sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Bombeiros Voluntários do Peso da Régua - 129º aniversário - CONVITE


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Comemorações do 129º Aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua - Programa:


- 28 de Novembro de 2009 - 15H00: Apresentação do livro “O Comandante Cardoso”, da autoria de Damas da Silva.

- 29 de Novembro de 2009:
09H00 - Hastear das Bandeiras, junto ao Quartel Delfim Ferreira, com formatura geral do Corpo Activo e a Fanfarra;
9H30 - Romagem de saudade aos cemitérios de Godim e do Peso da Régua;
10H30 - Missa de Aniversário, na Igreja Matriz do Peso da Régua
11H30 - Desfile Apeado do Corpo Activo, com cerimónia de homenagem no Largo do Cruzeiro, ao Comandante José Afonso de Oliveira Soares;
12H00 - Recepção as Entidades Convidadas;
12H30 - Sessão Solene no Salão Nobre;
Condecoração de Bombeiros e funcionários;
Condecoração com a Medalha de Serviços Distintos, de grau de Ouro e de Prata, da LBP, aos beneméritos da Associação;
13H15 - Almoço de confraternização de Bombeiros, Directores e Convidados;
16H00 - Desfile Motorizado com os principais carros pelas ruas da cidade;
20H00 - Arrear das Bandeiras.

COMANDANTE CARLOS CARDOSO - O livro

UM CIDADÃO DE MEDIDA GRANDE (Prefácio)

Esta edição é dedicada à personalidade de um homem de carácter e de um cidadão que aceitou a missão de liderar o corpo de bombeiros da sua terra, embora nada conhecesse sobre a realidade específica dos “soldados da paz”.

Ciente da responsabilidade que assumira, elegeu a sua formação e a formação dos seus homens como prioridade, bem como passou a ser o primeiro a responder ao alarme da sirene do quartel. Justificava esta sua atitude dizendo que “O respeito dos subordinados conquista-se, não se impõe”. O mesmo é dizer, praticava a hierarquia do exemplo.

Ao longo dos 31 anos em que exerceu o comando do corpo de bombeiros da Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, estabeleceu sempre com os seus homens uma relação de grande humanismo e proximidade.

“Ao abeirar-se de qualquer pessoa em vista de alguma tarefa, fazia-o de tal maneira que ninguém juntava coragem para se negar. A sua presença no quartel enquadrava-se em espírito de camaradagem e de amizade. Exercia autoridade sem autoritarismo”, escreve o autor desta edição a propósito da liderança do comandante Carlos Cardoso.

Julgo que este livro pode constituir matéria de grande utilidade para a reflexão que urge fazer, relativamente ao exercício da função de comando nos corpos de bombeiros de natureza associativa e voluntária.

Existe uma indisfarçável crise de comando em alguns dos nossos corpos de bombeiros. Esta afirmação, que não agradará aos que se sentirem por ela visados, pode ser demonstrada pelo conhecimento que possuo hoje da realidade dos bombeiros portugueses. Há alguns comandantes para quem o seu corpo de bombeiros é secundário, em comparação com as missões que outras instâncias entendem confiar-lhes. Por isso, há bombeiros que, ao longo de dias sucessivos, não privam com os seus comandantes, que não os vêem nas acções de socorro a que são chamados a intervir, que não encontram espaço próprio para partilhar preocupações, problemas e anseios.

Segundo o autor, “o comandante Carlos Cardoso tinha três paixões, a Régua, os bombeiros e a família”. Uma trilogia que caracteriza bem a matriz genética da história das associações humanitárias de bombeiros, dos seus corpos de bombeiros voluntários e dos homens e mulheres, com e sem farda, que os servem.

Dois anos depois do comandante Carlos Cardoso ter falecido, a edição desta publicação constitui uma justa manifestação de reconhecimento pela obra pública de um cidadão, de um líder e de um bombeiro.

A admiração que o autor revela ter pela personalidade do comandante Carlos Cardoso enriquece este documento, envolve-o numa auréola de paixão, esse extraordinário sentimento que constitui o betão que solidifica esta forma particular de ser bombeiro em Portugal.
- Duarte Caldeira
Presidente do Conselho Executivo da
Liga dos Bombeiros Portugueses

Nota - O livro "Comandante Cardoso" da autoria de Damas da Silva, da Garça Editores, vai ser apresentado dia 28 de Novembro pelas 15H00, no Salão Nobre do Quartel Delfim Ferreira.durante as comemorações do 129º aniversário da AHBV do Peso da Régua.

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Camilo Guedes Castelo Branco: O Comandante Poeta

Encontramos nesta velha fotografia do fotógrafo Noel de Magalhães figuras proeminentes da história da Régua, nos anos 30 e 40, que se destacaram pela sua intensa actividade cívica, cultural e humanitária. Nesta imagem, cruzamos o nosso olhar com o olhar de alguns dos melhores bombeiros: vemos os “patrões” Gastão Mirandela, António Guedes Castelo Branco, Álvaro Rodrigues da Silva e o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1949), o Comandante poeta.

Destaca-se de entre eles Camilo Guedes Castelo Branco (1868-1949) nascido e falecido na Régua. Este reguense, uma personalidade ímpar, destacou-se em vários domínios da sociedade. Na história, o seu nome ficou mais conhecido por ter exercido o cargo comandante dos bombeiros. Quem com ele conviveu, como Dr. Mário Bernardes Pereira, antigo presidente de direcção, dizia que a sua presença no quartel, situado então na Rua dos Camilos, criava uma atmosfera de respeito e afectividade. A sua dedicação ao voluntariado era de grande generosidade pelo que sua memória permanece viva. As novas gerações de bombeiros podem não ter saber tudo do seu percurso de vida e dos seus valores cívicos, mas já apreenderam que o seu mérito o eleva a categoria dos mais notáveis bombeiros da Associação. Não há ninguém que não deixe de sentir orgulho e respeito quando observa o seu retrato de comandante, garbosamente fardado, que figura numa das paredes do Museu.

Camilo Guedes Castelo Branco fez-se bombeiro aos 17 anos. Alistou-se no corpo activo em 1 de Maio 1889 e aí se manteve até 1949. Aprendeu com alguns dos notáveis bombeiros e fundadores da Associação e partilhou a amizade e muitas experiências com os comandantes os seus antecessores José Afonso de Oliveira Soares e Joaquim Sousa Pinto. Por vontade própria ficou a comandar os bombeiros até à sua morte. Tinha a provecta idade de 81 anos. O seu grande lema de socorro que ensinava aos seus bombeiros traduzia-se na divisa “Vida por Vida” que ele afirmava assim: “Para se salvar uma criatura de uma morte certa, todos temos a obrigação de sacrificar seja o que for, mesmo que sejamos nós próprios”.

Mas, a sua acção não se ficou apenas pela responsabilidade operacional dos seus bombeiros. Se a Associação não chegou a “morrer”, no início do século passado, deveu-se em muito à sua determinação. Para a manter viva e dinâmica trabalhou muito num momento em que atravessou uma grande crise. Durante os anos de 1910-1920, quando a Associação se encontrava sem meios económicos para manter abertas as portas do quartel, situado no Largo dos Aviadores, não descansou a mobilizou os bombeiros e a sociedade civil, para encontrar garantir a sua sobrevivência. A ideia de criar um grupo cénico composto por bombeiros para fazerem espectáculos de teatro deu resultados positivos. Com as receitas obtidas conseguiu angariar o dinheiro que necessitava e evitou que o Corpo de Bombeiros não fosse extinto e o seu pouco material que tinham devolvido à Câmara Municipal. Outra relevante acção que realizou como comandante foi a de ter montado no Asilo José Vasques Osório, em 1918, um hospital onde os bombeiros da Régua socorriam e prestavam cuidados de saúde aos doentes afectados pela gripe pneumónica.

A partir de certa altura, teve a ajuda dos seus filhos, a quem soube incutir a mesma paixão pelos bombeiros. O Jaime Guedes distinguiu-se como director, chegando a ser presidente da direcção e da assembleia-geral. Defendeu a construção de raiz de um quartel para os bombeiros, o que possível dar início quando fez parte de uma vereação da Câmara Municipal, em 1930, liderada pelo Dr. Mário Bernardes Pereira. O António Guedes sobressaiu como bombeiro, atingido o posto de “patrão”. Lourenço de Almeida Medeiros escolheu para seu 2º Comandante. Deixou o seu testemunho como bombeiro ao escrever as suas memórias que publicou no jornal “O ARRAIS”, evocando factos históricas esquecidos, relatos de incêndios urbanos e a acção de alguns homens coragem.

Mas, este homem distinguiu-se ainda como político, jornalista e escritor, mais dramaturgo e poeta. Como politico foi várias vezes o Administrador do Concelho, nomeado pelo partido republicano. Soube influenciar a vida cultural e política da sociedade do seu tempo pela defesa moderada dos ideais da república (aderiu com o Dr. Antão de Carvalho que foi primeiro presidente de câmara da Régua republicano e Ministro da Agricultura) e fez parte do movimento social de apoio aos ex-combatentes portugueses, sendo o presidente da Junta Patriótica do Norte.

Como dramaturgo, uma sua peça de teatro fez sucesso representada por um grupo de actores amadores. A opereta “As Andorinhas”, musicada por Almeida Saldanha, alcançou êxito onde foi levada a cena, desde o antigo Salão Recreativo, na Régua, até ao Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Apreciada pelos reguenses chegou a ser representada por três gerações: avós, pais e netos, “sempre com muito brio e entusiasmo, como se passassem uns aos outros um testemunho de ouro”.

