professor Renato Aguiar, ex-presidente socialista da Autarquia e, por inerência presidente da assembleia-geral, que tinha sido derrotado para a presidência da Câmara Municipal, pelo social-democrata Álvaro Mota

Os sócios da Associação, em assembleia-geral, realizada no dia 12 de Outubro de 1990, escolheram, por escassos cinco votos, a lista de José Manuel Moura (1990-92). Os bombeiros, parece que apoiantes da lista contrária, reagiram mal e com algum desagrado à escolha. Agindo mais com a emoção do que com a razão, a totalidade do Corpo Activo decidiu auto-suspender as suas funções….Assim mesmo! Queriam dar um exemplo de força, mas apenas conseguiram mostrar falta de razão na atitude, ausência de valores éticos e um total sentido de irresponsabilidade.

Esse momento de crise e mal-estar prejudicou, uma vez mais, a imagem dos bombeiros, manchou a história da Associação e envergonhou a memória dos seus fundadores. Esquecendo as regras do civismo e do humanismo, os homens sem valores procuram mais valorizar as suas aspirações pessoais em vez de respeitarem sentimento colectivo e a valia histórica da instituição.

O caso foi comentado nos jornais locais e nacionais como uma crise nos bombeiros. A gravidade dos factos não dignificou em nada o prestígio da centenária associação e dos bombeiros com e sem farda que, ao longo de sucessivas gerações, a respeitaram e a tornaram cada vez mais eficiente e maior.

Com a legitimidade de ter sido um ilustre director, o Dr. Camilo de Araújo Correia, numa deliciosa crónica intitulada “Uma Chamada na eternidade”, publicada “O Arrais”, de 17 de Outubro de 1990, sentiu a necessidade de comentar o caso, no seu estilo de humor critico, bonomia e fina ironia, com uma lição de moral aos bombeiros faltosos:

“Pelo que os jornais disseram abertamente e os amigos falaram à boca pequena, a última eleição dos elementos directivos dos bombeiros voluntários do Peso da Régua teve aspectos de braço de ferro e ranger de dentes.
Não cabe no meu comentário referir as serpentinas e garrafinhas de cheiro que das duas falanges atiraram uma à outra, traduzindo pútridos fermentos de incuráveis frustrações.
Eu sei que eleições são eleições e falanges são falanges. O que eu não sabia era que o recurso ao “vale tudo” pudesse um dia acontecer nos garbosos e briosos bombeiros da minha terra.
Mas aconteceu.
Os rapazes do Corpo Activo, toldados pelo miasma político latente, pousaram a machadinha, só porque não ganhou a lista da sua simpatia!!! E não se julgue que foi gesto indigesto de momento. Noventa por cento dos bombeiros já se negou a prestar serviço.
Esta atitude insuspeitada em mais de cem anos de História impoluta, não surpreendeu, tanto assim, o homem que hoje sou, um pouco capaz de acreditar em tudo.
Quem se surpreendeu até à comoção foi aquele menino que anda dentro de nós e um dia recordei.
(…)
Naquele tempo os meninos vestiam a farda para serem homens. Os homens de hoje despem-na para serem nada.
Quero fazer uma chamada na eternidade, nesta hora de passar a revista cá terra a uma formatura de nadas:
- Manuel Maria de Magalhães…
- Presente!
- José Afonso de Oliveira Soares…
- Presente!
- Joaquim de Sousa Pinto…
- Presente!
- Camilo Guedes Castelo Branco…
- Presente!
Sempre fiéis à sua Corporação, à sua terra, a si próprios! Mesmo no infinito”.

Agora, no infinito, o Dr. Camilo ao lado desses garbosos e cultos comandantes - o poeta, o pintor e o jornalista - numa amena e humorada cavaqueira de amigos, estará, por certo, a sorrir para alguns dos seus conhecidos velhos bombeiros, que só sabiam correr para apagar os fogos com o coração cheio de humanidade. Eles, certamente, no vagar do tempo estarão a desvendar pedaços de novas e divertidas histórias, com a mesma ternura e ironia, que nos comovem de pertencer a esta nossa grande família. E, que deixa de herança aos vindouros, um incalculável património imaterial, o maior legado das memórias colectivas dos bombeiros voluntários da Régua.

