sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O patrão Álvaro: coragem e valentia


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Ao lado do velho pronto – socorro Ford, o patrão Álvaro Rodrigues da Silva olha-nos com a nostalgia de um velho herói que a Câmara Municipal do Peso da Régua agraciou com a Medalha de Ouro (de valor e altruísmo), durante as cerimónias solenes das Bodas de Ouro da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua – os primeiros 50 anos de existência – celebradas em 30 de Novembro de 1930.

Nascido na Régua em 17 de Julho de 1873, o Álvaro Rodrigues da Silva foi um dos melhores bombeiros. Talvez de sempre. Conviveu com muitos bombeiros da velha que, é como quem diz, com os homens que criaram a corporação. Entrou muito jovem no corpo de bombeiros e, durante muito anos, serviu-o devotamente. Ser bombeiro era uma das suas paixões. Por mérito pessoal atingiu o posto de patrão, que hoje corresponde ao de chefe. Os companheiros apreciavam o seu talento para a chefia e elogiavam-no por ser um poço de valentia - um bombeiro destemido - e muito competente.

Considerado um cidadão simples e honrado, fez toda a sua vida a trabalhar como serralheiro, numa oficina que tinha montada no rés-do-chão de uma casa, a meio da Rua General Alves Pedrosa, hoje conhecida como Rua da Alegria. Faleceu em 12 de Fevereiro de 1952, com a idade de 78 anos, reconhecido meio social reguense como um homem que, ao serviço dos bombeiros, se tornou um dos seus primeiros heróis.

Foi o herói que, em 1930, o presidente da câmara Dr. Mário Bernardes Pereira quis homenagear. O edil, ao lado da distinta benemérita D. Branca Martinho, escolhida para presidir ao acto, e da população que enchia o Salão Nobre dos Paços do Concelho, num eloquente discurso reconheceu que o patrão Álvaro, num justo somatório de brilhantes valores individuais, destacava-se pelo seu espírito altruísta e paixão ao voluntariado. A emoção levou-o a pedir aos presentes que “diante da sua farda devíamos todos descobrir-nos com respeito”.

O patrão Álvaro não era homem que trabalhasse para ouvir elogios. Quem o conhecia, sabia que era um bombeiro que gostava de servir a sua terra e sua corporação. Sentia-se mais à vontade, pela sua maneira de ser, nos teatros das operações de qualquer tragédia humana quer elas fossem causadas por fogos, cheias do rio, acidentes ou calamidades naturais. E, por mais graves que fossem, sempre as enfrentou sem medo. Ele sabia que, quando a sirene tocava, os perigos não seriam obstáculo para deixar de salvar vidas e bens.

O patrão Álvaro socorreu e salvou muitas vidas em perigo. Para as missões de socorro onde era chamado mostrava o génio da sua coragem e valentia. Conta-se que, em algumas delas, foi graças à sua presença, que se evitaram males e desgraças maiores. Conhecemos, pelos relatos das notícias, a seu grande e eficiente desempenho num salvamento e regaste de dois homens que haviam ficado soterrados no fundo de um poço, numa povoação do concelho de Santa Marta de Penaguião. Quando a convicção de todos era de que esses dois chefes de família estavam mortos, e bem mortos, o seu arrojo e estímulo para bombeiros abatidos de cansaço e desânimo, ficou conhecido ao proferir a seguinte expressão: “Mortos os vivos, daqui não sairemos sem os arrancar de lá de baixo”.

A firmeza do patrão Álvaro fez com que os bombeiros que comandava acreditassem a levar até ao fim o salvamento de duas vidas, que pensavam já perdidas, após longas 16 horas de trabalhos de remoção de terras. Melhor do que as nossas palavras, podemos consultar mais pormenores dessa missão de salvamento – ocorrida a 10 de Agosto de 1929 - nas memórias do Chefe António Guedes, publicadas no jornal “O Arrais”, onde esteve também presente, que aqui temos o gosto de transcrever:

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“Se a memória não me atraiçoa, foi em dois ou três de Agosto de 1929, fomos chamados para Laurentim, povoado situada a poucos quilómetros da Régua, onde dois homens haviam fica soterrados num poço de dezoito metros de profundidade e quando procediam ao trabalho de ampliação de uma mina no fundo do mesmo poço.