Fez jornalismo numa época difícil, de tumultos, motins e muita agitação social na região duriense. Fundou e dirigiu os jornais “A Folha”, “O Dissidente” e “Cinco de Outubro”. Nas páginas dos dois últimos, os paladinos Douro escreverem artigos de opinião a reclamarem uma solução para os problemas dos viticultores durienses. Parece que os tempos de crise se repetem, os lavradores do Douro sofrem actualmente uma crise social idêntica. Há sinais de preocupação que no pensamento do escritor Miguel Torga mereceram esta profunda reflexão: “O Douro necessita de ser olhado pela nação como o seu Olimpo sagrado, o chão bendito que produz a única riqueza de somos senhores exclusivos: o Porto que o mundo assim conhece e saboreia, imita em todas as latitudes sem nunca o igualar. Mas esse carinho pátrio tem de começar pelo oficiante de mãos calosas que espreme os xistosos até os fazer ressumar. É ele, nunca presente nos salões dos congressos, nunca farto de banquetes oficiais, nunca tido nem achado nas reformas e nos decretos, que deve ser chamado à ribalta para expor as suas necessidades e formular as suas queixas. Para desdobrar diante dos olhos da justiça o sudário da sua crucificação. Porque se nas Sagradas Escrituras tudo começa pelo Verbo, no livro da pedra da nossa região bem amada a lição é outra. Aqui, no princípio era o homem: o homem duriense.”

Mas, na verdade, foi como poeta que mostrou o seu maior génio criativo. Deixou uma obra editada, o livro de poesia “Fraternalis Dolor”, um inédito com o título “Arias Sertejanas” e muita poesia dispersa em jornais. Abordou nos seus versos a figura dos soldados da paz e a beleza cénica região duriense. Na poesia “O bombeiro” evoca o seu lado anti-herói, onde há o dever de salvar das chamas do fogo uma criança. Numa outra, a “Marcha da Régua”, gravada na voz de Sandra Botelho, fala dos encantos da paisagem vinhateira da sua terra natal.

No livro “Lira Familiar” (de 1976), João de Araújo Correia inseriu uma poesia “Instantâneo VI”, de Camilo Guedes Castelo Branco, publicada no “Jornal da Régua, em 1937 e assinada com o pseudónimo de Gil Vaz, em que foca o autor do livro. Em nota final, desse livro, o escritor duriense acrescentou a seu respeito um insuspeito elogio: “Poeta lírico de altíssimo talento, pedem colectâneas, há muitos anos, os seus dispersos. Com eles se poderia formar um delicado ramo de flores”. Correspondeu-se também com o poeta Guerra Junqueiro que lhe dirigias as cartas chamando-o de “caro colega”.

Umas breves notas da sua biografia foram escritas por Manuel António, correspondente local do extinto jornal “O Comércio do Porto” que, por traduzirem a grandeza moral deste homem, se passam a citar: “Nasceu em Peso da Régua, numa casa do Adro do Cruzeiro, em 14 de Março de 1868. Desempenhou sempre as funções de notário – adjunto, sendo funcionário distinto e sabedor. Poeta, jornalista e escritor dramático, colaborou em todos os jornais que se publicaram nesta vila e em alguns diários de Lisboa e Porto. Em 1890 fundou na Régua, juntamente com o poeta Hamilton de Araújo, um semanário literário intitulado “A Folha”, que teve pouca duração. Mais tarde fundou “O Dissidente” e depois “O Cinco de Outubro”, de feição republicana moderada. Por duas vezes, e durante alguns anos, na vigência de ministérios de concentração desempenhou com muito brilho e a contento de todos, as funções de administrador do concelho tendo, com a sua política de apaziguamento, terminado com as violências políticas que por vezes aqui se praticavam. Criatura deveras bondosa e modesta, falava primorosamente e sempre de improviso. Alguns dos seus discursos constituíram verdadeiras jóias literárias. Publicou um livro de versos intitulado “Farternalis Dolor” e deixou escrito um outro livro denominado “Arias Sertanejas”, que não chegou a publicar. Escreveu centenas de poesias e sonetos em vários jornais do País, e todos esses versos dispersos, uma vez compilados, dariam uma obra valiosa. Autor de várias obras teatrais, expressamente escritas para o “seu teatro”, foi também autor da linda opereta “As Andorinhas”, com música do falecido e talentoso maestro lamecense Almeida Saldanha, cujo centenário a cidade de Lamego vai em breve comemorar. Esta peça teve muitas dezenas de representações, não só nesta vila como no Porto, Chaves, Lamego, etc., tendo-lhe a critica tecidos os maiores elogios. Bombeiro voluntário deste a idade dos 17 anos. E quando, há muitos anos já, a Associação esteve em riscos de soçobrar, por absoluta falta de recursos, organizou um corpo cénico com elementos da Corporação, o qual dava uma récita mensal e assim conseguiu manter a Corporação. Essas récitas efectuavam-se num armazém da Rua José Vasques Osório, onde hoje está instalado o Asilo e que foi devidamente adequado a casa de espectáculos. Sem isso, a velha e gloriosa Corporação teria deixado de existir. Mais tarde, e quando as finanças da Corporação já estavam nova e firmemente consolidadas, graças a essas récitas, por sua iniciativa distribuía a Corporação, no dia 28 de Novembro, dia do seu aniversário, um bodo a 50 pobres dos mais necessitados desta freguesia. Em 1918, quando da epidemia da pneumónica, por sua iniciativa e ainda com o produto desses espectáculos, foi montado no Asilo Vasques Osório um bem apetrechado hospital onde todos os doentes pobres atacados desse epidemia foram carinhosamente tratados. Possuía várias condecorações e faleceu com 81 anos de idade, em 25 de Agosto de 1949 ainda à frente do Comando da Corporação que tanto amou e tão bem soube servir.”

A AHV prestou-lhe uma sentida homenagem, em 2007. Uma nova ambulância de socorro, que ia ser posta a serviço da comunidade, foi baptizada com o seu nome. Na cerimónia estiveram presentes os seus descendentes para testemunharem este singelo reconhecimento de uma nova geração de homens. As palavras de agradecimento que proferiu a sua bisneta Maria Teresa Castelo Branco comoveram os presentes. Vale a pena recordar o que disse: “Estou certa de que gestos como estes, ao contribuírem para consolidar laços com o passado, avivam no presente a necessidade de seguir a lição dos que deram algo de si à nobre causa dos soldados da paz, tal como fez a seu tempo, o meu bisavô, Camilo. Num tempo em que a amnésia colectiva nos parece afastar das nossas raízes, esta homenagem, para além de ser uma honra para a família, é pelo simbolismo, a prova que a corporação que V. Exª dirige, soube resgatar do esquecimento o exemplo de uma vida de entrega a uma causa nobre. Agradeço, pois, comovida, esta oportunidade de trazer até nós e sobretudo aos meus filhos a figura do meu bisavô Camilo Guedes Castelo Branco”.

A história do Corpo de Bombeiros da Régua não se faz de só pequenas coisas. Ela faz-se da vida e da obra de grandes homens, como era o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco, que com o seu exemplo, permite ter muito orgulho no passado e olhar o futuro ainda com mais ambição para os bombeiros do actual século.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida. (Nota: Peso da Régua, 29 de Junho de 2010: Este texto constitui uma versão revista e ampliada da anterior aqui publicada.)

O Bombeiro
No silencio da noite, de repente,
Erguem-se a voz estrídula dos sinos
  num longo baladar
E a distância brilhou, sinistramente,
Um clarão, que tingiu a luz do luar
  de laivos purpurinos.
“Fogo! Fogo!”-alguém diz com aflição.
E logo a pobre gente do lugar,
toda cheia de espanto e de canseira,
Pôs-se a correr, gritando, em direcção
  da medonha fogueira.

O incêndio crepitava
e, batido do vento, devorava
Uma pequena casa arruinada.
E, perto, uma mulher d`olhar aflito
erguia as mãos ao céu calmo e infinito
a chorar e a gemer desesperada.
Ali, em meio da fogueira, tinha
essa mulher um filho, a criancinha
mais bonita da velha povoação,
e o fogo, em seu horrível avançar,
iria dentro em breve transformar
o seu pequeno corpo num carvão.

Metia dó a pobre mãe! Mas como
Salvar-lhe o louro e cândido filhinho,
  se a labareda e o fumo,
num espantoso e horrível torvelinho,
ameaçam devorar rapidamente
quem se abeirar dessa fornalha ingente?

Podes chorar, mulher! ninguém te acode.
Chora, que és mãe; mas vê que ninguém pode
esse anjinho das chamas libertar.
Olha: em meio da tétrica fogueira
anda a morte, feroz e traiçoeira,
  a acenar, a acenar…

Mas nisto, junto ao prédio incendiado
surge um homem soberbo de valor.
A multidão ansiosa solta um brado
  de espanto e terror.

Ele caminha sempre com firmeza
e a intrepidez estóica dos heróis;
escala a casa em chamas com presteza,
escala a casa em chamas…e depois…
  depois desaparece.
E a pobre mãe aflita cai de bruços
A murmurar baixinho, ente soluços,
  Uma prece…

Na multidão, silêncio. Só se ouvia
um secreto rumor, que parecia
o palpitar de muitos corações…

Senhor! És pai e cheio de bondade!
estende lá do azul da imensidade
O teu olhar repleto de perdões!

E eis que em meio trágico do braseiro
surge a figura altiva do bombeiro
Trazendo ao colo o pequeno ser.
Passou…desceu…e dentro em pouco, ansioso,
depositava o fardo precioso
no regaço da pálida mulher.
- Poesia inédita do Comandante dos B V Peso da Régua, Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1940.
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos IV e V


Não Matem a Esperança - Capítulo IV
A cabeça inclinava-se para a frente, imóvel, sem o mínimo trejeito, o que tornava a sua corcunda mais pronunciada. Os olhos grandes, circundados por lívidas olheiras, eram dois candeeiros volantes que se destacavam débilmente daquele conjunto alvacento que as longas barbas formavam com a sua devastada cã. A cobrir-lhe a camisa, sujíssima, um casaco coçado, cheio de nódoas, bolsos rotos, um dos quais continha um pedaço de pão recesso, que a macienta mão daquele velho defendia ciosamente. As calças fendidas, nos joelhos, mostravam a magreza das suas pernas, que facultava a antevisão dum corpo sóbrio de carnes e abastado de ossos. Completavam a sua paradoxal indumentária uns sapatorros gastos e esburacados.