Estes extraordinários homens fazem não só parte do nosso passado, mas muito mais, do presente e do futuro. Sabemos que eles são fiéis à sua corporação e à sua terra em qualquer lado…mesmo na Eternidade. Se queremos ser os melhores bombeiros cá na nossa terra, se queremos honrar os seus testemunhos de vida, precisamos de escutar as suas palavras, os seus conselhos…os seus ralhos, para percebemos bem o valor e a grandiosidade da instituição.

E, quem não for capaz de os entender não será capaz de entender mais ninguém…!
- Peso da Régua, Setembro de 2009, José Alfredo Almeida.

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O desfile na Figueira da Foz

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Era tempo de verão, com a praia da Claridade cheia de veraneantes, num período áureo da mais bela e cosmopolita praia do país, quando na tarde de 30 de Julho de 1961, os bombeiros voluntário da Régua, desfilavam ao som de bombos e clarins - à frente com a velha ambulância Ford V8 e o carro de incêndio Chevrolet - pelas principais e movimentadas ruas da Figueira da Foz.

Este desfile acontecia no fim de uma longa viagem, que tinha começado ao amanhecer na Régua, preparada como uma romagem de gratidão para apresentarem aos bombeiros figueirenses o sincero reconhecimento pela atribuição do título de sócia - honorária à associação humanitária duriense. Com esta honrosa distinção enaltecia-se não só a sua brilhante história como o trabalho e o mérito de uma equipa de dirigentes notáveis e de um jovem comandante cheio de aspirações. A notícia do jornal “Vida por Vida” dizia que os bombeiros da Régua partiram rumo à Figueira da Foz para “agradecerem a honrosa distinção e patentearem o quanto a Régua se sentia cativada pela deferência”.

Ao olhar para as fotografias do desfile, que se revelam pela primeira vez, as recordações desse tempo vêem à memória como se estivéssemos a assistir um filme antigo em que, os nossos garbosos e briosos bombeiros, vão ganhando uma nova vida, encantando-nos com os seus momentos de humanidade. Foram assim os anos de comando de Carlos Cardoso dos Santos. Esta viagem, que ele sonhou, não foi um simples passeio. Seguia na caravana uma representação que ia divulgar o nome da Régua como berço do vinho do Porto. A viagem serviu para os bombeiros levarem na sua bagagem a beleza natural da Régua e da região demarcada do Douro, à altura um destino turístico completamente desconhecido no país, a fama do nosso vinho fino, único no Mundo, e as potencialidades do Alto-Douro Vinhateiro, que foi em 2001 consagrado como património da humanidade, considerado “no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável capaz de assombrar o mundo”.

Deve dizer-se ainda que Carlos Cardoso foi o principal responsável pelo forte dinamismo do Corpo de Bombeiros e pelas relações de amizade e de intercâmbio de saberes e experiências, que se estabeleceram com outras importantes congéneres do país. Depois, como um homem bom, procurou fazer sempre a amizade e fraternidade entre os homens que vivem do bem comum e da solidariedade humana.

Sem saudosismos do passado, gostávamos de voltar a fazer outra viagem à famosa praia da Claridade, com os meus ideais de Carlos Cardoso dos Santos, seguindo os novos itinerários geográficos, para renovar os laços de amizade dos homens ligados ao vinho e à vinha com os das gentes do mar da Figueira da Foz. Uma das melhores coisas da vida é podermos manter estas velhas amizades. As que resistiram à erosão do tempo e nos ajudaram a vencer os momentos de dificuldades.

Para recordarmos melhor este acontecimento, transcrevemos parte da notícia “Romagem de Gratidão”, inserida no jornal “Vida por Vida”, de Julho de 1961, em que nos são contados mais pormenores da vigem, desfile e recepção aos bombeiros da Régua:

“Quis a Corporação dos Bombeiros Voluntários da Figueira, num gesto de penhorante camaradagem, conferir à nossa Associação o grau de sócia honorária. Não se pode um gesto destes, no meio de homens que vivem o ambiente do bem comum e da solidariedade e de solidariedade humana.
Mas, os bombeiros Voluntários da Régua é que não podiam ficar indiferentes a tão cativante atitude.

E assim é que, demonstrando a sua gratidão pela honra recebida, se deslocaram à Praia da Claridade, no passado dia 30 de Julho, para em pessoa, agradecerem a honrosa distinção e patentearem o quanto a Régua se sentia cativada pela deferência.

