sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O João dos Óculos a caminho da Eternidade

Se é muito difícil escrever sobre a morte de um homem é mais complicado escrever sobre a morte de um bombeiro em serviço numa missão de socorro, como sucedeu ao João Gomes de Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos, no violento incêndio ocorrido na Casa Viúva Lopes, na da Régua, no dia 8 de Agosto de 1953.

Quem ainda o conheceu como bombeiro deve saber porquê, mas quem como eu, apenas ouvi-o falar dele, interroga-se se não é absurdo e injusto um jovem homem, como ele era, perder a sua vida quando estava cumprir o dever de ajudar a salvar a vida e os bens do seu semelhante. Dizem que este é o risco de quem escolheu para o seu destino a divisa “vida por vida”. E, que Deus só escolhe e leva para junto si aqueles que mais ama. Se assim é, um deles, o melhor coração que encontrou no nosso seio, foi o do João dos Óculos.

Natural de Vila Pouca de Aguiar, veio cedo para a Régua com seus pais ganhar a vida. Por aqui, ficou até morrer no meio das chamas desse grande incêndio, quando tinha de idade 33 anos. Os companheiros tinham-no como um excelente amigo, apesar de ser um pouco triste e frio. Como o bombeiro nº 14 da associação reguense foi um fiel e dedicado servidor, sempre pronto a aparecer nas horas de perigo e maior aflição. Desempenhava a profissão de tipógrafo na famosa Imprensa Douro e, nos tempos livres, era sua alma artista que mais brilhava. Gostava de cantar e de tocar harmónica de beiços em que era exímio. A antiga Rádio Alto-Douro convidava-o para tocar o vasto reportório de músicas nos seus programas. Fazendo parte do Orfeão Reguense e da Orquestra Diabólica animou muitos espectáculos e festas.

A sua morte foi uma tragédia para todos. A começar pela família, a viúva D. Celeste Correia Figueiredo e os seus três filhos de tenra idade que, como se deve imaginar, lhes fez muita falta no seu sustento. Sabemos que sofreram dificuldades e privações na sua sobrevivência. À sua família valeram as ajudas em bens, alimentos e brinquedos que a direcção do Dr. Júlio Vilela sempre quis prestar, para os proteger da miséria em que ficaram. Os seguros de vida, nesse tempo, como ainda hoje, tinham valores reduzidos para compensar uma vida.
Como o passar dos tempos, a Régua não esqueceu o bombeiro João dos Óculos. A Câmara Municipal, presidida por Renato Aguiar, fez-lhe uma homenagem ao baptizar com o seu nome uma rua da cidade.

O escritor João de Araújo Correia, nas Bodas de Diamante da Associação (1955), lembrou-o assim, neste soneto:

“O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro

Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino…
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.

A sua associação -cândida amante -
Celebra hoje as Bodas de Diamante…
-Quase cem anos de existência honesta.

Um bom diante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.”

O triste acontecimento está bem gravado na memória colectiva. E, uma placa de mármore, no meio de uma parede do quartel, assinala em sua memória esse dia fatídico. E aviva o esquecimento do seu nome. Os bombeiros do presente têm um sentido de respeito e solidariedade pelos velhos camaradas. Não esquecem a perda deste homem. O João dos Óculos vive nas suas lembranças e nos seus medos… O seu exemplo de bombeiro sensibiliza-os como uma prova de abnegação, valentia e sacrifício.

O velho Chefe António Guedes nas suas memórias escritas no jornal “O Arrais”, em 25 de Janeiro de 1979, que esteve a combater incêndio com o João do Óculos, descreve-nos, com dor e nostalgia, o instante em que assistiu à sua morte, assim desta maneira:

“Passados tempos, a importuna sirene convoca-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes, desta vila, e ele para lá seguiu entre mim e o motorista.

Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam o prédio sinistrado.

À uma hora e meia da manhã um bombeiro pediu-me para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.

Mandei chamar outro bombeiro, para isso, mas o João estava ali próximo ofereceu-se para substituir o camarada.

O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este, de pouca espessura, aplicado no soalho o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.

O João tomou conta da agulheta estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.

Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinzas, que quase nos cegavam. A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra entalado por escombros, em cima de um tonel.

Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos se deixaram de ouvir. Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.
(…)

Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a ficar de evitar que ficasse carbonizado, o que se consegui. E, só as seis da manhã - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.

Pobre e infeliz João! Como senti a morte daquele pequeno e grande amigo pequeno e franzino, como era, tinha uma alma de gigante. Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.”

Nas cerimónias fúnebres, os bombeiros e o povo mostraram sentidas manifestações de desgosto e profundo pesar. As duas dezenas de corporações de soldados da paz, num sentimento de união, vindos de todo o país, associaram à dor e à mágoa dos que mais amavam este bombeiro… da Régua.

O corpo do João dos Óculos foi velado no quartel pela sua família e por uma guarda de honra permanente de bombeiros. Ao meio da tarde, o seu cortejo fúnebre saía em direcção ao cemitério do Peso. Os comerciantes, em sinal de respeito e de luto, encerravam as portas das suas lojas. Ao passar pela Av. Dr. Manuel de Arriaga “formou-se um apinhado de gente que assistia comovida à passagem do cortejo fúnebre”. Escreveram assim nas suas notícias os jornais da terra.

Deste mundo, partia para sempre um ser humano que tivera uma morte penosa a praticar o bem, a quem se dava o último aceno com lágrimas de emoção e de saudade…!

Na inédita fotografia, o João dos Óculos estava ainda a caminho da Eternidade, onde Deus o chamou para voltar a olhar pelas nossas vidas, ganha mais sentido o angustiante silêncio dos bombeiros da Régua, fardados num luto de tristeza, seguindo os passos sagrados e as orações de fé do Padre Avelino Branco.

Afinal, como aqueles bombeiros, é no caminho entre esta e a outra vida intemporal que muitos homens percebem que é ainda possível viver num mundo sem egoísmo.

Aprendam, se querem ter melhores sentimentos, a grande lição de vida e de humanidade que nos deixou o bombeiro João Gomes de Figueiredo, o nosso João dos Óculos.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma vez lhe dou os Parabéns pelo excelente trabalho que tem vindo a realizar. Comecei a ser leitora assídua deste blogue para acompanhar os seus artigos. Gosto muito das fotografias que pública para contextualizar a época e enriquecer os textos que elabora.

Anónimo disse...

Gostei muito do seu texto, descreve os acontecimentos com muita vivacidade e sentimento. As fotografias que selecciona retratam bem a época.