Fora assim: à luz duma noite, aquela estátua de homem moldada pelas mãos da vida, zurzida pelas surpresas do mundo. E, agora, voltava a vê-lo. Aproximava-se. Os seus passos eram concisos. Sentiu desejo de ir ao seu encontro, abraçá-lo e dizer-lhe: «Aqui me tens! Diz se precisas de mim!». Aquele velho, indiferente, passou, desprendido, absorto, como se no mundo só houvesse ele, atento ao lajedo do passeio que os seus pés calcorriavam apressados. Segui-o. Viu-o agachar-se e agarrar uma perisca. Correu para ele e ofereceu-lhe cigarros.

- Tome; Fume daqui!
- Pedi-lhe alguma coisa?
- Não, mas...
- A mim nunca ninguém me deu nada! Não é agora que vou aceitar! Não preciso de nada!

Estático, meio atarantado, deixou-o desaparecer, curvado, investigando o chão.

Não Matem a Esperança - Capítulo V
Chegou lá cima cansado e o suor a escorrer-lhe do corpo. A garganta ardia, a cabeça latejava como marteladas compassadas de martelo-pilão. Com cospe e o lenço limpou reticenciados de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nas partes dos pés que as sandálias não protegiam e a que algumas moscas se entregavam já inebriadas. Arrancou meia dúzia de giestas e sentou-se. Reclinou-se lentamente até se estender todo. Deixou-se estar. Olhou o céu: cinzento, dum cinzento negral, a acariciar os cerros dos montes. À sua direita, o sol sorri-lhe por entre as folhas. O ar do restolho, pinheiros e eucaliptos, alegra-o. Sôfrego, aspira-o bem para dentro, como a querer levá-lo ao fundo de si mesmo. Estorninhos esvoaçavam, uma toutinegra canta, escondida na copa de alguma árvore. As moscas nem aqui o largavam, mas quanto mais conhecia os homens mais adorava as moscas.

Lá no fundo, o rio, num S tipográfico, corre preguiçoso e envergonhado e quase seco. No outro dia andou lá com a malta e nem sequer se molharam. «Ingrato! No Verão não nos tiras o calor, mas no Inverno, se te der na real gana, até as casas nos levas!» - Isto diria aquele campónio, em frente, dobrado para a terra.

Encaixilhados pelos troncos, enormes manchas de vinhedos cobrem de verde montes ondulantes, ora espigando-se para o alto, ora descendo suavemente. Os socalcos, sustidos por paralelas paredes, lembram mastabas egípcias. Aqui e ali, como títeres impassíveis perante tamanha grandeza, casas de fachadas insensíveis, algumas com vestustos brasões a lembrar aos ignorantes que ali viveu gente da grande e à janela das quais alguma jovem enclaustrada sonha coisas lindas, suspira de amor pelo moço da lavoura; outras, insignificantes, à porta das quais alguma criança esfomeada suspira pão; postes com formas de foguetões levam a electricidade às casas dos que a podem ter.

Um ruído característico intromete-se-lhe. Vira-se. Lá vai ele: ronceiro, arrastando-se penosamente na subida de trilhos de linha reduzida. Apita forte, não vá algum distraído oferecer a vida a uma porcaria daquelas. Dobrou no fundo da recta-subida. E aquele pouca-terra-pouca-terra perde-se na distância.

Começa a escurecer. Muda de lugar. Um coelho salta-lhe aos pés. Vai para as rochas. É aqui, diz o povo, que aparece o Titonga. Sim, o Titonga morreu numa luta à navalhada com o Bragão que cumpre agora os vinte e cinco anos de cadeia. «Que luta rapazes! Ah! Caramba! Pareciam dois lobisomens! Até bufavam, pá! Porra! Aquilo metia impressão!». Sim, o povo diz que foi assim. E porquê? Ora... Porquê? «Uns copázios a mais e aí está a desgraça de um home... A cabeça começa a andar à roda, palavra puxa palavra, a família (que não devia ser chamada para nada) é ofendida e pronto...». O Titonga é que morreu. Calhou ser ele. Bem, «ele tamém era umfraca-chiças...». E, agora, a «alma penadinha» do Titonga anda por cá. Por volta das duas da manhã é que ele aparece nestas fragas. Houve já quem lhe falasse. Os guardadores de vinhas que vêm até aqui passar pelo sono, já todos o ouviram dizer: «Olhai rapazes, aquele que me matou está agora a sofrer enquanto eu sou feliz». Houve um daqueles, o Fernando Verde, que lhe chegou a responder: «Deixa-te lá estar muito tempo sem mim nessa tal felicidade. Eu prefiro esta de cá. E o Fernando Verde criou fama na aldeia e arredores.

O sol vai finando. No ocaso, apenas uma mancha semi-circular dum alaranjado castanho. A terra está em sombra. É a hora dos velhos do asilo virem para o seu passeio desentorpecer os músculos já no fim. Escuta-se mais distintamente, perdida no éter, a algaraviada das crianças. A tigela do caldo com migalhas de pão tornou-as alegres e satisfeitas, mas, logo, ao deitar, adormecerão com a fome a roer-lhes as entranhas. As avé-marias soam no campanário da Igreja, uma Igreja muito antiga e muito velha, amparada por escoras de pinho. No alto, pequenos novelos roxos de nuvens, aquelas nuvens que chegam com a noite para poderem galopar à vontade.

Põe-se de pé nas rochas. Abarca num relance tudo o que se lhe apresenta. Com avidez, absorve o ar já frio, e aí vai ele, coração contente, sorrir às crianças da sua aldeia.
- Continua.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Biblioteca de Maximiano Lemos


Não há ninguém que não saiba que a AHBV do Peso da Régua possui uma magnífica biblioteca, e que apesar de não se encontrar aberta ao público, está ao dispor de qualquer de um, no 2º andar do edifício do quartel. Aliás, em tempos ainda recentes, ela foi a única biblioteca que sucessivas gerações de jovens da Régua puderam frequentar para aí lerem ou levarem para casa os seus primeiros livros.

Mas, poucos devem saber que essa biblioteca tem um grande passado. Embora não pareça pode dizer-se que é muito antiga. Ela começou por existir no primeiro edifico do quartel que ficava no Largo dos Aviadores e funcionou depois no quartel instalado até 1954, numa velha casa da Rua dos Camilos, onde alguém dizia que “havia uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe por esporádico leitor.”

A existência da biblioteca foi uma intenção dos fundadores e dos primeiros sócios. Embora o primeiro objectivo fosse a criação de uma companhia de bombeiros, aqueles homens entenderam que se justificava um fim complementar que proporcionasse nos tempos de lazer e de ócio algumas actividades recreativas e culturais aos bombeiros e aos associados. Como havia a intenção de concretizar rapidamente essa ideia, consagraram a sua criação na redacção dos estatutos primitivos, com indicação expressa de que a “associação pode também ser recreativa, havendo casa de leitura (…) quando circunstâncias especiais do cofre o permitirem.”

O historiador José Afonso Oliveira Soares, autor da História da Vila e Concelho do Peso da Régua, fala da biblioteca dos bombeiros, a qual chegou a conhecer pelas suas funções de comandante do corpo de bombeiro. No seu livro, ele afirma que a biblioteca foi inaugurada em Janeiro de 1885, dando-nos conhecimento que ela surgiu “devido a um desejo de um contribuinte e à muita iniciativa e valiosíssimos esforços do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, a quem no dia em que foi aberta aos seus associados, se referiram com grande aplauso em brilhantes discursos Paulo de Barros, Afonso Mesquita Chaves e José Joaquim Pereira Soares Santos.”

A biblioteca dos bombeiros, ideia original dos primeiros associados, foi uma prenda oferecida por um benemérito que, por modéstia, não permitiu que seu nome fosse conhecido ou revelado. A ele se deve a concretização da ideia e, apesar do anonimato, merece o nosso maior elogio de consideração e gratidão. Pelo menos, este reconhecimento histórico ninguém o acha injusto. Não sendo possível evidenciar o seu nome, a sua ajuda ficou perpetuada no tempo, com a sua continuidade da biblioteca até aos nossos dias. O grande escritor reguense, uma crónica intitulada “Primórdios”, publicada em Dezembro de 1963, no antigo jornal da associação “Vida por Vida”, comenta esta situação com as considerações seguintes:

“ Pena é que o saudoso historiador da nossa vila e concelho mão tenha nomeado o sócio contribuinte, que tanto desejo ver o nosso quartel espiritualizado com uma livraria. Dizemos tanto desejou, porque o seu desejo moveu a vontade do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro.

Devemos a um anónimo a fundação, em 1885, da nossa Biblioteca. Se soubéssemos o nome dele, seria obrigação perpetuar-lhe a memória com algum voto condigno. Como não se sabe, imagine-se que foi o humilde benemérito. Algum obscuro artista, amigo da Instrução…

Obscuro não deve ter sido o Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, propulsor da luminosa ideia do sócio contribuinte. Inscreva-se-lhe o nome numa lápide se não pudermos eternizar-lhe o retrato entre os nossos livros. Devemos gratidão a esse antepassado.

As coisas são como os rios. Têm origem que, embora tímida, nunca é desprezível. A nossa Biblioteca nasceu em 1985.Ninguém esqueça essa data.

Nascida em 1885, só em 1960, em pleno século actual, veio a ser baptizada. Na província, a marcha de qualquer intuição é sempre lenta.”