Por Viseu, Aveiro, Praia de Mira, fomos rodando até à grande praia de Portugal – até à hospitaleira terra da foz do Mondego.

Apesar da distância a considerar para um só dia, a caravana compôs-se de dois carros, dois veículos da corporação e vários carros particulares.

Antes da cidade, a caravana parou. Num gesto amigo, a Corporação Figueirense aguardava os visitantes. Eram 16 horas. O tempo urgia, e após os cumprimentos, retomou-se a marcha, agora comandada pelos bombeiros figueirenses.

À entrada da cidade, organizou-se o desfile, comandado pelo Comandante Carlos Cardoso dos Santos, da Régua. Marcialmente, em bom aprumo, ao som clangoroso dos bombos e dos clarins, as duas Corporações desfilaram, seguidos pelas viaturas, até à “domus” dos briosos soldados da paz da linda Figueira da Foz.

Seguidamente, o Senhor Presidente da Direcção dos bombeiros voluntários da Figueira da Foz, leu um interessante discurso em que fez o elogio do voluntariado e se referiu amistosamente aos bombeiros da Régua.

No impedimento do Dr. Júlio Vilela, Presidente da Direcção, agradeceu o Sr. Dr. António Veludo que, num improviso, disse palavras de esplêndido sentimento humano e de aproximação.

Os oradores foram amplamente ovacionados, e o comandante Carlos Santos deu ordem de sentido e destroçar.

Destroçar…Houvesse apetite para “destroçar”! É que, imediatamente, os camaradas figueirenses, com distinção para o seu ilustre comandante, iniciaram a tarefa de conduzir os componentes da caravana reguense, sem excepção, ao salão de festas do grande quartel figueirense. E, ali, em monumentais mesas, encontrava-se servido um riquíssimo copo de água.

Bem hajam - honra vos seja feita camaradas da Figueira da Foz! Ali, no copo de água, usou da palavra o nosso amigo velho Comandante Capa Penedas (do CB de Ermesinde), que sabendo da deslocação, teve a amabilidade de se antecipar à nossa chegada, Em toda a parte, o nosso grande amigo compareceu. Agradecemos.
Honra, pois e glória à velha e simpática corporação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz! A Régua, na primeira oportunidade, espera-vos!”


Não sei se essa primeira oportunidade chegou a acontecer. Não tenho conhecimento nem uma informação segura, mas caso ainda não tenho ocorrido, os bombeiros da Régua tem todo o gosto de receber os seus camaradas da Figueira da Foz na sua cidade, no seu quartel Delfim Ferreira, para saborearem um cálice de Porto, o nosso “vinho fino”, os outros vinhos do Douro, como os tintos Cabeça de Burro e o Tellus da adega cooperativa, navegarem nas águas do rio e se deslumbrarem, em Galafura, com a paisagem que se avista do miradouro de S. Leonardo, como se fosse o capitão de um barco gigantesco de pedra que ali tivesse encalhado para a eternidade.

Como em 1961, repetimos à moderna e activa corporação humanitária dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz: a Régua espera-vos, sempre…!
- Peso da Régua, Setembro de 2009, José Alfredo Almeida.

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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Recordação da passagem por Coimbra

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Recuamos 45 anos no tempo, para voltarmos a passar pelo Largo da Portagem, junto ao rio Mondego, em Coimbra, no magnifico Chevrolet, acompanhados pelos mesmos garbosos bombeiros – alguns felizmente vivos e boa saúde como o Laurindo Lemos, o Armindo Pinto e o Lafayete - para uma paragem de descanso, numa viagem que, em 2 de Junho de 1964, tinha como destino o regresso de Évora à Régua.

No caminho pelas ruas da baixa coimbrã voltamos a ter a sorte de cruzarmos com o velho fotógrafo António Teixeira. E ainda bem! Esse encontro permite-nos conversar sobre as boémias dos estudantes, as capas negras, as queimas das fitas e os fados e as serenatas ao luar. Uma conversa sem fim….para recordar o tempo passado. Emocionado com aquelas fardas azuis, que sempre o apaixonaram, o simpático fotógrafo percebeu que, naquele dia, estava viver um momento invulgar.

