Sobre M. Nogueira Borges, O HOMEM E O ESCRITOR - Deste jovem contista, que escreve também poesia, várias publicações se dispersam já por inúmeros jornais. Escrevendo norteado pelos mais belos e justos ideais, a sua prosa é fluente e escorreita como um espelho a reflectir o seu espírito irreverente e insatisfeito. Apesar de todos os defeitos que lhe possam atribuir, ele é, acima de tudo, um enamorado da verdade e orgulha-se de pertencer aquela estirpe nobre de homens íntegros de antes quebrar que torcer e que não sabem, por natureza, mentir ou fingir.
M. Nogueira Borges não se filia em escolas literárias. Os seus escritos são misto ficção e realidade, projectados no tempo e no espaço de homens da rua, da aldeia, ou da cidade, da Metrópole ou do Ultramar. Tendo cumprido serviço militar em Moçambique, daí trouxe um conhecimento mais profundo sobre os homens e uma mais extensa visão sobre os seus legítimos anseios quotidianos. Não admira, pois, que a paisagem e o homem de África aqui apareçam, despidos de artificialismos. Acima de quaisquer limitações ele interessa-se pela mensagem humana e límpida que transparece nas suas ideias escritas e nas personagens das narrativas. Não é, portanto, a ânsia de se filiar ou de emparceirar nas letras que o levam a redigir os impulsos da sua imaginação sã e fértil ou a captar os sucederes do dia a dia, mas, muito simplesmente, a natural tendência para comunicar com os seus semelhantes. O conto é-lhe uma expressão livre de ideias e sentimentos que causam no leitor compaixão ou repugnância ou protesto, através duma capacidade inata de quem escreve. Tudo o que for livre, será de facto, verdadeiro e absoluto.
Possuindo diversa poesia inédita, esta prosa é escolhida entre as produções do melhor tez. Ela é a expressão do seu carácter modelado e do seu temperamento intransigente e põe, acima de tudo, as suas convicções que, apesar da ingratidão, nunca traíu, ainda que na vida isso já lhe tivesse custado incompreensões, represálias e até dissabores. Os seus contos são verdadeiros poemas com personagens, ora humildes, ora penosamente burgueses, ora semi-deusas postas a ridículo, escritas numa prosa segura e de forte estilo, ainda que indefinitivo, donde emerge uma lição de beleza pelas almas que sofrem sem protecção divina ou humana aguardando um amanhã melhor.
É com manifesta satisfação que presto homenagem ao camarada e ao companheiro de estudos e do serviço militar pelo nascimento do seu primeiro livro. E finalmente, não posso deixar de fazer votos por que o público não desperdice esta oportunidade de ir ao encontro da sua mensagem e que a crítica o leia a fim de se poder interpretar, com total discernimento a verdadeira dimensão artística dum espírito que nasce com a esperança de que NÃO MATEM A ESPERANÇA.
- Armando Figueiredo.
Não Matem a Esperança - Capítulo II
Havia noites terríveis na sua solidão. Noites de cinzeiros cheios de pontas de cigarros, de livros abertos, ao calhar, na secretária, de linguados escrevinhados com fúria desesperada, de fumo intenso infestado um quarto de janelas avariadas.
Noites de solidão dum ser-pensante que ainda pretendia ser poeta: poeta do vento, do amor-AMOR, da chuva, das prostitutas miseráveis que vendem a sua carne aos traficantes das esquinas ainda mais miseráveis, poeta dos pobres e dos oprimidos, das crianças que tomam banho nuas na fonte do jardim público da cidade. Ânsia de sair da opressão das quatro paredes em que se julgava sufocar e ir por essas ruas, sem rumo, gritar as poesias da sua alma-caldeira-de-revolta e atirá-las, como murros de pugilista, à cara de certas pessoas, enfiá-las pela boca abaixo para que as mastigassem. Pessoas egoístas que só pensam em si, que julgam ter nos outros uns bonecos de carne e osso que funcionam com corda; que gostam de ser bajulados, de sentir o reconhecimento escravo dos outros; que se lançam em momentos de fraqueza na ambiguidade da vida; que submetem a si; através do dinheiro (ganho sabe-se lá como), os seres dignos que se não queiram deixar borra e que são obrigados a aceitá-los por girarem no seu meio. E, raios! Que fingem como uns porcos sujos (se é que os porcos fingem), que julgam fazer dos outros parvos, tipos desconexos no essencial, querendo lançar os outros na sua confusão.
Incompreensão, interesses fúteis, preconceitos sociais estúpidos, mentes atrasadas e sem visão, uma sociedade moribunda, onde a família – seu núcleo formativo – é cada vez mais um foco de desunião, consequência de cobiças de bens possuídos e que geram as invejas – e uma pessoa a viver no meio disto. A viver no meio de comodistas bem colocados na vida, de cobardes e de traidores que lançam os inocentes para a fogueira, acompanhados da solidão que se sente no meio duma grande multidão. E ouvem-se palavras, só palavras, enfeitadas com promessas de liberdade (que nunca mais chega e era preciso ter chegado há muito), perfumadas ora de falsa importância capitalista, ora dum mais ou menos puritanismo poético e que os burgueses escutam refastelados em poltronas, sossegados se os defendem, inquietos e nervosos e revoltados os atacam; e, entretanto, os autênticos defensores da liberdade vão continuando a morrer nas mãos de homens que têm pelos no coração. Mas o tribunal do futuro há-de julgá-los a todos. Um novo Nuremberga se criará. E há programas de televisão que, como diz o crítico, demonstram até que pontovai o embrutecimento das massas e que o povo vê e ouve com a amorfiahábito de passados artificiais a fazer horas de ir para a cama com a mulher; e há seres humanos que são obrigados a viver com tudo isto a martelar-lhes os sentidos.
E, por isso, ele cada vez tinha mais pena da sua esperança do futuro, que amava com consciência e razão. Reconhecia-lhe a fluidez limpa, sem mancha (por enquanto), duma alma e de um corpo que eram a sua vida, a sua fé na felicidade. Ela o compreendia, sentia as mesmas angústias duma solidão que as pessoas determinavam. E, então, gritava-lhe: «Cautela minha esperança! Não faças como os outros dizem ou te pedem. O que eles querem é envenenar-te, violar os teus sentimentos virgens e inocular-te o vírus da ganância e da parcialidade. Deixa-os! Deixa os outros! Foge deles! Deles, os papões, os vampiros da vida «que comem tudo e não deixam nada». Mas eu tenho pena de ti. Porque sei, tenho a certeza (certeza cruel!) que, também tu, à medida que cresceres, te deixarás levar pelo rio da podridão e da decadência moral. Amanhã serás como eles, os outros, e irás receber uma medalha pelos bons serviços prestados à maldade da sociedade. E se eu choro, minha esperança, é porque sei que sou impotente para impedir a tua contaminação, é porque sei que até tu, tu que és a minha última esperança, morrerás no conhecimento do meu solitário mundo.».
Mas, enquanto a sua esperança não morria, ele ia vivendo com ela a seu lado.
- Continua.
- NÃO MATEM A ESPERANÇA, Capítulo I
Sem comentários:
Enviar um comentário