As palavras do grande escritor duriense mantêm-se plenas de actualidade. Desde logo, elas mostram o carinho que dedicou a esta biblioteca que, ao que sabemos, ajudou a melhorar e a crescer. Pelo que se conta, o nome do seu patrono - o insigne Dr. Maximiano Lemos - deve ter sido uma sua proposta, que foi aproveitada pela direcção do Dr. Júlio Vilela. Pena é que ninguém dos sucessivos directores, tenha dado ouvidos ao seu prudente conselho. Ainda está lembrar, para que o tempo e o esquecimento dos homens não apaguem, o gesto do anónimo benemérito responsável pela criação da biblioteca.

A história da biblioteca dos bombeiros não se resume a este importante episódio. Na década de 60, com o novo quartel em funcionamento, a direcção dos bombeiros decide instalá-la numa sala condigna e baptiza-la com o nome do ilustre médico reguense – e importante professor da história da medicina portuguesa - o Dr. Maximiano Lemos.

Durante as cerimónias do centenário do nascimento deste reguense, em 3 de Dezembro de 1960, o Governador Civil de Vila Real, o Coronel Pinto de Sequeira, que se fez acompanhar do Dr. Fernando Bandeira, Presidente da Câmara Municipal da Régua, do Dr. Júlio Vilela, presidente da direcção da associação e pelo saudoso Chefe Claudino Clemente, preside à inauguração da biblioteca Maximiano Lemos.

Essa nova fase da biblioteca dos bombeiros foi evocada pelo escritor João de Araújo Correia, na crónica “Biblioteca de Maximiano Lemos”, que em Novembro de 1963 escreve para o jornal “Vida por Vida”, da qual transcrevemos uma elucidativa e interessante parte:

“A Biblioteca de Maximiano Lemos, inaugurada em 1960, ao comemorar-se o primeiro centenário do seu ilustre patrono, vai ser enriquecida, no próximo Novembro com uma valiosa colecção de livros oferecidos pela Fundação Calouste Gulbenkian. Diremos, para ser precisos, que vai funcionar, dentro da Biblioteca de Maximiano Lemos, uma das bibliotecas fixas da Fundação Gulbenkian.

Queremos crer que as suas bibliotecas não brigam uma com a outra, antes se auxiliam e completam. A de Maximiano Lemos é uma livraria pobre e livraria velha herdeira da primitiva estante dos Bombeiros e acrescida de alguma oferta particular. Mas, sempre conterá, como velha, embora pobre, alguma espécie rara, útil a estudiosos ou bibliófilos. A da Fundação, constituída por livros em barda e todos em folha, será útil ao comum dos leitores. Será própria para os desbravar e lhe estimular os gostos da leitura.

Uns e outros deverão acautelar-se de inúteis desvios. Não falta quem se aproprie de livro alheio só para o ter ou deixar perder, nanja para o ler e se instruir com ele. É como cultivasse a arte de tirar por tirar.

Ninguém deve esquecer, aqui na Régua, o que aconteceu à antiga biblioteca municipal, fundada pelo Dr. Claudino de Morais, no século passado. Quando, em 1937, houve incêndio nos Paços do Concelho, já os livros tinham desaparecido. Oxalá não suceda o mesmo aos livros da biblioteca de Maximiano Lemos, agora enriquecida com a inestimável oferta da Fundação Gulbenkian.”

Com salienta o escritor reguense na última crónica, a Biblioteca de Maximiano Lemos recebeu, em Novembro de 1963, no seu espaço a Biblioteca Fixa nº 54 da Fundação Gulbenkian que aí funcionou até aos inícios da década dos anos 80. Durante muitos anos, na Régua não havia qualquer biblioteca pública. Não admira que a biblioteca dos bombeiros tenha feito as delícias de muitos adolescentes. Nas férias do verão, aquela biblioteca era o lugar preferido para se lerem os livros de aventuras de Emílio Salgueri e de Jack London, acompanhados pelo sabor de uma cremosa “Bola de Berlim”da Confeitaria Pinheiro e, já mais tarde, escolher os das poesias de Fernando Pessoa. Nem a D. Lurdes, a simpática secretária, com os seus permanentes avisos para não fazerem barulho, os conseguia manter quietos e calados enquanto o desejado livro não viesse parar nas mãos. Bons tempos aqueles… em que se vislumbrava da imponente varanda da sala, nos longos dias de sol, uma paisagem fantástica sobre o rio Douro.

A Fundação Gulbenkian fechou a sua biblioteca fixa há alguns anos. Foi uma pena…para a Régua. Mas, não levou nenhum dos livros desse tempo. Deixou-os nas estantes de madeira da Biblioteca de Maximiano Lemos. Como assim a quisesse ainda deixar viva, apesar de ser velhinha, mantendo os livros antigos e de edições raras. Só não tem os seus leitores como devia e merecia para melhor honrar a memória do seu patrono. Acertadamente, o escritor reguense avisa-nos: “Os livros privativos da Biblioteca de Maximiano Lemos são, quase, todos, livros veneráveis. Contam, de idade, 78 anos. Necessitam de restauro, que só poderá ser feito por especialistas. Embora…É para nós ponto de fé que nos ajudem nesse empreendimento. Merece-o a ideia do sócio contribuinte de 1885.”

Merecem ainda todos aqueles para quem a biblioteca dos bombeiros é um lugar sagrado que guarda os maravilhosos livros que nos fizeram pensar e crescer. Um lugar mágico, onde aprendemos a gostar mais dos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida.
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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulo III



Não Matem A Esperança - Cápítulo III

Quando estava chatiado (o que, parecia-lhe, só não sucedia a quem não pensava), vinha até ao outro extremo da cidade em que fingia viver e sentava-se numa pedra gasta pelas águas e olhava o mar.

Na praia, sem barracas, havia os que puxavam a cana de pesca para matar a fome lá em casa ou faziam desporto para dar pontapés no tempo; os que amavam e faziam promessas sob o rugido manso do oceano que abafava o som das palavras; crianças pobres, criadas no abstinente do fácil, brincando o jogo do esquecimento, rebolando-se na areia, engalfinhando-se mútuamente; senhoras sérias – daquelas obcecadas com o bronzeado – tapavam os olhos com os braços e ofereciam o corpo às últimas forças do sol de Verão-quase-no-fim; um cão preto e ruço e bem tratado (um cão burguês) brincava com uma criança de tranças loiras (mesmo loiras) e bem vestida e bem tratada (uma criança de burgueses) que lhe fazia lembrar Lelouch e o seu HOMEM E UMA MULHER.

Um avião roncou lá em cima. E as pessoas levantaram os olhos.

(Eram tardes dolorosas, de tropicalismo exacerbado, homens de troncos nus que escorriam suor; eram tardes longas, com saudades à mistura, com crises de nervos em que apetecia partir tudo e não se podia, em que as ganas para se berrar a plenos pulmões o que se sentia, tinham de ser dominadas pela amargura de renúncia à verdade. Eram tardes longas, longas e tristes, aquelas em que o helicóptero cirindava sobre as nossas cabeças, qual mosquito gigante, ou passava ao largo com uma rapidez aflita, levando dentro alguém que espiava vida, uma vida jovem, uma daquelas vidas que morrem na guerra.

África! Em algumas das suas picadas ficaram para sempre as vidas de amigos que chorava, que choraria sempre, amigos que recordava com mágoa, impotente, e as lágrimas que lhe saíam sem pedirem licença eram a sua angústia, presa por um fio na dobra da garganta. Ele queria gritar um poema a esses amigos que morreram na guerra, atingidos pelos estilhaços da metralha, mas, na realidade, não podia. Ele não podia dizer coisas proibidas. (A não ser, à noite, na cama, com a mulher.).

O par que se amava levantou-se e, sacudindo a areia, dei-los abraçados pela praia fora, rumo ao futuro.

(Não os entendiam. Os seres que os rodeavam não faziam parte do elo profundo que os unia. Já tinham o seu passado. As suas vidas transplantaram-se para uma báscula materialista, deportando-se, logo, as suas acções, os seus julgamentos dos outros. Apreciavam-nos como se fossem iguais a eles. Os seus olhos não eram sinceros: fingiam e mentiam interiormente. Detestava-os. Não os odiava. Que lhe importava que eles pensassem aquilo que pensavam? Queria lá saber dos seus interesses mesquinhos e das suas ganâncias? Estava farto deles, Farto de ver sorrisos amarelos, forçados, ditados pelas conveniências. Farto de malandros norteados pelo aburguesamento do não pensar e do deixa correr. E não lhe viessem com pancadinhas nas costas e risos de ocasião dizer que não valia a pena pensar. Ele queria pensar, queria preocupar-se com eles, com aquelas crianças pobres que brincavam na areia para esquecer a fome; com aquela mulher nova na idade e velha no corpo que, do filho ao colo, cheio de feridas, ia de carro em carro pedir uma esmola aos senhores que tinham vindo até à marginal refazer as pazes do amor ou pensar a melhor maneira de levar um semelhante num negócio ou descansar cabeça do barulho da cidade).

Um ronco de barco partia. Proa apontada ao sul, casco rasgando as águas em busca do mundo para além do infinito do seu olhar.

(Também já partira. Num barco assim. Um barco que levou gente, muita gente, para além. Gente que chorava e, também, sorria sem consciência. Gente que levava a esperança de voltar. Mas alguns não voltaram (e como é triste voltar sem eles). Verteram o seu sangue quente que ensopou as escaldantes e poeirentas estradas da selva. Em terra, havia lenços brancos que acenavam, acenavam sem parar. E havia lágrimas de mães e de pais que criaram os seus filhos e os viam partir, sabiam lá até quando; e havia raparigas que viviam a ansiedade dum amor de juventude perante o abismo da incerteza; e havia carpideiras que fingiam chorar não sabiam por quem e para quê e desmaiavam nos braços de estranhos; e havia homens que trabalhavam no cais, indiferentes, minados pela rotina dos gestos e das acções, fartos de verem já tantas partidas iguais. O barco navegava sempre até que não viu mais lenços brancos e só viu a esperança estampada nos olhos dos que o rodeavam, aquela-arma-dos-homens-que-vão-para-a-guerra. E ele, então, apesar de odiar a guerra, sentiu-se superior àqueles que falam, falam, e não dizem nada.).