Os bombeiros da Régua eram personagens diferentes que mudavam o sentido e às suas vivências citadinas. Aqueles homens eram diferentes de todos que já tinha captado em imagens pela sua antiga máquina fotográfica. Ele, podia agora, juntar-se ao lado deles, próximo do carro de fogo, e fazer o retrato que tanto desejava, como se fosse também um desses briosos bombeiros. Era aquela passagem, sua oportunidade de entrar ainda a tempo no imaginário desse maravilhoso mundo, que o fazia sonhar desde os tempos de infância. E, de nesse momento, fugir ao efémero da vida e de conquistar a sua notoriedade, ao lado dos bombeiros, impecavelmente vestido no seu melhor fato. Se calhar, até a própria imortalidade nos arquivos e nas nossas memórias.

Essa passagem por Coimbra é um momento marcante na vida desse grupo de bombeiros. A viagem para Évora era uma espécie de prémio pelo seu empenhamento e dedicação ao voluntariado. Esses homens fizeram parte da história de um grande acontecimento para os destinos dos bombeiros. É o que dizem, nas costas do retrato, as palavras dactilografadas numa antiga Remington do fotógrafo: “Recordação da passagem por Coimbra dos Bombeiros Voluntários da Régua, no regresso de Évora, onde foram tomar parte no CONGRESSO DOS BOMBEIROS PORTUGUESES”.

Nesses tempos da década de 60, as distâncias que separavam a então vila do Peso da Régua e a cidade de Coimbra eram muito maiores e, então para Évora, já nem falava. Mesmo assim, os bombeiros da Régua marcaram uma forte presença no 16.º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, realizado nessa cidade alentejana, entre 27 a 31 de Maio de 1964.

Desde então, as acessibilidades rodoviárias do país melhoram muito com a construção de melhores vias de comunicação. O mesmo aconteceu com nos equipamentos e carros dos corpos de bombeiros e com a gestão associativa. As velhas estradas nacionais a percorrer entre o norte e o sul pareciam nunca ter fim. Ir de carro do interior até ao litoral e ao sul era uma aventura para longas horas de jornada, quando não fosse um dia inteiro, que tinham paragens obrigatórias no caminho para almoçar bem, descansar e, em dias de azares, mudar os furos nos pneus, e outras peripécias divertidas que ajudavam a passar o tempo. A cidade dos estudantes era, nesse tempo, um lugar de passagem – e, muitas vezes, de paragem - para o trânsito rodoviário que circulava para o sul ou para o norte. Como foi o caso dos bombeiros da Régua que, em 1964, viajam de Évora, no carro de fogo, que é conhecido com o nome de “Nevoeiro”.

Confesso que gosto muito desta fotografia, a observo vezes sem conta, comovido com o exemplo desses bombeiros, que marcaram uma época de glórias…e nos deram o melhor de si, num tempo em que tudo era mais difícil de conseguir. Recorda-los hoje, é um acto de eterna gratidão. Eles são uma memória futura do que é o verdadeiro voluntariado. Eles dizem-nos, com a sua humildade espelhada nos seus rostos, que o voluntariado tem uma dimensão social, humana e fraterna.

Em homenagem a estes generosos homens, recordamos a crónica “Os meus Bombeiros” do Dr. Camilo de Araújo Correia – Presidente da Direcção da AHBVPR em 1964/65 – publicada no jornal “O Arrais”, em 6 de Dezembro de 1990, onde nos conta deliciosas memórias dos bombeiros do seu tempo….em que o Justino fazia as suas divertidas graças:

“Quem já fez uma dezena de anos, ao assistir a estas festas centradas nas magníficas instalações dos nossos bombeiros, não pode deixar de recordar o velho e minúsculo quartel do Cimo da Régua. Velho, modesto e pequeno, mas muito querido dos seus frequentadores e visitantes fortuitos, sem falar do rapazio, incapaz de passar adiante sem se deslumbrar como o pronto -socorro de cadeirinhas e com a ambulância, uma caranguejola esquinuda, de um branco duvidoso e conforto ainda mais duvidosos…Os carros entravam à justa na porta estreita, sempre com grande vozearia de indicações e avisos.

O quarto do Zé Pinto, o quarteleiro, era também minúsculo e abria para o parque automóvel. Deste se passava à sala de jogos, por dois degraus. O quartel acabava aqui, se não contarmos uma pequena cozinha lá no fundo. Cozinhava ali a senhora Antoninha, esposa do Zé Pinto, ainda hoje inconformada viúva, e ele próprio preparava os petiscos que os jogadores da noite lhe pediam.