Seguimos imediatamente para lá, cerca das nove horas da manhã…

Eu e chefe Álvaro analisamos a situação e ficamos com uma vaga esperança dos homens se encontrarem ainda vivos – isto no caso de se refugiarem na mina, na ocasião em que se deu a derrocada. E essa esperança recrudesceu ao depararmos com um cano galvanizado, emergindo apenas dois ou três dedos do solo, pelo que passava quase despercebido. Estaria esse cano ligado à mina? Não custa nada experimentar. E assim, colocamos ali dois bombeiros a fornecer ar, por meio da bomba braçal nº2, ligada ao cano encontrado.

Estávamos presentes dois chefes – Álvaro Rodrigues da Silva e eu, e dois sub-chefes -Armando Vicente e Augusto Costa.

O serviço de salvamento ficou assim estabelecido: no poço, dirigindo e auxiliando os serviços de desaterro, ficaria um dos chefes durante duas horas, no fim das quais outro iria o outro substitui-lo. E, cá em cima, dirigindo e auxiliando os serviços de transporte e descarga de aterro, em sitio que não estorvasse, estavam dois sub-chefes.

Por volta das 11 e meia da manhã, fui abordado por uma simpática velhinha – mãe de um dos homens soterrados - que me disse que desejava falar como o Comandante. Mandei chamar o Chefe Álvaro, a quem como o graduado mais antigo, competia exercer as funções de comando, e a velhinha então, de mão erguidas e o enrugado rosto banhado em lágrimas, suplicou: -Tirem dali o meu filhinho…

O angustiante fervoroso pedido daquela velha e pobre mulher comoveu-nos, emocionou-nos profundamente e dirigimos-lhe palavras de conforto e de esperança. Mas eram muitas toneladas de terra e pedregulhos que era necessário remover e guindar para a superfície…
(…)

Veio a noite e o cansaço estava a apoderar-se de nós. Havia já alguns bombeiros feridos e outros com as palmas mãos transformadas numas chagas autênticas. As dez horas já tínhamos a certeza que os homens estavam vivos, pois que nos falaram através do abençoado cano. As onze hora e um quarto da noite tiramos daquele horrível buraco o primeiro homem. Vinha quase desfalecido e completamente encharcado e enlameado. Logo a seguir tirou-se o outro, que se apresentava em melhores condições físicas mas igualmente coberto de lama.

E chegou então – para mim - o momento mais comovente e emocionante deste drama. A simpática velhinha veio novamente procurar-nos, a mim e ao chefe Álvaro, para nos agradecer o “milagre” de lhes termos salvo o seu filho. Com lágrimas de alegria e reconhecimento…abraçou-nos e beijou-nos com emoção e sinceridade. Considerei-me compensado dos tormentos que naquele dia passei”.

Era assim, cumprida mais uma missão de socorro com sucesso que se ficou a dever a todos os bombeiros que souberam compreender o apelo do seu chefe num momento de desânimo.

Percebemos o que sentiu o chefe António Guedes quando estava terminada a operação de salvamento. Há um sentimento de felicidade que o contagiava pela alegria sentida no rosto de uma mãe, agradecida aos bombeiros que tinha salvo a vida do filho. As suas comoventes palavras mostram a grande satisfação pelo dever cumprido, apesar dos tormentos e aflições de muitas horas de trabalho exaustivo, sem descanso nem alimentação, sob o sol escaldante de um dia de Agosto.

E, também percebemos porque o patrão Álvaro tornou, sem o querer, num herói amável e inesquecível.

Quase 80 anos passados sobre esse acontecimento faz todo sentido recorda-lo como um exemplo do ideal romântico de “Vida por Vida”, o lema que deve estar sempre presente no coração dos actuais bombeiros.

O milagre conseguido por aqueles bombeiros, sob o comando do patrão Álvaro, é uma das páginas mais brilhantes e sublimes da história da Associação, ainda molhadas pelas lágrimas de alegria de uma velha mãe. E, são essas lágrimas que, por anos que passem, nos fazem lembrar – sobretudo as gerações mais jovens de bombeiros - a lição de coragem e valentia do nosso voluntário patrão Álvaro.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

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