O relógio, ditador da vida, marcava o ritmo. Tinha de voltar. Ao movimento das pessoas e dos carros. Com encontrões, com guinadas para a direita e para a esquerda, guinchar de travões, arranques estrepitantes de carros sport dos meninos e das meninas ricas; com polícias passando multas aos carros mal estacionados, em transgressões de trânsito; com homens perseguindo outros homens iguais no corpo mas diferentes nas filosofias; mãos no ar oferecendo, num papel com um número, a ilusão da fortuna àqueles que pouco ou nada têm ou àqueles que tendo muito ainda querem mais; sinaleiros apitando furiosa e teatralmente aos volantes que vieram da província e não sabem que na cidade é proibido pisar o risco; condutores maltratando-se pelas palavras mais genuínas do dicionário da má educação. Tinha que voltar. Voltar a cruzar-se com aqueles que se postavam às esquinas das ruas, às portas dos cafés ou das casas de discos ou dos supermercados comendo a estupidez da vida, feita da fatuidade que só os imbecis sabem usar. Mas desculpava-os. É que eles ainda não tinham partido num barco, com muita gente vestida toda da mesma maneira, para longe, para além.
- Continua.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Encontros com o Chefe Artur


No nosso dia-a-dia encontramos muitos bombeiros com um condão peculiar, admiráveis, exemplares e irrepreensíveis a desempenharem o seu trabalho humanitário. Eles são autênticos ser os predestinados que ao nascerem lhe é atribuída uma missão divina para, neste mundo imperfeito e cheio de egoísmos individuais, protegerem a nossa efémera existência dos perigos, infortúnios e inquietações terrenas.

O Chefe Artur - de nome completo, Artur Fernandes Rodrigues Costa – que pertence ao quadro de honra da Associação Humanitária dos Bombeiros de Vila Real e Cruz Verde é um desse admiráveis bombeiros. Durante mais de meio século, enquanto esteve no activo, cumpriu devotamente esse compromisso de prestar auxilio e socorro a todos os necessitados.

Posso dizer que, pelo menos desde 1998, os meus caminhos se cruzam com os caminhos do chefe Artur. Com alguma frequência, encontro-o na distinta Confeitaria Gomes, sentado à mesa com os seus amigos em agradáveis conversas. Quem o conhece, sabe bem que o Chefe Artur é um bom conversador e gosta de discutir e dar a sua opinião. Outras vezes, pelas minhas funções na federação, encontro-o garbosamente fardado nas festas de aniversário de associações amigas. É aí que ainda posso testemunhar o quanto os jovens bombeiros o prezam.

Mas, os meus encontros mais interessantes com este velho bombeiro surgiram de forma diferente. Aconteceram quando fazia pesquisas do passado dos bombeiros da Régua. Ao consultar velhos álbuns, encontrei-o retratado em fotografias que assinalam acontecimentos importantes na história da associação. Confesso que algumas imagens, onde ele aparecia, me ficaram na memória, à espera de uma oportunidade de as revelar.

Desta última vez, foi nos caminhos das memórias de mais de cem anos de história da AHVB do Peso da Régua que encontrei o Chefe Artur. Como não podia deixar de ser encontrava-se garbosamente fardado para estar presente na festa de homenagem e despedida do Comandante Carlos Cardoso dos Santos - o qual deixava por vontade própria o corpo activo depois de 31 anos de comando - que se realizou quartel dos bombeiros da Régua, no dia 3 de Março de 1990.

O Chefe Artur era um dos seus grandes amigos e unia-os uma geração de bombeiros notáveis que, no distrito de Vila Real, tinham alcançado a glória e a auréola. São nomes inesquecíveis como o Rodrigo Félix de Vila Real, o Lage de Vigado, o Serafim de Mesão-Frio, o Araldo de Santa Marta de Penaguião e o Celso de Boticas. O respeito e admiração que ambos não escondiam de ninguém, eram razões para que o Chefe Artur não faltasse à homenagem do comandante da Régua, como ele costumava dizer, para lhe dar um emocionado abraço de gratidão.

Como convidado da associação, não foi esta a última vez que o Chefe Artur esteve no quartel dos bombeiros da Régua. Lembro-me que nos visitou noutros momentos importantes na vida da corporação. Esteve presente nas comemorações do 120º aniversário da associação que aconteceram em 28 de Novembro de 2000.

No decorrer dessas cerimónias, conforme as imagens documentam, encontramos o Chefe Artur na companhia do Secretário de Estado da Administração Interna, o Dr. Carlos Zorrinho, a protegê-lo com o seu guarda-chuva, enquanto aquele assistia à passagem do desfile do corpo de bombeiros, junto à entrada do Quartel Delfim Ferreira. Nunca esqueceremos este surpreendente e inédito momento proporcionado pelo Chefe Artur e o seu acto de cortesia com aquele importante político. A sua presença é um privilégio para os bombeiros da Régua. Eles gostam de conviver com este velho bombeiro que os enternece pela sua história de vida.

É um bombeiro carismático. Em Vila Real não há ninguém que não conheça o Chefe Artur e não lhe exteriorize a sua simpatia. Todos reconhecem a sua generosidade, a sua energia inesgotável, a sua alegria de viver. Com o passar do tempo, tornou-se um fenómeno de popularidade. A sua dedicação ao longo de 54 anos de bombeiro fez cativar a atenção dos seus conterrâneos. Sendo um homem simples e de trato fácil conquistou a afeição de meio mundo á sua volta. Sendo um bombeiro foi extraordinário. Considerado pelos seus companheiros do seu tempo um bombeiro fora de série.

Hoje continua a falar-se do Chefe Artur. Elogiam-se as suas aptidões e as proezas conseguidas nos “teatros de operações” mais perigosos. Com a determinação e coragem, as únicas qualidades que o elevam a um culto merecedor da nossa incondicional deferência, fez-se um grande e inesquecível bombeiro.

Este sentimento é unânime e está expresso nas palavras que lhe dedicou António Barros, secretário geral da AHBV de Vila Real e Cruz Verde, em 12 de Abril de 2003, para assinalar a entrega do maior galardão de reconhecimento ao seu trabalho, o Crachá de Ouro, da LBP, que salienta da sua vida o seguinte:

“Um bombeiro, uma referência…são as palavras ditas pelo Chefe Simão e pelo Chefe Barros para ilustrarem a vida de um Bombeiro – o nosso Chefe Artur Costa – e que são o exemplo de muitas outras que ouvimos, também simples e profundas, ditas e sentidas com muito orgulho, por estes e tantos outros amigos que partilham a caminhada deste Bombeiro, bombeiros do mesmo ideal, com o mesmo espírito, bombeiros de uma geração com história que fizeram história e que, agora, contam as suas histórias feita de vida, porque de sacrifício, de dávida, de fraternidade, de serviço em prol dos outros, de profunda amizade, de Vida por Vida…palavras simples que todos entendemos, sentimos e subscrevemos, porque sabemos verdadeiras e plenas e de significado…”.

Se há bombeiros profundamente identificados pelo seu chão de origem, um dele é o Chefe Artur, nascido em 28 de Novembro de 1930, na cidade de Vila Real. As suas raízes são genuinamente transmontanas. Mas, há quem diga – e quem o tenha escrito - que foi um daqueles seres que já nasceu com o seu destino traçado. Que nasceu bombeiro e para ser bombeiro. Alguns afirmaram, que é um predestinado. Cumpriu com um rigoroso dever de humanidade a missão que lhe foi destinada pelo divino criador. Para nosso bem, soube ser diferente e um dos melhores bombeiros.

O Chefe Artur conta 79 anos de uma vida cheia e, pelo que vimos, e muito feliz. Conserva uma boa forma física e uma lucidez impressionante. Dá gosto de ouvir pela sua voz contar as suas memórias de bombeiro e de as apreciar numa magnífica crónica “Carro da Bomba”, que escreveu em co-autoria para o livro “Vila Real - Histórias ao Café”. Ele possui mais saberes e incríveis experiências de vida que merecem ser registadas pela sua mão. É um homem generoso, solidário e fraterno. A sua vida continua ser uma referência para todos os bombeiros como exemplo de coragem, abnegação e de dedicação ao voluntariado.

O Chefe Artur é um semideus que vive – viverá por muito mais tempo - ao nosso lado. Ele é o personagem do bombeiro que todos idealizamos. Um anjo da guarda fardado, de capacete e de um machado nas mãos. Em quase tudo igual ao primeiro bombeiro que animou os nossos sonhos e que apagava os fogos feitos na imaginação das inocentes brincadeiras infantis.

Tudo o que se disse parece pouco, mas significa muito. Por outras palavras, o Chefe Artur é um símbolo vivo que valoriza a essência da verdadeira dimensão humana da figura dos bombeiros. Contamos ainda com ele para nos ajudar a reforçar os ideais de fraternidade, os valores do voluntariado e a importância dos bombeiros na nossa sociedade.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida.
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Ronda pela Imprensa do Douro: António Lobo Antunes e a escrita mentirosa



Custa-me encontrar um título apropriado à escrita de António Lobo Antunes que, podendo ganhar dinheiro com a profissão de médico, prefere a escrita para envergonhar os portugueses.


Talvez este início de crónica escandalize quem costume venerá-lo. Eu, por maior benevolência que para com ele queira usar não posso, nem devo. Por várias razões, algumas das quais vou enunciar. Porque não gosto de atirar a pedra e esconder a mão.