Jogava-se um bilhar muito gozado, um dominó muito batido e umas cartas muito lambidas.

Havia, ainda uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe, por esporádico leitor.

As formaturas só se desfaziam no quartel, à medida que iam entrando. De maneira que a porta estreita oferecia grandes dificuldades para manter o aprumo. As maiores dificuldades eram as do Justino, garboso porta-bandeira de muitos anos. Garboso, mas desastrado…De rígida marcialidade, esquecia muita vezes o globo da entrada: aquele globo de luz melancólica marcada por uma cruzinha vermelha. A rigidez do corpo e do gesto não lhe permita baixar suficientemente a bandeira. Zás!...mais um globo. De nada valiam os avisos mais próximos, feitos, disfarçadamente, pelo canto da boca: - Ó Justino…Ó Justino…olha o globo! Bumba!...mais um.

Até que um dia o Justino, muito infeliz, propôs que se arranjasse um globo de lata.

Coitado do Justino. Já lá está, nem sei há quantos anos.

Não pôde levar a sua querida bandeira dos Bombeiros da Régua. Ainda bem. Eu sei lá, se com o vagar da Eternidade, nos andaria a quebrar as estrelas, uma a uma”.

Tem toda a razão, Dr. Camilo… esse nosso Justino não era nada de confiar! Com um bombeiro da Régua assim distraído no quartel da eternidade, uma sua passagem mais descuidada pelo estrelado firmamento duriense, era motivo para nos tirar a luz cintilante das nossas maravilhosas noites de verão, à beira das margens e socalcos do rio Douro. Mas, no imenso infinito, o bombeiro Justino – e, como ele, tanto outros - continua ainda dar sentido e humanidade à nossa existência e a fazer acreditar-nos que, a vida cá na terra, pode ser mais que do que uma simples passagem… na vida.

Como aquela passagem por Coimbra que, pelo retrato do fotógrafo António Teixeira, será recordada com saudades, num regresso ao futuro, como uma viagem inesquecível para aquele grupo de bombeiros da Régua.

Ao contrário do que se diz, há lugares em que devemos voltar, sempre...nem que seja, outra vez, de passagem! - Peso da Régua, Setembro de 2009, José Alfrefo Almeida.

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sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Memórias do Serviço de Transporte de Doentes nos Bombeiros da Régua: As pandemias da gripe espanhola à gripe A


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Em 3 de Março 1968, os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua (BVPR) recebiam uma nova ambulância Mercedes Benz, modelo 220 D, para melhoraria do seu modesto serviço de transporte de doentes, à qual foi dado o nome de "Nossa Senhora da Conceição", em homenagem a D. Sílvia Ferreira, grande benemérita da instituição.

Nessa data, o corpo de bombeiros dispunha em actividade regular de uma velha ambulância. Esse veículo já não satisfazia as exigências de um serviço quase permanente e do aumento extraordinário da população, motivado pela fixação, na cidade, de muitos trabalhadores (e suas famílias), contratados para a construção da Barragem de Bagaúste.

A cerimónia da bênção e baptismo da nova ambulância decorreu no Largo da Igreja Matriz. Procedeu ao acto litúrgico o reverendo Avelino Branco, pároco local. Além de muito público, esteve presente o Corpo Activo, o comandante Carlos Cardoso dos Santos e a Direcção. A madrinha da viatura foi D. Margarida da Glória Mesquita e Costa Vieira de Castro, esposa do presidente da Direcção, pelo Dr. José Lopes Vieira de Castro (1968-1969), que os sócios haviam escolhido em acto eleitoral muito participado – e conturbado – no qual foi derrotada uma lista alternativa liderada pelo Dr. Fernando Bandeira.

No final, a nova viatura e as demais existentes nos bombeiros da Régua desfilaram pelas ruas da cidade até às Caldas do Moledo. Assim, pretenderam os bombeiros agradecer a generosa contribuição da população para a compra da moderna unidade móvel, avaliada em 200 contos, valor incomportável para a associação, na sua totalidade, devido à limitação de recursos financeiros.

