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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As palavras de Camilo de Araújo Correia



Quando encontrei esta fotografia do Dr. Camilo de Araújo Correia (1925-2007) - médico, escritor e antigo presidente da direcção dos bombeiros da Régua - perdida das folhas do seu álbum, fora do seu sítio devido e do seu tempo, amontoada com outras que descoravam num velho armário cheio de poeira, tive necessidade de refazer o seu passado e escrever-lhe a sua história.

Sem nada mais saber, comecei por arrumá-la no seu tempo e enquadra-la no seu espaço. De imediato procedi, como se faz nas investigações, à identificação das pessoas que escutavam as palavras de Camilo de Araújo Correia. Encontravam-se na sua mesa presentes pessoas conhecidas no meio da sociedade reguense e dos bombeiros, a começar pelo Eng. Álvaro Mota, presidente da câmara da Régua, Dr. Aires Querubim Governador Civil de Vila Real, Rodrigo Félix, presidente da direcção Federação dos Bombeiros de Vila Real, Guedes de Moura, Inspector Regional dos Bombeiros do Norte e o Comandante Carlos Cardoso dos Santos (1922-2007).

Para começar a sua história, faltava apenas saber o que faziam aquelas pessoas em volta de uma mesa, num dos salões do quartel dos bombeiros da Régua. Pouco me ajudaram as buscas nos meus arquivos. Acreditei na sorte de encontrar publicadas as palavras que Camilo de Araújo Correia lia nesse momento, socorrendo-se da ajuda de um papelinho, a sua prótese da memória, como lhe gostava chamar.

Não satisfeito pelos resultados demorei-me em mais pesquisas na esperança de reencontrar as memórias que pudessem reconstituir esse momento. Os velhos jornais “O Arrais” da época não divulgaram qualquer notícia do acontecimento fotogrado. Ainda pensei que me pudessem valer as lembranças de pessoas amigas, mas não deram mais informações. Contudo, ao reler o opúsculo dedicado ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos, da autoria do Manuel Igreja, fui surpreendido pelo relato alusivo ao momento histórico que fotografia documentava e pela transcrição das palavras lidas nessa cerimónia por Camilo de Araújo Correia.



Como estes novos elementos, podia dizer que tinha desvendado o passado esquecido que a fotografia, só por si, não podia revelar. A agradável leitura do discurso de homenagem de Camilo de Araújo Correia, se é assim que lhe posso chamar, deu-me os pormenores que interessavam m para concluir as memórias perdidas e esquecidas nas cores da fotografia. Essa deliciosa crónica – posso a entender como tal - tinha sido escrita para a homenagem ao amigo Carlos Cardoso dos Santos, pelos 31 anos de brilhante e abnegado desempenho ao comando dos bombeiros da Régua. Uma homenagem que, como ele sublinhou, nunca poderia faltar.

Marcada para o dia 3 de Março de 1990, a homenagem ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos teve o significado de reconhecimento ao cidadão reguense que, por vontade própria, deixava o seu lugar no comandado dos bombeiros da Régua. O modesto programa abriu com uma sessão solene no salão nobre dos Paços dos Concelho, onde não faltaram os bombeiros, os grandes amigos e as entidades oficiais. Mas, o momento mais emocionante para todos, foi quando o velho comandante passou a última revista aos bombeiros, formados na entrada principal do quartel. Nesse adeus ao comandante, conta-se que viram lágrimas de tristeza nos rostos dos bombeiros.

Depois de servido o almoço de confraternização, coube ao Dr. Camilo de Araújo Correia fazer, e muito bem, o papel de orador principal, para distinguir a brilhante acção humanitária do homenageado. Como seu velho amigo conhecia-lhe o seu carácter e a sua personalidade. Mantinham laços de amizade desde o tempo, em que fora médico no hospital e mais tarde presidente da direcção dos bombeiros. Pelo que só podia sair-lhe do coração, o maior e melhor elogio de gratidão que era merecedor o Comandante Carlos Cardoso dos Santos, que aqui transcrevemos:



“Estivesse onde estivesse, a fazer fosse o que fosse, eu viria a esta homenagem ao senhor Carlos Cardoso dos Santos, pelos seus 31 anos de brilhante e abnegado comando dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

E viria, vencendo distâncias e afazeres, porque não sou apenas um reguense devoto dos seus bombeiros e grato a quem, ao longo de tantos anos, os disciplinou e dirigiu nos tempos difíceis caminhos da protecção e salvação do próximo. E nós sabemos que essa dificuldade pode ir do sacrifício familiar ao sacrifício da própria vida. Viria porque também sou um velho amigo e um inabalável admirador do forte temperamento altruísta do senhor Carlos Cardoso dos Santos.

Se admitirmos que uma pessoa volta a nascer, quando começa a trabalhar, exercendo a sua profissão que escolheu, pode dizer que sou natural do Hospital D. Luiz I e amigo do senhor Carlos Cardoso dos Santos, desde que nasci…  (…)



E foi com todo esse altruísmo, amadorismo e capacidade de relação, largamente exercidos no Hospital D. Luiz I, que o senhor Carlos Cardoso dos Santos apareceu nos Bombeiros Voluntários da Régua. Não admira, pois, que os 31 anos do seu comando tenham sido de negável eficácia e brilhantismo. E é por isso que aqui estamos com o ruído dos nossos aplausos e o silêncio da nossa gratidão.

O calor do meu brinde não ficara completamente explicado se não lhe dissesse que passei pela Direcção dos Bombeiros da Régua, ao que julgo, por influência ou, pelo menos, franca concordância do senhor Carlos Cardoso dos Santos. Mal chegado de uma penosa mobilização em Moçambique, pode dizer-se que foi uma partidinha dos meus amigos. Uma simpática e honrosa partidinha, devo confessar.

Peço licença para que o meu brinde seja extensivo à esposa do senhor Carlos Cardoso dos Santos e às esposas de todos os bombeiros. No peito de todas a sirene só deixa de tocar, quando o marido regressa a casa molhado, cansado…mas feliz”.

As palavras de Camilo de Araújo Correia, sejam elas no estilo de um discurso de homenagem ou de uma sua elegante crónica, como mais preferirem, deixa qualquer um de nós ainda comovido pela ternura dos sentimentos e do brinde feito ao velho comandante que, acredito tenha sido celebrado com vinho fino! Como são merecedores os grandes homens que viveram para fazer a paz e o bem. Elas são como que o retrato do comandante de corpo inteiro e fardado a rigor, para sempre. E, ao mesmo tempo, guardam um sentimento de admiração que ficou do primeiro dia em que se conheceram…no velho hospital da Régua, ainda instalado no Solar dos Lemos e ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia.

Para muitos, se calhar, esta foi a primeira oportunidade de recordarem este grande comandante e mais um discurso inesquecível de Camilo de Araújo Correia e entenderem o testemunho dos seus ideais com nitidez e mais paixão. Mas, para quem sempre os admirou, este momento permitiu um reencontro destes dois grandes homens na história dos bombeiros da Régua.


(Clique nas imagens acima para ampliar)
Com eles já na Eternidade, cada um de nós deve agora olha-lhos como símbolos de fraternidade e reconhecer-lhe gratidão.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.