Este senhor foi mobilizado como médico, para a guerra do Ultramar. Nunca terá sabido manobrar uma G-3 ou mesmo uma Mauser. Certamente nem sequer chegou a conhecer a estrutura de um pelotão, de uma companhia, de um batalhão. Não era operacional mas bota-se a falar como quem pragueja. Refiro-me ao seu mais recente livro: Uma longa viagem com António Lobo Antunes. João Céu e Silva pode reclamar alguns méritos deste tipo de escrita. Foi o entrevistador e a forma como transpõe as conversas confere-lhe alguma energia e vontade de saber até onde o entrevistado é capaz de levar o leitor. Mas as ideias, as frases, os palavrões, os impropérios, as aldrabices - sim as aldrabices - são de Lobo Antunes.


Vejamos o que ele se lembrou de vomitar na página 391:
«Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois ou vinte e três anos que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».


Penso que isto que deixo transcrito da página 391 do seu referido livro, se vivêssemos num país civilizado e culto, com valores básicos a uma sociedade de mente sã e de justiça firme, bastaria para internar este «escriba», porque todo o livro é uma humilhação sistemática e nauseabunda, aos Combatentes Portugueses que prestaram serviço em qualquer palco de operações, além fronteiras. É um severo ataque à Instituição militar e uma infâmia aos comandantes de qualquer ramo das Forças Armadas, de qualquer estrutura hierárquica e de qualquer frente de combate. Isto que Lobo Antunes escreve e lhe permite arrecadar «350 contos por mês da editora» (p. 330), deveria ser motivo de uma averiguação pelo Ministério Público. Porque em democracia, não deve poder dizer-se tudo, só porque há liberdade para isso. Essa liberdade que Lobo Antunes usou para enriquecer à custa o marketing que os mass media repercutem, sem remoques, porque se trata de um médico com irmãos influentes na política, ofendeu um milhão de Combatentes, o Ministério da Defesa, uma juventude desprevenida, porque vai ler estes arrotos literários, na convicção de que foi assim que fez a Guerra, entre 1961 e 1974. E ofende, sobretudo, a alma da Portugalidade porque a «aldeia global» a que pertencemos vai pensar que isto se passou na vida real nos finais do século XX.


Fui combatente, em Angola, uns anos antes de Lobo Antunes. Também, como ele fui alferes miliciano (ranger). Estive numa zona muito mais perigosa do que ele: nos Dembos, com operações no Zemba, na Maria Fernanda, em Nuambuangongo, na Mata Sanga, na Pedra Verde, enfim, no coração da guerra. Nunca um militar, qualquer que fosse a sua graduação ou especialidade, atirou a matar. Essa linguagem dos pontos é pura ficção. E essa de fazer cordões com orelhas de preto, nem ao diabo lembraria. E pior do que tudo é a maldade com que escarrou no seu próprio batalhão que tinha seiscentos militares e registou centena e meia de baixas... Como se isto fosse crível!


Se o seu comandante que na altura deveria ser tenente-coronel, mais o segundo comandante, os capitães, os alferes, os sargentos e os soldados em geral, lerem estas aldrabices e não exigirem uma explicação pública, ficarão na história da guerra do Ultramar como protagonistas de um filme que de realidade não teve ponta por onde se lhe pegue.


Em primeiro lugar esta mentira pública atinge esses heróicos combatentes, tão sérios como todos os outros. Porque não há memória de um único Batalhão ter um décimo das baixas que Lobo Antunes atribui àquele de que ele próprio fez parte. É preciso ter lata para fazer afirmações tão graves sobre profissionais que para serem diferentes deste relatório patológico, basta terem a seu lado a Bandeira Portuguesa e terem jurado servi-la e servir a Pátria com honra, dignidade e humanismo. Não conheço nenhum desses seiscentos militares que acolheram António Lobo Antunes no seu seio e até trataram bem a sua mulher que lhes fez companhia, em pleno mato, segundo escreve nas páginas 249 e 250. Mereciam eles outro respeito e outros elogios. Porque insultos destes ouvimos e lemos muitos, no tempo do PREC. Mas falsidades tão obscenas, nem sequer foram ditas por Otelo Saraiva de Carvalho, quando mandou prender inocentes, com mandados de captura, em branco e até quando ameaçou meter-me e a tantos, no Campo Pequeno para a matança da Páscoa. Estas enormidades não matam o corpo, mas ferem de morte a alma da nossa Epopeia Nacional.
- Dr. Barroso da Fonte, Notícias do Douro, Peso da Régua, 13  de Novembro de 2009.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulo II

Sobre M. Nogueira Borges, O HOMEM E O ESCRITOR - Deste jovem contista, que escreve também poesia, várias publicações se dispersam já por inúmeros jornais. Escrevendo norteado pelos mais belos e justos ideais, a sua prosa é fluente e escorreita como um espelho a reflectir o seu espírito irreverente e insatisfeito. Apesar de todos os defeitos que lhe possam atribuir, ele é, acima de tudo, um enamorado da verdade e orgulha-se de pertencer aquela estirpe nobre de homens íntegros de antes quebrar que torcer e que não sabem, por natureza, mentir ou fingir.

M. Nogueira Borges não se filia em escolas literárias. Os seus escritos são misto ficção e realidade, projectados no tempo e no espaço de homens da rua, da aldeia, ou da cidade, da Metrópole ou do Ultramar. Tendo cumprido serviço militar em Moçambique, daí trouxe um conhecimento mais profundo sobre os homens e uma mais extensa visão sobre os seus legítimos anseios quotidianos. Não admira, pois, que a paisagem e o homem de África aqui apareçam, despidos de artificialismos. Acima de quaisquer limitações ele interessa-se pela mensagem humana e límpida que transparece nas suas ideias escritas e nas personagens das narrativas. Não é, portanto, a ânsia de se filiar ou de emparceirar nas letras que o levam a redigir os impulsos da sua imaginação sã e fértil ou a captar os sucederes do dia a dia, mas, muito simplesmente, a natural tendência para comunicar com os seus semelhantes. O conto é-lhe uma expressão livre de ideias e sentimentos que causam no leitor compaixão ou repugnância ou protesto, através duma capacidade inata de quem escreve. Tudo o que for livre, será de facto, verdadeiro e absoluto.

Possuindo diversa poesia inédita, esta prosa é escolhida entre as produções do melhor tez. Ela é a expressão do seu carácter modelado e do seu temperamento intransigente e põe, acima de tudo, as suas convicções que, apesar da ingratidão, nunca traíu, ainda que na vida isso já lhe tivesse custado incompreensões, represálias e até dissabores. Os seus contos são verdadeiros poemas com personagens, ora humildes, ora penosamente burgueses, ora semi-deusas postas a ridículo, escritas numa prosa segura e de forte estilo, ainda que indefinitivo, donde emerge uma lição de beleza pelas almas que sofrem sem protecção divina ou humana aguardando um amanhã melhor.

É com manifesta satisfação que presto homenagem ao camarada e ao companheiro de estudos e do serviço militar pelo nascimento do seu primeiro livro. E finalmente, não posso deixar de fazer votos por que o público não desperdice esta oportunidade de ir ao encontro da sua mensagem e que a crítica o leia a fim de se poder interpretar, com total discernimento a verdadeira dimensão artística dum espírito que nasce com a esperança de que NÃO MATEM A ESPERANÇA.
- Armando Figueiredo.


Não Matem a Esperança - Capítulo II

Havia noites terríveis na sua solidão. Noites de cinzeiros cheios de pontas de cigarros, de livros abertos, ao calhar, na secretária, de linguados escrevinhados com fúria desesperada, de fumo intenso infestado um quarto de janelas avariadas.

Noites de solidão dum ser-pensante que ainda pretendia ser poeta: poeta do vento, do amor-AMOR, da chuva, das prostitutas miseráveis que vendem a sua carne aos traficantes das esquinas ainda mais miseráveis, poeta dos pobres e dos oprimidos, das crianças que tomam banho nuas na fonte do jardim público da cidade. Ânsia de sair da opressão das quatro paredes em que se julgava sufocar e ir por essas ruas, sem rumo, gritar as poesias da sua alma-caldeira-de-revolta e atirá-las, como murros de pugilista, à cara de certas pessoas, enfiá-las pela boca abaixo para que as mastigassem. Pessoas egoístas que só pensam em si, que julgam ter nos outros uns bonecos de carne e osso que funcionam com corda; que gostam de ser bajulados, de sentir o reconhecimento escravo dos outros; que se lançam em momentos de fraqueza na ambiguidade da vida; que submetem a si; através do dinheiro (ganho sabe-se lá como), os seres dignos que se não queiram deixar borra e que são obrigados a aceitá-los por girarem no seu meio. E, raios! Que fingem como uns porcos sujos (se é que os porcos fingem), que julgam fazer dos outros parvos, tipos desconexos no essencial, querendo lançar os outros na sua confusão.

Incompreensão, interesses fúteis, preconceitos sociais estúpidos, mentes atrasadas e sem visão, uma sociedade moribunda, onde a família – seu núcleo formativo – é cada vez mais um foco de desunião, consequência de cobiças de bens possuídos e que geram as invejas – e uma pessoa a viver no meio disto. A viver no meio de comodistas bem colocados na vida, de cobardes e de traidores que lançam os inocentes para a fogueira, acompanhados da solidão que se sente no meio duma grande multidão. E ouvem-se palavras, só palavras, enfeitadas com promessas de liberdade (que nunca mais chega e era preciso ter chegado há muito), perfumadas ora de falsa importância capitalista, ora dum mais ou menos puritanismo poético e que os burgueses escutam refastelados em poltronas, sossegados se os defendem, inquietos e nervosos e revoltados os atacam; e, entretanto, os autênticos defensores da liberdade vão continuando a morrer nas mãos de homens que têm pelos no coração. Mas o tribunal do futuro há-de julgá-los a todos. Um novo Nuremberga se criará. E há programas de televisão que, como diz o crítico, demonstram até que pontovai o embrutecimento das massas e que o povo vê e ouve com a amorfiahábito de passados artificiais a fazer horas de ir para a cama com a mulher; e há seres humanos que são obrigados a viver com tudo isto a martelar-lhes os sentidos.