A ambulância em causa deixou de prestar serviço há muitos anos e não teve a sorte de alguém a ter reservado para peça de museu. Outro destino teve a velha ambulância Mercedes Benz, modelo 180 D, adquirida em 1958 pela direcção sob a presidência do Dr. Júlio Vilela. Depois de deixar o activo e, apesar de degradada, continuou a fazer parte do património da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. Considerada peça rara, de momento aguarda recuperação total para os seus cromados ainda voltem brilhar.Essa bonita viatura tinha uma célula sanitária muito elementar constituída por duas macas, uma delas desmontável. O seu principal objectivo era o transporte, ao contrário do que acontece com as ambulâncias dos nossos dias, dotadas de equipamentos para os mais variados fins de assistência. Por exemplo, se solicitado o seu serviço para uma transferência de hospital, era assegurada a colocação de soro e oxigénio, situação para a qual estava preparada. Dado que o estrado da maca é amovível e abre o encosto do banco traseiro permitia, caso fosse necessário, transformar-se rapidamente em transporte de pessoal, com capacidade para sete bombeiros.

Quanto à primeira ambulância que existiu no Corpo de Bombeiros da Régua, sabemos pelas memórias escritas de António Guedes (nascido em 1894), antigo chefe, que era uma viatura marca Rolly-Pillan, cujo chassis foi oferecido pelo benemérito José Vasques Osório. Quem chegou a vê-la circular, descreve-a como sendo "uma caranguejola esquinuda, de um branco duvidoso e conforto ainda mais duvidoso".

Actualmente os bombeiros da Régua dispõem de dez ambulâncias para o serviço de transporte de doentes preparadas ao nível de Suporte Básico de Vida, número considerado suficiente para responder às actuais necessidades da população do concelho, mesmo em situações mais complexas, caso da primeira pandemia de gripe do século XXI que, desde Maio último, aumenta o número de pessoas afectada pelo vírus H1N1.

Lembramos que no início do século passado, mais precisamente na primavera de 1918, aquando da pandemia de gripe espanhola, também conhecida por pneumónica, os bombeiros da Régua desempenharam um papel importante no apoio sanitário aos infectados.

Quando esta se "manifestou na vila e nas imediações, a corporação dos bombeiros instalou postos de socorro e um hospital apropriado para o qual ela conduzia, nas suas macas, as pessoas atingidas pela epidemia", relata, numa carta de 30 de Agosto de 1928, o sócio fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro, ao tempo presidente da Comissão Administrativa do concelho do Peso da Régua.

Um outro testemunho é de o António Guedes, antigo Chefe no Corpo de bombeiros da Régua, publicado no jornal “O Arrais”, de 20 de Junho de 1978, num artigo intitulado "Bombeiros Voluntários: Recordações", que descreve como ele e outros bombeiros viveram, sem alarmismos, os momentos mais críticos deste nefasto acontecimento:

"Mais tarde, quando da pneumónica, montamos um improvisado hospital na casa onde hoje está o Asilo Vasques Osório, o qual ficou sob a direcção do médico da nossa Corporação, Sr. Dr. Luís António de Sousa.

Ainda não existiam ambulâncias na Corporação, e éramos nós bombeiros, que com macas portáteis, íamos buscar os doentes a suas casas e os transportávamos para o hospital.
Há que frisar o facto de nenhum de nós se ter contagiado com aquela terrível doença, certamente devido à desinfecção a que éramos sujeitos, sempre que chegávamos com qualquer doente.

Recordo-me muito bem que, dessa desinfecção, constava um 'medicamento', um 'antibiótico' muito agradável, que era o Vinho do Porto. O primeiro gole seria para bochechar e deitar fora e o restante conteúdo do cálice (bem grande, por sinal) era para ingerir.

E de todos esses homens da velha guarda resto eu apenas, ralado de saudades pelo falta daqueles bons companheiros, os quais com o meu pequeno contributo, conseguiram conquistar a auréola, a fama de eficiência e valentia que ainda hoje enaltecem os Voluntários da Régua."

Desconhecemos quantas pessoas esta gripe, mais conhecida por pneumónica, vitimou no concelho do Peso da Régua, mas sabe-se que, de norte a sul do país, terá provocado perto de 150 mil casos mortais.

Eram tempos de alguma improvisação em que os bombeiros não tinham, como hoje, preparados os seus planos de contingência.
A ser verdade – e não temos razões para duvidar – os efeitos do Vinho do Porto, como poderoso desinfectante, talvez pelo seu teor alcoólico, terá resultado em 1918 como uma boa medida de prevenção ao vírus da gripe! - Peso da Régua, Agosto de 2009, José Alfredo Almeida.

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