E, por isso, ele cada vez tinha mais pena da sua esperança do futuro, que amava com consciência e razão. Reconhecia-lhe a fluidez limpa, sem mancha (por enquanto), duma alma e de um corpo que eram a sua vida, a sua fé na felicidade. Ela o compreendia, sentia as mesmas angústias duma solidão que as pessoas determinavam. E, então, gritava-lhe: «Cautela minha esperança! Não faças como os outros dizem ou te pedem. O que eles querem é envenenar-te, violar os teus sentimentos virgens e inocular-te o vírus da ganância e da parcialidade. Deixa-os! Deixa os outros! Foge deles! Deles, os papões, os vampiros da vida «que comem tudo e não deixam nada». Mas eu tenho pena de ti. Porque sei, tenho a certeza (certeza cruel!) que, também tu, à medida que cresceres, te deixarás levar pelo rio da podridão e da decadência moral. Amanhã serás como eles, os outros, e irás receber uma medalha pelos bons serviços prestados à maldade da sociedade. E se eu choro, minha esperança, é porque sei que sou impotente para impedir a tua contaminação, é porque sei que até tu, tu que és a minha última esperança, morrerás no conhecimento do meu solitário mundo.».

Mas, enquanto a sua esperança não morria, ele ia vivendo com ela a seu lado.
- Continua.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Quartel dos Bombeiros da Régua - Notas para a sua história

Instalaram em 1880 os bombeiros da Régua o seu primeiro quartel no rés - do chão e primeiro andar de  uma casa d que ainda existe no Largo dos Aviadores. Apesar de não haver informações exactas, mantiveram-se na naquele local até ao final do ano1923, sem aí terem as condições para guardarem o seu pouco material de combate incêndios e os bombeiros não terem condições para prestarem um serviço de socorro de qualidade à população.

Em 1923, durante o as cerimónias do 43º aniversário da Associação, os bombeiros mudavam o quartel para uma velha casa que existiu na Rua dos Camilos – o Cimo da Régua - onde se encontra, actualmente,  construído um prédio em propriedade horizontal. Esse quartel era exíguo e estava instalado numa exigia e velha casa.

Em matéria de operacionalidade, esse quartel seria muito inferior ao primeiro. Por regra, as formaturas de bombeiros faziam-se no meio da rua e “os carros entravam à justa na porta estreita sempre com grande vozearia de indicações e avisos”. Como o quartel era um lugar com espaço disponível e sem condições para os fins de socorro, mas serviu para o convívio dos associados e amigos que aí se reuniam para conversar, jogar as cartas, fazer a leitura de um ou outro livro que se guardavam nas estantes ou pelo prazer de merendar no improvisado bar uns bons petiscos.

É desse tempo, o conhecido quarteleiro e bombeiro Zé Pinto, que tomava conta desse quartel, servindo-se de num minúsculo quarto e, a partir daí, ficou e a dedicar-se à corporação até à velhice. Desde tempo, era o comandante do corpo activo era Camilo Guedes Castelo Branco, um cidadão reguense, reconhecido como poeta e dramaturgo de talento que, quem o conheceu, dizia que a sua “presença criava uma atmosfera de respeito e afectividade”.

Desde a fundação que a Associação ganhava mais prestígio quer a nível local quer distrital e a corporação aumentava os seus equipamentos e o número de bombeiros alistados no seu quadro activo. A construção de um quartel era uma obrigação que se imponha à direcção e ao comando. Apesar dos esforços e inúmeras tentativas dos dirigentes associativos com o poder político de então – o Governo e a Câmara Municipal -  para  resolução desta necessidade não encontravam  vontade nem  qualquer intenção de querem mudar esta realidade,  situação que  prejudicava a missão dos bombeiros.

Os bombeiros não desistiram e não perderam a esperança. Orgulhosos da sua missão tudo fizeram para que esse sonho se concretizasse. Em 1925, o Comandante José Afonso Oliveira Soares, no génio de artista, deu um contributo, ao fazer um anteprojecto de um quartel da sua autoria. Se segundo os seus registos, se este novo quartel, se fosse construído, deveria ser erigido no fundo do jardim municipal, o desaparecido Jardim Alexandre Herculano. O certo é que esse belo desenho, guardado em arquivo, não foi concretizada não tão desejada obra. A razão para tal deveu-se ao facto de não haver vontade politica da autarquia  nem de  a Associação  possuir os  necessários meios financeiros para a pagar a sua construção.

Nessa época, as dificuldades financeiras dos bombeiros eram mais muitas. O relato que o presidente da direcção, Dr. Ernesto José dos Santos, fez nas suas memórias que intitulou “Ao Correr da Pena”, comprova o mau momento que a Associação vivia em termos de recursos. Considera que a Associação estava sem meios e sem actividade, já que “tinha os seus órgãos de execução em mau e deficiente estado económico, faltando-lhe a todos os títulos a diligencia, dinamismo, ponderação e maleabilidade”. Aliás, um outro presidente da direcção, o Dr. Mário Bernardes Pereira, confirmava essas deficiências ao divulgar nas memórias, “Evocação”, o seguinte: “ pouco podia realizar-se naquela casa pobrezinha, onde faltava pecúnia e sobravam aspirações e boa vontade”, Com uma certa mágoa acrescentava: “era injusta a atitude da Câmara para com os bombeiros” porque na sua opinião, “tudo se resumia à concessão de um subsidio mensal demasiado pequeno, em face dos encargos que o município viria a contrair se viesse a organizar os seus serviços de incêndios, no dia em que a Associação, privada de recursos, tivesse de findar”.

Como cidadão e médico na Régua sabia que a associação não se extinguia assim, mesmo por maiores que fossem as crises ou a falta de meios. Os beneméritos que a rodeavam de protecção e ajudas e os seus bombeiros abnegados eram os valores seguros que a mantinha viva e actuante. Aquele seu discurso que reivindicava aos políticos locais ajuda para os bombeiros de nada valeu, pois tudo ficou na mesma por mais alguns anos. Ainda chegou desabafar “ninguém estranhou e nem eu não estranhei”.

Nas primeiras três décadas do século passado, o relacionamento dos bombeiros como poder local foi problemático. Os dirigentes de então sentiram falta de apoio e até um certo desdém pelos destinos da instituição. Se a protecção civil era uma obrigação da autarquia, a falta de verbas fazia com que não fosse considerada uma das suas prioridades. Contudo, a nomeação do Dr. Mário Bernardes Pereira para presidir a Comissão Administrativa da Câmara Municipal, os bombeiros serão finalmente reconhecidos. São-lhe concedidos os auxílios para resolver os seus problemas. Encontrando-se na Comissão Administrativa, Jaime Guedes Castelo Branco, como vogal, que havia sido director da associação e conhecia bem as dificuldades dos bombeiros, foi  ele que elaborou  as propostas  para,  que nas reuniões da Comissão Administrativa,   fosse concedido o aumento do subsídio e a cedência de uma parcela de terreno s para que os bombeiros  edificassem o seu quartel, o que está documentado nas actas das sessões de 12 e 19 de Novembro de 1930.

A proposta para a expropriação amigável de uma parcela de terreno, sito então na Av. da Liberdade – hoje Av. Antão de Carvalho – foi fundamentada nestes termos: “Tendo a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua necessidade imperiosa de um edifício próprio que sirva de quartel e arrecadação de todo o seu importante material de incêndio, que se encontra disperso por vários locais com reconhecidos prejuízos para os rápidos serviços do cargo…”

Na cerimónia solene, realizada no dia 30 de Novembro de 1930, na então Av. da Liberdade, a Comissão Administrativa da Câmara do Peso a Régua fez a entrega pública, ao presidente da direcção, Dr. Ernesto José dos Santos e ao Comandante Camilo Guedes Castelo Branco, de uma “ faixa de terreno, sito nesta Avenida, com cerca de duzentos metros quadrados, terreno que vai ser destinado à construção da sede da mesma Associação”.

Com esta doação, os bombeiros estão em condições de concretizar o seu sonho, o de construir o seu quartel. A sua Direcção mandava elaborar, em 1929, ao conceituado arquitecto Oliveira Ferreira o projecto de arquitectura do edifício e, de imediato, lanço o concurso para a construção da obra. Não há conhecimento se houve mais propostas, mas a empreitada da construção obra foi adjudicada ao empreiteiro Anastácio Inácio Teixeira, mestre pedreiro, natural da Régua.

Iniciava-se a construção do quartel. O momento ficou registado num curioso imagem que permite que observemos a erguerem-se as primeiras paredes e o arco frontal em granito. Esperava-se que a obra fosse concluída num curto prazo, o que não veio a acontecer. Devem ter sido várias as circunstâncias para tal acontecesse. Um erro no valor da proposta apresentada pelo empreiteiro, segundo consta, muito abaixo do valor previsto em orçamento, o qual também estaria errado, fez com que surgissem os problemas. Sem recursos financeiros, a Associação mandou parar as obras. Apenas estavam erguidas as paredes exteriores, mas sem telhado o edifício não podia receber os bombeiros nem guardar o seu material, os carros de fogo e as ambulâncias. 

Custa a crer, mas é verdade! Sem que ninguém faça mais nada, o edifício vai permanecer como obra inacabada até 1954. O quartel vai ficar reduzido a um esqueleto, sem portas, sem janelas e sem telhado. Durante mais de vinte e cinco anos, os bombeiros vão ainda ficar a trabalhar no quartel da Rua dos Camilos.


Para se entender os passos lentos da construção do quartel, recordamos o testemunho do Dr. Manuel Alves Soares, antigo presidente de Câmara Municipal da Régua, que o encontrou nesta situação: “ Aí por volta do ano de 1947, quando por circunstancias varias (…) me vi alcandorado no lugar de primeiro magistrado do concelho, tive ocasião de ajudar no seu arranque definitivo, o edifício inacabado daquela prestimosa associação…Tinha-se erguido um esqueleto de aspecto arquitectónico que prometia brilhar no futuro, mas durante alguns anos assim se conservou, sem portas, sem janelas e sem telhado. Servia unicamente de sentinas públicas mas sem saneamento (…) Logo no primeiro dia e por mera curiosidade, entrei nos baixos, para ver o seu interior que contrastava tristemente com aquela magnifica frontaria tão bem trabalhada, revelando o excelente artista que a tinha concebido. Fiquei indignado e enojado com o que vi! Grandes buracos abertos junto aos alicerces onde se lançavam as mais variadas porcarias e muita gente ali fazia as suas necessidades, e de tal maneira, que o cheiro lá dentro era repugnante e pestilento. Vindo que os bombeiros estavam pessimamente instalados na Rua dos Camilos, e ansiavam por ter a sua sede, tratei imediatamente de contactar a sua direcção, nomeadamente Jaime Guedes (…) no sentido de acabar o quartel”.

Não foi ainda desta vez que se concluíram as obras do quartel. De qualquer forma, esse presidente de câmara conseguiu do Ministro das Obras Públicas, Eng. José Frederico Ulrich, que veio a Régua visitar essa obra e não gostou nada do que viu -  um subsídio  para realizar mais umas obras de beneficiação no quartel. Mas como a verba era insuficiente para acabar a obra e a permitir a sua normal utilização como um quartel pelos bombeiros. Por mais anos, os bombeiros continuaram a fazer o seu serviço num quartel que não dignificava a sua missão e sem condições para prestarem melhores serviços à comunidade.

Em 1954, uma direcção presidida pelo Dr. Júlio Vilela (1954-1963) assume os destinos da Associação tendo como preocupação principal realizar a “primeira e mais premente fase de acabamento” do quartel. Numa hábil negociação política, obtém do Ministro das Obras Públicas, Eng. Arantes de Oliveira – que se fez deslocar numa vista à Régua - um subsídio no montante de 54.000$00,  o qual  possibilitou fazer algumas das obras  necessárias, isto é,  acabar o arranjo das fachadas e fazer todas as infra-estruturas no do rés-do-chão do edifício e primeiro andar do edifício.


Nas comemorações do 75º aniversário da associação, realizadas em 4 de Novembro de 1955, - ainda com uma segunda fase de trabalhos de acabamentos para concluir  - é feita a inauguração do quartel dos bombeiros da Régua.  O senhor bispo do distrito de Vila Real celebrou a bênção das novas instalações.

Finalmente, nesse ano de 1955, os bombeiros mudavam-se de casa. Deixavam, sem saudades, o velho quartel no Cimo da Régua para estrearem o novo – baptizado de Quartel Delfim Ferreira – que tinha todas as condições para prestarem à população um moderno serviço de socorro e de protecção civil.

Mas, em 1980 uma direcção dinâmica, liderada pelo Dr. Aires Querubim (1972-1981), com o apoio do Ministério da Administração Interna, tomava a decisão ampliar o quartel, construindo um novo corpo contíguo ao existente, a imitar rigorosamente a estética do projecto original. O edifício, para além de ficar com uma maior área social e operacional, tornava-se mais espectacular na dimensão das linhas arquitectónicas, fazendo-se sobressair o seu desenho na paisagem urbana da cidade.

Este processo de construção do quartel dos bombeiros da Régua foi demorado, complexo e árduo. Foram precisos muitos anos de trabalho, empenhamento, sacrifícios e, sobretudo, uma conjugação de vontades de gerações de pessoas, para que os bombeiros da Régua tivessem ao seu dispor um magnífico quartel – o Quartel Delfim Ferreira -, uma obra  que cativa a atenção de todos pela  excepcional beleza  da sua fachada principal, embelezada com granitos trabalhados à mão, é que por muitos é considerada a mais bonita  Casa dos Bombeiros Portugueses.

Deve reconhecer-se que o processo de construção do quartel foi demorado, complexo e árduo e cheio de vicissitudes. Foram precisos muitos anos de trabalho, empenhamento, sacrifícios e, sobretudo, uma conjugação de vontades de gerações de pessoas, para que tivessem ao seu dispor um magnífico quartel, uma obra que cativa a atenção pela singular beleza da sua fachada principal, embelezada com os  granitos trabalhados à mão, e  que é  por muitos é considerada a mais bonita  Casa dos Bombeiros Portugueses.

As grandes adversidades vividas pelos directores e os bombeiros foram evocadas pelo Chefe António Guedes. Na sua crónica, “Bombeiros Voluntários: Recordando…”, escrita no jornal O Arrais evoca passagens do o velho quartel da onde serviu como bombeiro e, em especial, de factos relacionados com a construção do novo quartel, para ele considerado, o primeiro e gigantesco passo para a concretização do grande e sublime sonho há muito embalava os velhos bombeiros:

O quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua encontrava-se pessimamente instalado no rés-do-chão de uma velha e acabada casa, situada num local imprópria, não só devido à pouca largura da rua como, ainda, pelo transito intenso e continuo que por ela passava.
De facto, na estrangulada rua dos Camilos, quase na confluência com a rua Serpa Pinto, tornava-se extremamente difícil e, por vezes, perigosa a saída das viaturas, as quais eram forçadas a executar lentas e arreliadoras manobras para entrarem ou saírem do quartel. Por vezes produziam-se “engarrafamentos” de trânsito, que davam lugar a aborrecidos atrasos e que eram causados por condutores repontões, que se insurgiam contra nós, atribuindo-nos a culpa do que sucedia.
Era uma arrelia, uma constante dor de cabeça.
Em vista disso, a direcção e o Comando da Corporação concluíram que eram absolutamente necessário, para se acabar com aquele inferno, construir um quartel, embora modesto, mais situado num local amplo e apropriado, no centro da vila. Essa resolução veio precisamente ao encontro dos desejos do Corpo Activo, que se comprometeu (e cumpriu briosamente), a trabalhar para esse seu tão grande anseio se concretizasse.
Jaime Guedes, ao tempo presidente da Direcção dos Bombeiros e simultaneamente vereador da Câmara Municipal, aproveitou essa feliz oportunidade e falou sobre o assunto, com os restantes vereadores – Dr. Mário Bernardes Pereira, Capitão Afonso Alves de Araújo, Alberto Gonçalves Martinho e Dr. Abel Duarte Teixeira de Araújo -  e solicitou-lhe a sua concordância no pedido que em breve iria fazer (…)
De facto, numa das primeiras sessões realizadas, ele apresentou uma proposta, na qual solicitava que o município adquirisse e entregasse aos bombeiros um pequeno prédio, situado na Av. Sebastião Ramires, onde em tempos esteve instalada a Associação de Socorros Mútuos 1.º de Maio, e terrenos anexos, afim dos Bombeiros Voluntários ali construírem o quartel de que tanto careciam.
Essa proposta foi aprovada por unanimidade, demonstrando a vereação, por essa forma, a sua simpatia pela velha e gloriosa Corporação (…)

Mas, Jaime Guedes, não deixou arrefecer o entusiasmo do momento, numa outra proposta, que igualmente foi aprovada, solicitou a concessão, aos Bombeiros, de um subsidio de cinquenta mil escudos, destinado a custear as primeiras despesas da construção do tanto desejado quartel.

Estava dado o primeiro e gigantesco passo para a concretização do grande e sublime sonho que a nós, velhos bombeiros, há muito nos embalava.
Jaime Guedes, filho de bombeiro e irmão de bombeiros, iniciou imediatamente as necessárias demarches, destinadas a levar a cabo essa grande obra, que hoje constitui um motivo de orgulho para a gente da Régua – e que é o modelar quartel dos seus bombeiros.
A planta do prédio foi i imediatamente executada pelo distinto arquitecto Oliveira Ferreira, autor do projecto da capela do Asilo José Vasques Osório, e a empreitada da obra adjudicada ao mestre pedreiro Anastácio Inácio Teixeira, reguense de gema e artista admirável, que burilava a cantaria com primor, o mesmo enlevo e carinho como que as nossas lindas minhotas consagram às suas artísticas e primorosas rendas de bilros.
A sua proposta foi, muito sensivelmente, a mais baixa que se recebeu.
Já o prédio estava muito adiantado quando se constatou, com enorme surpresa e desgosto, que havia errado o orçamento que figurava na sua proposta e que, nessas circunstâncias, não poderia concluir a obra pela qual tanto se interessava e tanto o envaidecia.
Restavam-lhe, pois, duas alternativas:
A primeira, que muito a amigável e sinceramente lhe foi sugerida pela própria Direcção dos Bombeiros, era que parasse imediatamente com a obra e que se tranquilizasse, pois nada lhe seria exigido, - sugestão essa que terminantemente rejeitou.
E a segunda – que ele seguiu sem vacilar – foi concluir a obra, vendendo ou hipotecando os seus modestos bens, para poder cumprir com a sua palavra.
E não houve forças humanas que o demovessem, que o fizessem mudar de ideias.
E assim terminou a obra.
Sabe Deus com que desgosto, com que sacrifício esse homem, já velho e cansado, nessa altura, se despojou de um pequeno património (que levara a vida inteira a construir) para poder cumprir com a sua palavra”.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida.  Texto revisto em Abril de 2011.
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